terça-feira, 20 de janeiro de 2009

0773) Casa Branca e Senzala (9.9.2005)


(New Orleans após o Katrina)

E eu aqui me preocupando com Bagdá e verberando os EUA pelo seu desprezo para com as vidas dos iraquianos! E eu aqui, pelo menos uma vez por mês, metendo o chanfalho no Governo Bush pela sua insensibilidade para com os afegãos ou os palestinos! Bastou um vendaval (tudo bem, admito que foi um troço de proporções bíblicas, capaz de varrer do mapa uma cidade de 500 mil habitantes) para a gente perceber que a ética dos neo-evangélicos militarista-republicanos tem uma idéia muito clara, dentro das fronteiras do seu próprio país, sobre as vidas que vale e as que não vale a pena salvar. População negra e pobre, na moral nietzschiana da atual Casa Branca, é uma senzala a que não se pode atear fogo; mas pode-se contar com uma catástrofe natural para resolver o problema.

Se o furacão que arrasou New Orleans tivesse destruído lugares como Miami, Detroit ou Las Vegas, eu lamentaria as perdas humanas, mas confesso que meu coração não “mudaria de pancada”. São cidades pelas quais tenho uma enorme indiferença. Nada me dizem. New Orleans, contudo, é uma cidade latina e afrancesada, habitada por negros, berço do blues e do jazz. Sempre sonhei em passar uma semana lá, porque achei que seria uma das cidades americanas mais brasileiras em espírito. Por que o diabo do furacão não foi pra Dallas, pelo menos?! Com todo respeito.

Se este furacão tivesse passado um ano atrás, duvido que o presidente se reelegesse. Os cálculos iniciais falam em dez mil mortos, mas tais cálculos geralmente começam lá em cima e depois vão sendo reduzidos. No 11 de setembro, chegaram a falar em 6 mil mortos, número que hoje se estabilizou em torno de 2.750.

New Orleans é um buraco espremido entre duas paredes, uma contendo as águas do Rio Mississipi, a outra as águas do Lago Pontchartrain. Mais de um século de construções e escavações (inclusive bombeamento de águas subterrâneas) têm feito o nível do terreno da cidade “encolher”, até tornar-se o terceiro ponto mais baixo dos EUA. Qualquer charlatão de feira pode ficar rico prevendo uma inundação ali; não obstante, o governo federal cortou sistematicamente as verbas para melhoramentos em diques e barragens. Nenhum de nós sabia disto. Agora, que 90% da cidade estão submersos, sabemos que não havia plano de evacuação, e que cinco mil soldados da região tinham sido enviados para o Iraque.

A escritora Anne Rice (Entrevista com o Vampiro), uma new-orleanita ilustre, escreveu: “Quero dizer ao meu país: vocês nos faltaram durante esta crise. Olharam-nos com indiferença; menosprezaram nossas vítimas e nós todos. Vocês querem o nosso jazz, o nosso carnaval, nossa cozinha e nossa música. Mas quando nos viram em dificuldades sérias, quando viram uma pequena minoria entre nós saqueando os indefesos, vocês nos chamaram de ‘Cidade do Pecado’ e voltaram as costas. Nós somos mais do que isto. Somos exóticos, somos típicos, somos a parte mais oprimida deste país; mas somos americanos, somos vocês”.

0772) O olho clínico (8.9.2005)



(Umberto Eco)

Uma escritora espirituosa disse certa vez que ler um romance escrito por um crítico literário é a mesma coisa que fazer amor com um ginecologista. Nossa mente tem dois sistemas que se comunicam mas que em essência são independentes: um sistema criativo e um sistema analítico. Somos levemente esquizofrênicos. Tem um cérebro que sabe inventar, criar, produzir coisas originais, mas não sabe analisá-las. E tem outro que analisa com perfeição, mas não cria.

Um crítico precisa estar consciente, o tempo inteiro, não só do instrumental técnico da escrita, como também da História literária prévia. São estes os principais recursos que ele tem em mãos quando abre um livro alheio e começa a analisá-lo. Nenhum crítico, feliz ou infelizmente, começa a ler um livro do zero. Nenhum leitor o faz, na verdade; mas vamos reconhecer que o patamar inicial de um crítico (de um crítico culto, experimentado) é bem mais alto. E quando ele se mete a escritor, senta ao teclado e digita “Capítulo 1”, este grau de auto-consciência técnica pode se tornar mais um estorvo do que uma ajuda.

