“Qual a diferença entre um artesão e um artista?”, pergunta
uma piada antiga. E responde: “É que o artesão trabalha por dinheiro, e o
artista trabalha por tesão.”
Existe um prazer específico em produzir qualquer uma
dessas coisas que chamamos de “obra de arte” – um livro, um filme, uma pintura,
uma música... Mas esse mesmo prazer, ou algo equivalente a ele, pode ser obtido
ao produzir objetos artesanais em série – bonecos de barro, de madeira, etc.
Esse prazer não é exclusivo da arte, por certo. Um
pedreiro tem prazer em contemplar uma parede perfeita, uma médica vê o
resultado da cirurgia que fez e se orgulha, um “chef” vai às nuvens quando seu
prato recebe um elogio especial...
É um prazer que está ao alcance de muita gente, e por
isso me surpreendo ao ver, de vez em quando, esse pedreiro, essa médica ou esse
“chef” desdenharem a importância da obra de arte bem realizada.
Uma das melhores narrativas sobre a criação artística é
uma narrativa sobre culinária: A Festa de
Babette (conto de Karen Blixen, ou “Isak Dinesen”, e filme de Gabriel Axel).
Depois de oferecer um jantar extraordinário a um grupo de pessoas de gostos
simples, Babette diz: “No mundo inteiro
soa um grito que sai do coração de cada artista: Me deem a chance de fazer o
melhor possível!...”
Em outra obra, Contos
de Inverno (Ed. 34, trad. Anna Olga de Barros Barreto), Karen Blixen amplia
este exemplo, dizendo:
“Vamos supor (...) que um fabricante de flautas faça uma flauta que
nunca seja tocada por ninguém. Não seria uma vergonha e uma pena? Então, de
repente, alguém pega e toca a flauta, e o fabricante ouve, e diz: “é a minha
flauta”. (pág. 173)
O criador reconhece a sua criação (ou a sua criatura),
porque ali existe algo de si próprio. A criação é ao mesmo tempo coletiva (é a
ponta de uma longa linha de outras criações, que vem há gerações, há séculos) e
individual, porque foi uma pessoa que, naquele exemplo específico, produziu
algo de novo e pessoal numa linhagem de obras.
Fazer bem feito, pouco importa o quê. Ítalo Calvino, com
seu olho perceptivo para as contradições da vida, conta, na sua trilogia Nossos Antepassados:
Em virtude de todos esses trágicos acontecimentos, o Mestre
Pietrochiodo estava produzindo forcas cada vez mais engenhosas.Elas agora eram
verdadeiras obras-primas de carpintaria e mecânica, assim como os cavaletes, os
molinetes e outros instrumentos de tortura com os quais o Visconde Medrado
extraía confissões dos prisioneiros. Eu ia com frequência à oficina de
Pietrochiodo, porque era um bom espetáculo vê-lo a trabalhar com tanto afinco e
entusiasmo. Mas pesava sempre uma tristeza no coração do velho carpinteiro. Os
cadafalsos que ele produzia eram destinados a homens inocentes. “Como faço para
conseguir encomendas de trabalhos assim, delicados, mas com outra função?! Que
outros mecanismos poderiam me dar o mesmo prazer de construir?” Mas vendo que
tais perguntas ficavam sem resposta, ele as afastava da mente e dedicava-se a
construir seus instrumentos da maneira mais perfeita e engenhosa que podia.
-- Basta esquecer a finalidade a que se destinam – dizia-me, -- e olhar
para eles como peças de mecanismo. Não são uma beleza?
Eu olhava para aquela arquitetura de traves, aquelas cordas
entrecruzadas, cabrestantes conectados a roldanas, e tentava não ver corpos
torturados presos àquilo, mas quando mais eu tentava mais me via pensando
neles, e dizia a Pietrochiodo:
-- Como posso esquecer?
-- Pois é, meu rapaz – dizia ele. – Imagine eu.
(Italo Calvino: “The Cloven Viscount”, in Our Ancestors, Picador, trad. Archibald
Colquhoun; pág. 22; edição original, 1951). (trad. BT)
Um orgulho contraditório, problemático, que me traz à
lembrança o orgulho do protagonista da série Breaking Bad, Walter White, que se orgulha de produzir a
metanfetamina mais pura e mais rigorosamente fabricada de todo o mercado das
drogas do Novo México.
