sábado, 5 de dezembro de 2009

1403) As máquinas de feltro (12.9.2007)




O poeta Paulo Leminski criou o neologismo “inutensílio” para descrever coisas que não servem para nada, mas que, não obstante, têm algum significado para nós. 

Um poema é um bom exemplo, mas os inutensílios mais interessantes são certos objetos materiais que parecem a um passo da utilidade mas por alguma razão estarão sempre aquém dela. 

O rei dos inutensílios, para mim, é o francês Jacques Carelman, autor do livro Catálogo de Objetos Inviáveis, onde encontramos um martelo feito de vidro, um sacarrolhas em “Y” para extrair rolhas de duas garrafas ao mesmo tempo (não custa tentar!), um tabuleiro de xadrez esférico, um guarda-chuvas duplo em que o de cima evita que o de baixo se molhe, um aquário encimado por uma gaiola para guardar peixes-voadores... 

A imaginação, o bom humor e a meticulosidade de Carelman podem ser conferidos em seu saite: 

http://www.laboiteverte.fr/les-objets-introuvables-de-jacques-carelman/

Vi há pouco um objeto de feitura carelmânica que, se eu fosse rico, compraria para colocar na mesa de centro da minha sala: uma máquina-de-escrever modelo antigo, marca Underwood, totalmente tecida em feltro, tecla por tecla, martelinho por martelinho, em tamanho natural, tendo inclusive um rolo que pode ser girado e no qual pode ser inserida uma folha de papel. 

Uma coisa linda – só falta escrever! A autora é uma tal de Blueblythe, do Canadá, e o inutensílio pode ser visto em: http://www.craftster.org/forum/index.php?topic=187574.msg1966645;topicseen#msg1966645.

A Underwood me lembrou de imediato um dos mais famosos objetos surrealistas, criado por Méret Oppenheim: uma xícara, pires e colherinha de chá, feitos inteiramente de pelo de animal. 



Existe uma contradição tátil irresolvível entre a beleza do objeto e a impossibilidade (melhor dizendo: a impraticabilidade) de despejar líquido ali dentro. 

Os objetos de Blueblythe e de Oppenheim se baseiam numa contradição simples entre o objeto original e a textura (o material) em que são reproduzidos, que os inviabiliza. No caso de Carelman, o próprio objeto é alterado para sugerir novas funções, cada qual mais inviável do que a outra.

Nada é mais Obra de Arte do que isso. Nem a Mona Lisa, nem a Nona Sinfonia, nem a Divina Comédia. Porque todas essas obras grandiosas nos dão a sensação de que podem definir o que é a Beleza, ou de nos transportar para o reino do Espírito, ou de nos revelar a Mente de Deus. 

Elas nos iludem, porque a Arte não pode fazer isto. Nada pode. É apenas diante de uma xícara de pelo ou de uma máquina-de-escrever de feltro que sofremos o impacto brusco dessa contradição entre aparência e finalidade, que é a contradição de toda obra de arte e de toda criação humana. 

Por isso essas obras são “objetos inquietantes”, como diziam os surrealistas. Vista num momento de angústia e de crise, uma máquina Underwood de feltro nos arrebata para o abismo da impossibilidade de sucesso da existência humana, e para a irrealidade do mundo e de nós mesmos.








1402) Que ira! (11.9.2007)



A feira de Campina Grande, virtualmente destruída pelos carros-bomba e pelos incêndios, foi cercada pelo Exército Ocupante, da Vila Nova da Rainha até a Avenida Canal, com muralhas anti-bomba de 3 metros de altura. O comércio está se recuperando, mas as pessoas preferem encomendar produtos do que ir à feira, com medo de ataques. Os carros de entrega têm que trocar de motorista ao atravessar cada bairro, para evitar que sejam assassinados pela minoria que domina a área. A boa notícia é que há eletricidade três ou quatro horas por dia.

O bairro da Prata está sob controle dos exércitos (local e Ocupante). O problema ainda são as bombas-armadilha colocadas no lixo e nos cadáveres, o que leva a população a deixá-los apodrecendo na rua. Zé Pinheiro foi até recentemente palco de carnificinas entre os dois exércitos e as milícias armadas. Agora, cercado por muros, viu a violência diminuir mas a população se sente prisioneira.