“Este parágrafo está muito seco, muito Graciliano”, pensa o crítico-romancista. “Preciso dar um temperozinho Jorge Amado: sensualidade, cor-local...” E lá vai ele. Na primeira revisão ele pensa: “Estou usando muito o discurso livre indireto, quando na verdade este trecho pede um pouco mais de narrador onisciente, de múltiplos pontos-de-vista...” E por aí vai. Estou caricaturando, é claro; mas se eu, que não sou crítico e que sou bem indisciplinado em técnica, estou volta e meia pensando essas coisas, o que dizer de um sujeito que estudou a vida inteira para isto, que vive disto?

Alguns indivíduos, no entanto, parecem um desmentido vivo a esta teoria. O primeiro de que me lembro é Umberto Eco, que não era propriamente crítico literário, era algo pior, era semiólogo. Um técnico altamente especializado, o tipo do sujeito de cuja vocação para a escrita criativa temos algum direito de duvidar. Escrever criativamente pressupõe um certo grau de espontaneidade, de intuição lúdica, de decisões inconscientes, de improvisos, de venetas inexplicáveis, de desobediência às regras, e de uma série de outros processos que parecem o inverso da mentalidade crítico-analítica.

Perguntaram a Eco por que tinha situado O Nome da Rosa na Idade Média, e ele respondeu: “Porque conheço a Idade Média melhor do que a época atual”. Creio que o que fez daquele livro um grande romance foi essa possibilidade de usar, sem as amarras da Historiografia, um ambiente, uma linguagem, um ambiente social e cultural com o qual ele tinha extrema familiaridade. A possibilidade de fazer uma paródia lúdica a um tipo de discurso que ele fora obrigado a ler a-sério durante décadas. A possibilidade de finalmente poder imitar afetuosamente a literatura popularesca (romances policiais e de aventuras) que manteve vivo nele o Leitor, que é a mãe do Escritor (o pai é o Crítico).

0771) “O Adversário” (7.9.2005)


(cartaz do filme de Nicole Garcia)

Nos primeiros dias de 1993, um incêndio destruiu uma casa na região francesa de Prevessin, perto da fronteira com a Suíça, onde morava um médico, Jean-Claude Romand, pesquisador da Organização Mundial da Saúde, em Genebra. Os bombeiros tiraram da casa em chamas os cadáveres da mãe (Florence) e dos dois filhos (Antoine e Caroline); o pai estava gravemente queimado, mas vivo. No dia seguinte, o tio de Romand foi à casa dos pais dele para dar a notícia. Chegando lá, encontrou o casal de velhos morto a tiros de espingarda, juntamente com o cachorro. A polícia pensou em vingança: quem teria tentado exterminar uma família inteira, em duas casas situadas a 80 km de distância? Mas aos poucos surgiu uma verdade mais chocante do que o crime em si. O criminoso era o próprio Dr. Romand: ele matou a mulher e os filhos, depois pegou o carro e viajou para matar os pais, aí voltou e ateou fogo à casa. Por que?

A investigação revelou uma verdade muito mais inacreditável. Descobriu-se que o Dr. Romand não trabalhava na OMS, como acreditavam todos os seus parentes e amigos: ninguém lá o conhecia, seu nome não constava dos registros, nem dos anuários médicos. Acabou-se descobrindo que ele nem sequer tinha se formado em Medicina, tendo abandonado os estudos no segundo ano. O mais incrível é que sua mulher Florence e seu melhor amigo (e vizinho), o médico Luc Ladmiral, tinham estudado com Romand até a formatura, quando ele, em vez de clinicar, optou por tornar-se pesquisador da OMS.