“Fazer bem feito” é um critério que vai além da arte, mas
tem tudo a ver com ela. Tem a ver também com o grau de humanização impregnado
em qualquer matéria que tenha sido usada, modificada, trabalhada, desgastada
pelo contato humano.
Um livro muito lido, manuseado, meio amassado, cheio de
frases sublinhadas e de anotações. Uma mesa de madeira exibindo círculos
deixados por canecas de café e copos de bebida, riscos de facas, marcas de
pancadas. Uma escada de pedra, desgastada por milhares de pés que por ali
subiram ou desceram.
São duas fases dessa relação amorosa entre a mão humana e
os materiais da vida. A mão que pega o material bruto, sem forma, sem sentido,
e lhe dá uma forma que pode ser para contemplação (uma escultura) ou para uso
(uma cadeira), mas em todos os casos uma destinação que integra aquele material
à vida humana.
E, num segundo momento, a mão que usa, o corpo que usa e
que desgasta o que outra mão criou.
(Bertolt Brecht)
É o que fez Bertolt Brecht escrever, em “De Todas as
Obras do Homem”:
De todas as obras do homem eu prefiro
as que têm marcas de uso.
As panelas de cobre com arranhões e bordas amassadas,
as facas e os garfos cujos cabos de madeira
foram desgastados por tantas mãos: formas assim
me parecem as mais nobres. Como as lajes em volta das casas antigas
pisadas por tantos pés, afundadas no solo,
e com tufos de grama brotando entre elas: sim,
essas são obras felizes. (...)
Primo Levi tem um livro inteiro dedicado ao ofício de
produzir coisas materiais: A Chave
Estrela (“La Chiave a Stella”, 1978). É uma série de capítulos quase
independentes narrando sua convivência com Fausone, um operário que trabalha
supervisionando (e pondo mãos à massa) a construção de pontes, viadutos,
represas – obras em grande escala e que envolvem riscos de acidentes graves.
Em cada capítulo do livro Faussone conta para o narrador
(um químico, que se presume ser o próprio Levi) algum trabalho complicado em
que se meteu, os problemas que surgiram, as soluções encontradas, ou os
prejuízos resultantes.
O amor ao próprio trabalho (infelizmente, o privilégio de uns poucos!)
representa a melhor e mais concreta aproximação da felicidade na Terra. (...)
Para exaltar o labor, nas cerimônias oficiais, emprega-se uma retórica
insidiosa, baseada na noção de que uma louvação ou uma medalha custam menos do
que um aumento de salário, e rendem mais frutos. Existe também uma retórica do
extremo oposto, contudo, não propriamente cínica, mas profundamente estúpida,
que tende a aviltar o trabalho, enxergando-o como algo inferior (...) como se
alguém que sabe trabalhar fosse, por definição, um servo, e como se, ao
contrário, alguém que não sabe executar um trabalho, ou sabe muito pouco, ou
não quer aprender, fosse por essa razão um homem livre. (p. 79-80, trad. BT)
(The
Wrench, Ed. Michael Joseph, London, 1987, trad. William Weaver)
O trabalho material é uma linguagem sem palavras capaz de
conectar pessoas diferentes, de culturas e idiomas diferentes, de mundos
diferentes.
O roteirista Bo Goldman (Um Estranho no Ninho, A Rosa, Shoot
the Moon, Perfume de Mulher, etc) diz que no começo de sua carreira
profissional o melhor elogio que recebeu foi : “Bo, você sabe o que é uma coisa”. “You know what a thing is”. É
uma maneira de dizer que o escritor nunca perde de vista o significado e a
importância de tudo que temos à nossa volta. Tem um peso especial para quem
escreve para o cinema – para quem é capaz de pensar em idéias universais,
abstratas, e conseguir transmiti-las através de cenas onde elas se encarnam em coisas
banais: um copo, um chinelo, um par de óculos.
Quem sabe o que é uma coisa? Em princípio, quem é capaz
de fabricar aquela coisa e disso extrair um certo prazer, um certo orgulho, uma
realização profissional. E também quem é capaz de usar aquela coisa e
reconhecer a quantidade de trabalho humano que foi necessário para produzi-la.