A situação não é melhor no Cabo Branco, outrora um bairro de elite, está há meses sem esgoto, sem coleta de lixo, e eletricidade, quando há, é apenas uma hora por dia. Manaíra está virtualmente arrasada pelos carros-bombas que há anos explodem ali à razão de um por semana, e o seu shopping foi reduzido a ruínas. O Miramar, depois de controlado por um dos exércitos étnicos locais, experimenta um breve período de paz: apenas um ou dois cadáveres aparecem nas ruas por semana, comparados com 30 ou 40 que surgiam no fim do ano passado. Os conflitos diminuíram graças ao virtual extermínio ou expulsão de todas as famílias pertencentes à minoria étnica rival.

E aí, caro leitor? Teve um espasmo de estranheza, um calafrio de presságio? O que está aí em cima é apenas um exercício de ficção-científica (pense 1984 de Orwell, ou pense Fahrenheit 451 de Bradbury & Truffaut) para tornar mais real, projetando-o no que nos é próximo, o que nos parece irrelevante porque acontece longe de nós. Resulta de uma visita que fiz domingo ao saite do New York Times, onde há um útil mapa interativo de Bagdá mostrando a situação atual em dezesseis bairros ou áreas da capital iraquiana. Ele mostra como o poder é exercido a mão armada pelos exércitos iraquiano e americano, que reprimem as milícias armadas xiitas e sunitas, e ainda têm que lidar com o terrorismo anônimo dos carros-bomba e dos morteiros.

O endereço completo é: http://www.nytimes.com/interactive/2007/09/06/world/middleeast/20070907_BUILDUP_MAIN_GRAPHIC.html#. Aconselho uma visita para que possamos todos acompanhar ao vivo a situação. Imaginem uma luta de boxe entre dois pesos-pesados, só que a luta degenerou em briga pessoal e os dois estão querendo bater no outro até matar. Só não o fizeram ainda porque o juiz, neste caso, é um cara do tamanho de Muhammad Ali e faz o que pode para mantê-los à distância. Na hora em que o juiz (o exército dos EUA), abandonar o ringue, a carnagem vai ser grande. E os detalhes não vão poder sair no New York Times.

1401) A verdade e o grotesco (9.9.2007)


(caricaturas - Leonardo da Vinci)

Toda caricatura é grotesca e meio ridícula, até a de uma pessoa linda, respeitável, querida por todos. Toda caricatura é uma exageração de características verdadeiras. Caricatura não inventa, não mente, não cria: apenas distorce, deforma, arreveza.

A MPB, descrita pelos partidários da axé-music, é tão grotesca quanto a axé-music descrita pelo partidários da MPB. Fazem-no com a facilidade de quem enxerga melhor o cisco no olho alheio do que a trave no seu próprio. Todo movimento cultural tem suas limitações, tem seus exageros, tem suas contradições, seja ele popular, erudito, de vanguarda, de indústria cultural, intelectualizado, popularesco, seja o que fôr. Quando gostamos, minimizamos esses defeitos e nos concentramos nas qualidades que nos atraem. Quando não gostamos, descartamos as qualidades e nos concentramos nos defeitos.

Distinguir as qualidades dos defeitos é um julgamento estético. Realçar e exagerar a importância daquelas ou destes é um julgamento político. A toda arte corresponde uma política, que é o conjunto de processos que faz com que essa arte seja produzida, criada, divulgada, discutida, consumida, estudada. O nome disso é Política Cultural, e começou no dia em que um troglodita ficou parado na porta da caverna, chamando os passantes para que entrassem e vissem o bisonte que ele desenhou.

O Armorial descrito pelos tropicalistas é tão caricato e grotesco quanto o Tropicalismo descrito pelos armorialistas. Não o fazem por mau-caratismo ou por calúnia; fazem-no porque disputam um espaço dentro da vida cultural, e precisam dar um chega-pra-lá um no outro. Não se deve dar muito crédito a essas descrições, porque são contaminadas do estranhamento natural de quem, por dever de fidelidade à própria fé, não pode ter excessiva simpatia para com a fé alheia. Além do mais, quem descreve assim sabe no íntimo que está exagerando, que está “pegando pesado”, que está sendo parcial e talvez injusto, mas, paciência – essas opiniões não são opiniões científicas nem filosóficas, são opiniões políticas. Não expressam a nossa Razão objetiva, mas a nossa Vontade subjetiva.

