sexta-feira, 2 de março de 2018

4320) "Hotel Califórnia" é plágio? (2.3.2018)




Canções podem ser parecidíssimas umas com as outras sem que isso configure plágio. Pode ser coincidência, pode ser homenagem, pode ser citação, pode ser paródia, pode ser parentesco estético.

Plágio (na minha definição) é quando existe, da parte do autor da obra “B”, o propósito deliberado de imitar a obra “A”, com a intenção de que ninguém perceba que isto aconteceu, para que ele seja considerado autor da idéia original.

Em termos de canção popular, melodia e letra são os dois critérios mais visíveis para que a gente perceba que uma música é parecida com outra. Mas às vezes uma canção usa, tintim por tintim, a sequência harmônica de outra (a sequência dos acordes, o famoso “acompanhamento” que se faz ao violão), mas com outra melodia e outra letra, e pouca gente percebe. É plágio? Eu acho que não.

Uma sequência de acordes, por mais rara e peculiar que seja, não é a música por inteiro; e se alguém consegue colocar uma melodia nova ali, que não lembre em nada a melodia original, isto pode ser considerado até uma pequena façanha de talento.

Eu estava uma vez numa festa, um CD tocando no aparelho e a caixa de som com a voz estava virada noutra direção, de modo que eu ouvia o acompanhamento bem alto, e a voz baixinha. Era uma canção de Dominguinhos, e usava praticamente a mesma sucessão de acordes de “Veja Margarida” de Vital Farias.

A melodia era diferentíssima, a letra nem se fala. Mas quem arranha um violão vai reconhecendo os acordes, aquela sucessão de “posições” no braço do violão, sonoridades que vão “virando a esquina” sempre no mesmo ponto, rumo ao novo acorde.

Vi recentemente na web uma discussão sobre a famosa canção dos Eagles “Hotel California”, lançada como disco single em fevereiro de 1977. E sobre a qual já escrevi, aqui:


É uma dessas canções de música hipnótica e letra misteriosa. Lembra aquelas letras narrativas de Bob Dylan ou Leonard Cohen, onde o enredo acaba estilhaçado e adivinhado pelo contexto, porque a letra consiste em comentários a uma ação que não vemos, ou visualização de detalhes, ou registro de uma frase, um gesto...

Aqui vai uma boa versão de “Hotel California” pelos Eagles, com a letra original e a tradução em português:


A letra tem aquele surrealismo de clássicos do rock como “A Whiter Shade of Pale” do Procol Harum. Glenn Frey, um dos autores da letra (com o baterista e vocalista Don Henley; a melodia é de Don Felder), disse numa entrevista a Cameron Crowe que sua intenção era fazer da canção algo parecido com um episódio de Twilight Zone.

Mas a canção lembra também incontáveis canções meio absurdistas de Bob Dylan; letras como “Black Diamond Bay”, “Lily, Rosemary and the Jack of Hearts”, “Romance in Durango” e outras. Todas do álbum Desire (1976).

No que diz respeito à música, há uma discussão pegando fogo há anos entre os ouvintes, sobre a possibilidade de “Hotel California” ser um plágio de uma canção antiga do Jethro Tull, “We used to know” (do álbum Stand Up, 1969). Aqui uma versão bastante audível desta:


Parece? Eu acho igualzinha, diferindo apenas na conclusão da estrofe, a melodia correspondente ao quarto verso.

Aqui tem esse cara, do saite TotallyGuitars, mostrando os acordes do violão de maneira bem acessível, nem é preciso saber inglês:


Ian Anderson, o líder do Jethro Tull, tem esta entrevista onde ele minimiza a semelhança. Diz que o tom é diferente, o que pra mim é besteira – a essência de uma progressão de acordes se mantém a mesma em qualquer tom que seja executada, tal como uma melodia continua a mesma ao mudar de tom.

Além do mais, o próprio Glen Frey, um dos autores de “Hotel California”, já afirmou que a música foi originalmente composta em Mi menor, o mesmo tom original de “We Used To Know”.  Depois, no entanto, teve que ser transposta para Si menor, para se adequar à voz de Don Henley.

Enfim – essa briga toda aí em cima já rola nos fanzocas de língua inglesa há séculos, e é problema deles. Mas quando eu ouvi “Hotel California” pela primeira vez, sem conhecer a canção do Jethro Tull, achei parecidíssima com esta aqui, de Bob Dylan, lançada em janeiro de 1976 no álbum Desire:


“One More Cup of Coffee” não tem a mesma progressão de acordes de “Hotel California”. Tem até uma sequência bem banalzinha (La menor, Sol maior, Fa maior, Mi maior) mas, lançada um ano antes, num dos discos mais “best-sellers” da carreira de Dylan, é pouco provável que os Eagles não a tivessem escutado.


É uma música em que alguns críticos veem uma influência mexicana/espanhola (já presente em outras faixas do disco, como “Romance in Durango” que recebeu uma versão de Fausto Nilo, gravada por Fagner). Outros veem nas frases extensas, de voz tremulante, alguma coisa de canções judaicas.

Em todo caso, uma música marcante e que pode ter ajudado a sugerir aquilo que a gente chama “um clima”, uma levada rítmica de canção em torno de um número limitado de acordes, partindo de um tom menor, que é mais indutivo a produzir na imaginação um certo mistério, uma certa indefinição.

É difícil explicar a diferença entre tom menor e tom maior a quem não conhece música, de modo que me resta apenas um símile meio desajeitado: tom menor é uma espécie de preto e branco, tom maior é uma espécie de colorido.

Minha tese (que qualquer pessoa poderá desmontar em cinco minutos, concordo) é de que quando Dylan explodiu nas paradas de 1976 com o álbum Desire os Eagles ouviram-no muitas vezes de fio a pavio (todos os roqueiros dos EUA fizeram isto, pode apostar) e surgiu neles a idéia de fazer uma canção com uma levada daquele tipo, nostálgica, misteriosa, numa canção cadenciada, com estrofes de tamanho regular onde coubesse muita coisa.

Essa ”muita coisa”, segundo Frey, ia desde referências à banda Steely Dan até o romance The Magus de John Fowles,  onde, diz ele com propriedade, “cada vez que o cara passa por uma porta está numa realidade diferente”.

E no processo de fundir todas essas informações eles evocaram por um lado a progressão de acordes de “We Used To Know” do Jethro Tull com a estrutura mais complexa (principalmente por ter um refrão) de “One More Cup of Coffee” de Dylan, e mergulharam numa letra que está ao nível da indeterminação surreal e riqueza poética das que Dylan (e seu parceiro musical na época, Jacques Levy) tinham mostrado em Desire.

Eu resto meu caso, como diria aquele dublador terceirizado. “Tragam seus álibis”.