sexta-feira, 4 de abril de 2014

3464) Chandler e a gíria (4.4.2014)



Gíria é linguagem espontânea, palavras e formas de dizer inventadas por gente de verdade, e não pelo dicionário.  Muita gente pensa que as palavras são inventadas por uma equipe de velhinhos de barba branca e sobrecasaca preta, e que usar palavras que não estão no dicionário é como passar dinheiro falso.  Não é.  As palavras novas são inventadas geralmente por pessoas que nunca abriram um dicionário, mas que têm uma certa agilidade verbal, percepção intuitiva de como o idioma se comporta, e na hora do aperto são capazes de dar nomes a bois nunca dantes batizados.

Existe uma nuance técnica de diferença entre palavra inventada e gíria; não sei explicar, se alguém puder explicar para mim eu agradeço. Imagino que a gíria seja uma palavra inventada por uma pessoa mas que pega, se alastra, passa a ser usada por dezenas, centenas, milhares de pessoas. Vira um “fato social”. Uma das características da gíria é ser um tipo de linguagem que surge fortemente localizada no tempo e no espaço. Algumas gírias vigoram numa cidade durante anos sem serem absorvidas, sequer conhecidas, nas cidades vizinhas. Algumas formas de falar tidas como nordestinas são (aos meus olhos) meramente do Ceará, ou do Rio Grande do Norte. Nunca as vi usadas na Paraíba.

Alguns escritores são grandes recolhedores de gírias, desde João Antonio e Plínio Marcos até outros mais recentes como Ferrez. Mergulham numa comunidade que pode ser geográfica (um bairro) ou social (o universo dos cafetões, ou dos jogadores de sinuca, etc.) e registram suas formas de falar. Surge daí uma questão interessante: o uso dessas gírias numa obra literária pode ou não lhes dar uma certa permanência que talvez não tivessem sem isso. (As gírias morrem com a mesma facilidade com que nascem.)

Raymond Chandler, que conhecia bem as gírias dos policiais e bandidos que descrevia em seus romances, tem uma opinião interessante a respeito. Dizia ele, em 1949: “O uso literário da gíria constitui um estudo à parte. Descobri que existem apenas dois tipos que se salvam: termos de gíria que já estão incorporados à linguagem, e termos que o próprio escritor inventa. Tudo o mais corre o risco de estar ultrapassado antes mesmo do livro ir para a gráfica”.

Esta é uma questão importante para escritores e tradutores. Livros de vinte anos atrás nos provocam um choque de desconforto quando usam gírias que tiveram uma voga intensa e breve e depois foram descartadas. São como roupas, como penteados, como outras coisas sujeitas ao terrível conceito de “moda”. O que têm de exuberantes, atraentes e inovadoras hoje, têm de ridículas e ultrapassadas amanhã.