A ficção científica, quando descrita pelos partidários do realismo, é tão ridícula e burlesca quanto o realismo descrito pelos aficionados da FC. Cada um quer puxar o Brasil para sua sardinha, cada um quer afirmar suas qualidades contrapondo-as ao defeito simétrico do outro. Quem se vale da imaginação, critica a falta de imaginação do lado oposto. Quem se vale da verossimilhança, vice-versa.

Isto significa que não devemos dar ouvidos a ninguém, porque todos são preconceituosos contra os concorrentes? Nada disso. Oposição é sempre necessária. Ninguém é perfeito, a não ser nos próprios press-releases. Não podemos conhecer bem uma pessoa sem saber o que pensam dela os seus adversários – estou falando dos adversários, que falam dos seus defeitos reais, e não dos seus inimigos, os que inventam defeitos que ela não tem.

1400) Bin Laden está lá fora (8.9.2007)



Vi de passagem na banca de revistas a capa de uma Newsweek recente. Uma foto aérea magnífica, em preto-e-branco, granulada, mostrando do alto uma interminável cordilheira de montanhas abruptas que se sucedem em tamanho decrescente, como as vértebras de um monstro antediluviano cobertas por terra e matagal. E a legenda dizendo: “Ele Está Ali – a busca por Bin Laden continua”. É uma luta desigual e fascinante: o exército mais bem armado e de mais avançada tecnologia, pertencente ao país mais poderoso do mundo, procurando um homem que se esconde na paisagem.

Mesmo com a antipatia que tenho por Bin Laden, torço um pouco por ele. Podia ser até Paulo Maluf, eu ainda torceria um pouquinho. Se um dia o Íbis enfrentar a Seleção Brasileira, torcerei pelo Íbis. É um reflexo condicionado inculcado em nós por um senso ético confuso (tenho consciência disto) que nos faz sempre preferir um Davi a um Golias, independentemente de qual dos dois esteja “combatendo o bom combate”. Há um senso inato de proporção, de equilíbrio, de simetria (mais até do que um senso moral de justiça) que nos faz torcer pelo pequeno contra o grande.

Conseguirão os EUA prender Bin Laden? Não sei. Jamais duvidei que eles acabassem pegando Saddam Hussein. Saddam não quis fugir do Iraque, e era um sujeito odiado pela maioria da população. Alguém o entregou, como alguém entregou Lampião, alguém entregou Guevara, e alguém sempre entrega, por razões diferentes em cada caso, um sujeito que está na vulnerável situação de depender do sigilo de 100% das pessoas com quem se encontra. Cedo ou tarde, a corda “tora” em algum ponto.

A questão é: os americanos querem mesmo prender Bin Laden? Talvez não precisem deste pretexto para continuar ocupando o Afeganistão, e depois de Bin Laden deve haver uma lista de dezenas de foragidos igualmente importantes. Mas Bin Laden tornou-se um desses símbolos elusivos que o sujeito não sabe se é mais perigoso matar ou deixar vivo. A prisão, julgamento e enforcamento de Bin Laden terão uma repercussão enorme, mas esta contará pontos positivos e negativos para os carrascos, e eles sabem disto.

Por outro lado, a busca me lembra aquela antiga piada sobre o veterano médico do interior que decidiu tirar férias com a esposa e deixou o consultório a cargo do filho, também médico. Ao voltar, o filho lhe disse: “Curei a artrite do Coronel Fulano”. E o velho explodiu: “Seu idiota! Foi aquela artrite que pagou seus estudos!” E me lembra também um trecho do filme de Billy Wilder A Montanha dos 7 Abutres, em que o jornalista cínico e sensacionalista, interpretado por Kirk Douglas, conta como certa vez aquela cidadezinha ficou em polvorosa quando cinco cascavéis fugiram do circo. Quatro foram mortas ou capturadas, mas a última delas continuou à solta durante uma semana. Alguém lhe pergunta onde a cobra estava, e ele diz: “Na minha gaveta, na redação do jornal”. Por que não procuram Bin Laden lá dentro?