quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

4904) A sabedoria, de Lao-Tsé a John Lennon (18.1.2023)



 
Já comentei aqui um dos meus episódios preferidos da História – ou das lendas da História, o que vem a dar no mesmo. Uma relato que inclusive mereceu um poema escrito por Bertolt Brecht.
 
O sábio chinês Lao-Tsé, já com mais de 70 anos, resolveu se aposentar e ir morar numa região distante. Empacotou meia dúzia de coisas essenciais (um livro, um cachimbo, etc.), montou num boi puxado por um menino, e pegou a reta. Chegando num posto de fronteira, o guarda perguntou ao menino quem era aquela figura. 
 
– É um homem sábio – disse o menino, todo orgulhoso. – Ele descobriu como a água mole é capaz de partir a pedra dura. E que a dureza não dura para sempre. 
 
O guarda mandou que passassem, porém mal eles tinham andado alguns metros, correu atrás. Disse que se o homem era mesmo tão sábio devia colocar por escrito essa sabedoria, para que gente ignorante como ele, o guarda, pudesse ter algum proveito. 
 
Lao-Tsé olhou as roupas surradas e o jeito modesto do guarda, e achou que essa era uma boa idéia. Além do mais, recusar o pedido pareceria um ato pouco amistoso. Durante sete dias, ele dormiu na cabana do guarda, e procurou resumir da maneira mais clara possível os pontos essenciais de sua filosofia. Quando terminou, deu de presente ao guarda o manuscrito, que constava de 81 fragmentos. 



 
O manuscrito é conhecido hoje como o Tao Te  Ching – O Livro do Caminho Perfeito, e circula pelo mundo, em todas as línguas, há cerca de 2.500 anos. É um livro pequeno: esta edição que tenho, em inglês (Ed. Shambhala, Boston, com tradução e adaptação de Ursula LeGuin) tem apenas 125 páginas, incluindo prefácio e notas. 
 
Bertolt Brecht termina seu poema dizendo:
 
Mas as honrarias não são devidas apenas
ao sábio que assinou o manuscrito.
A sabedoria de um homem precisa ser arrancada,
e por isso o guarda da fronteira merece o seu quinhão.
Foi ele quem fez o livro ser escrito.
 
Walter Benjamin, que esteve na companhia de Brecht poucas semanas depois do poema ser composto, comenta a metáfora da “água mole” dizendo que “quem deseja fazer com que a dureza seja derrotada não deve perder nenhuma oportunidade para fazer um gesto amistoso”. (Bertolt Brecht – Poems 1913-1956, Methuen, London, 1976, ed. John Willett, p. 572).
 

Corta para o ano de 2022, Rio de Janeiro. Estou eu, “nas minhas madrugadas”, como dizia Paulinho da Viola, acompanhando as mensagens num dos meus grupos de Facebook, dedicado à obra dos Beatles. E vejo o seguinte diálogo entre pessoas que não conheço (a tradução é minha): 
 
Karl McDermott
Ao que parece, um professor espanhol encontrou John Lennon na Espanha, durante as filmagens de “How I Won The War”, em outubro de 66, e disse que usava as canções dos Beatles para ensinar inglês aos seus alunos, mas às vezes não entendia direito as palavras. Lennon respondeu: “Bem, se é assim, no próximo disco vou mandar imprimir as letras na contracapa!”
 
Horas depois apareceu, embaixo do post dele, este comentário:
 
Pepa Martínez Jiménez
Karl McDermott, isto é 100% verdadeiro. Esse homem foi meu professor durante alguns anos, e já conheço bem esta história. Ele manteve contato com Lennon durante algum tempo, depois desse encontro. Mesmo hoje, cinco anos após sua morte, os alunos guardam boas lembranças dele. 
 
Quando li isto, não resisti a comentar:
 
Braulio Tavares
Pepa Martínez Jiménez, fala pra gente o nome do teu professor.
 
A resposta não demorou muito:
 
Pepa Martínez Jiménez
Braulio Tavares, o nome dele era Juan Carrión.



Talvez pareça estranho para pessoas mais jovens, mas cinquenta anos atrás não era muito fácil conseguir letras de músicas, nacionais ou estrangeiras. Quem se interessasse, tinha duas opções. A primeira era “tirar a letra” voltando muitas vezes a agulha no disco até conseguir copiar verso por verso. Ainda tenho velhas pastas esbagaçadas pelo tempo, cheia de letras que copiei assim, no pé da vitrola. 
 
A segunda opção era recorrer às numerosas “revistinhas de letras de música”, que eram abundantes justamente por causa desse problema. Vamos Cantar, Cante Comigo, A Modinha Popular, O Samba, Só Sucessos... Esta solução, como a maioria das soluções, criava um novo problema, porque a confiabilidade das letras transcritas não era grande coisa. Vendo as aberrações nas letras em português a gente já avaliava o nível de competência de quem estava tirando as letras de rock. 
 
Essas revistas evoluíram, já nos anos 1970, para a histórica “Vigu”, Violão & Guitarra, que além das letras trazia as cifras dos acordes no violão. Foi mais importante do que a decifração da Pedra de Rosetta. Para quem já “arranhava” o Método Paulinho Nogueira, era um aleluia.
 
Ainda hoje canto errado essa ou aquela letra de rock por causa do vício que essas revistinhas deixaram de herança. Agora, com a Web, letras criteriosas e corretas não faltam. Meu saite preferido, simples e organizadíssimo, é o AZ Lyrics (https://www.azlyrics.com/).
 
Mas... deixem-me erguer um brinde nesta noite chuvosa de sábado ao meu desconhecido amigo Juan Carrión, que, com a humildade de um guarda de fronteira, conseguiu convencer um roqueiro sábio de que era importante tornar sua sabedoria acessível aos simples mortais. E outro brinde a Lao-Tsé e a John Lennon, que entenderam, sem esnobismo, sem pose, o quanto era importante dar uma colher de chá às pessoas interessadas em entendê-los.
 
Uma última nota: alguns anos depois do episódio espanhol, George Harrison compôs, e os Beatles gravaram, uma adaptação do Fragmento 47 do Tao Te Ching, sob o título “The Inner Light”, cuja letra diz:
 
Você não precisa cruzar a porta
para saber o que acontece no mundo.
Você não precisa olhar pela janela
para ver o caminho do paraíso.
Quanto mais você viaja,
menos você fica sabendo.
 
Assim, o espírito sábio
não vai, mas conhece;
não olha, mas vê;
não age, mas faz acontecer.