Romand fingiu estudar, fingiu formar-se, fingiu trabalhar, durante dezoito anos ininterruptos, mentindo a todas as pessoas que o conheciam. Todo dia pegava o carro, cruzava a fronteira suíça e ficava zanzando, tomando café, lendo jornais. Alguém perguntará: e como ganhava a vida? É aí, no bom e velho capítulo financeiro, que começa a tragédia. Como tinha acesso a bancos suíços, ele começou a pegar o dinheiro dos pais, do sogro, dos amigos, para depositá-lo em bancos de Genebra. Na verdade, depositava-o em sua própria conta. Ao longo de dezoito anos viveu das economias alheias. Quando o dinheiro acabou e o cerco começou a se apertar, ele resolveu (disse depois, no tribunal) “matar aquelas pessoas a quem não queria causar uma grande decepção”. Bang, bang, bang.

O fato é verídico, já resultou em dois filmes e no notável livro L’Adversaire, de Emmanuel Carrere (Paris: P.O.L., 2000). De mentirosos compulsivos o mundo está cheio, mas, mais do que um estudo sobre a mentira, o caso Romand (http://jc.romand.free.fr/) nos sugere um estudo sobre credulidade, respeitabilidade, aparências. Como é possível que ninguém percebesse? Que ninguém desse um telefonema para checar? A tragédia de Romand nos mostra uma das fragilidades de civilização, do mundo organizado e politicamente correto em que todo mundo confia em todo mundo. Ali, uma bolha de sabão dura dezoito anos, porque ninguém acha necessário tocá-la com a ponta do dedo só pra conferir.

0770) A arte de ser executivo (6.9.2005)



Às vezes eu acho que escolhi a profissão errada, e em vez de poeta eu devia ser executivo de multinacional. Me falta talvez um pouco de conhecimento técnico (noções de Economia, Administração de Empresas, etc.). Me falta traquejo, batente, janela; experiência, enfim. Tirando isso, sou tão capaz de administrar uma grande empresa como qualquer outro. Tempos atrás comprei para meu filho um joguinho ótimo chamado Zoo Tycoon, que é um jogo de gerenciamento de um jardim zoológico. Tudo muito simples: você tem uma verba inicial (para construir jaulas, escolher bichos, contratar pessoal especializado, comprar rações, etc.) e um prazo para atingir determinadas metas. Em menos de uma semana eu estava craque. Toda vez que começava a ter prejuízo, eu diminuía salários, demitia pessoal e aumentava o preço do ingresso e do hamburger. Era tiro e queda.

Ser executivo de uma grande empresa não é muito diferente disto, porque o sujeito vive numa mistura de torre-de-marfim e ilha-da-fantasia. Sempre que folheio revistas de finanças e negócios eu presto mais atenção nas fotos do que no texto. Eu sou meio telepático. Basta eu ver uma foto de um grupo de pessoas e eu sei o que elas estavam falando, e basta ver uma foto de uma pessoa sozinha para saber o que ela estava pensando. Nesse executivos das grandes empresas mundiais, não é difícil ver o que move os caras: números, gráficos, índices... E “briefings”, ou seja, breves descrições informativas: o “extrato concentrado” do que se sabe sobre uma empresa, uma pessoa, um país, um mercado, um produto. Com base nisso o sujeito bota o chip do juízo para esquentar, e toma decisões mirabolantes.

Leio na revista Wired de maio: “Quando Jeffrey Immelt assumiu o comando da General Electric em 2001, o futuro previsto para a empresa indicava desaceleração do crescimento e estreitamento das margens. Immelt cortou 15 bilhões em ativos improdutivos, aplicou 61 bilhões em aquisições, e deslanchou um recrudescer de inovações que proporcionou um crescimento de 14% em 2004”. Quem não se orgulharia de aparecer na imprensa com uma folha-corrida dessa natureza? Os executivos vivem disto, de pegar índices negativos e revertê-los. É como um técnico de futebol que pega um time na zona de rebaixamento e três meses depois o deixa brigando entre as quatro primeiras posições.

Cabe ao executivo pegar aqueles gráficos descendentes, que parecem o rastro de fumaça no ônibus espacial Challenger, e transformá-los numa linha parecida à face sul do Monte Everest. É esta a sua façanha estética, semelhante à de um Miguel Ângelo que pega um bloco de mármore e vai descascando-o até revelar um Moisés que tinha lá dentro e só ele enxergou. Existe arte no que um executivo faz. Não, não estou sendo irônico. Existe arte em tudo onde é possível substituir a adiposidade pela leveza, o atravancamento pela elegância, o inchaço burocrático pela eficiência produtiva.