sexta-feira, 14 de maio de 2010

2045) Contracapa de cordel (27.9.2009)



(Question 2010, de Katinka Mason)

& é o tipo do cara que passa e joga uma moeda na boca do sax do mendigo & as neves do Kilimanjaro hoje gotejam no deserto de Gobi & só teremos verdadeira civilização quando estivermos cercados de trilobites lendo trilogias & não há nenhum problema com dinheiro falso enquanto as duas partes não descobrem que é falso & aquele casal era como duas TVs ligadas em canais diferentes e uma de frente pra outra & tema para um curta: soltar dez pitbulls num hotel cinco estrelas e sair filmando & é feito insônia de pai na noite de núpcias da filha & minha mente é um rádio que capta mas não sintoniza & perdulário de pérolas, semeando sem medo o lamaçal das pocilgas & como um trombonista se esfalfando no violino mas com a consciência em paz de que pode fazer melhor & quem é o lêmur espectral escondido por trás das minhas pupilas? & ok, tá certo, agora temos um Presidente da República tatuado e com dreadlocks, pode ser que agora a coisa ande & vou implantar um chip de rastreamento em mim mesmo pra saber onde estou & um orgulho contra a dor, um sonho contra o desespero, um sarcasmo contra a fatalidade sem rosto & me lembro de tu até quando tou contigo & um galão de querosene, um isqueiro, um celular & no dia em que pudermos instalar uma mente eletrônica num corpo clonado o pronome Eu desaparece & a morte embeleza as lendas que abalaram a vida & um elefante furioso invade a festa e o anfitrião o abate com um adjetivo & o arco do violino desferindo setas melódicas em várias direções & só falta agora pedirem exame anti-doping para bandas de rock & não há palavra perdida quando se pede perdão & ratos enormes que nem cabem nos esgotos, perseguindo-se uns aos outros e afugentando os cães & sabia que se você colocar um espelho grande no chão, virado para o céu aberto, à noite, fechar os olhos e pular para cima dele, vai parar noutro universo? eu vim & robôs de olhos laser lendo versos em códigos de barras & sinto-me inteiro como um milionário que acabou de perder tudo & melodia que compus de memória e só recordo ao adormecer & queimando dinheiro pra não morrer de frio & a classe operária vai ao paraíso fiscal & pra quem é gato de beco, todo cão é pitbull & duzentos lençóis brancos nos varais e nem um projetor 16mm disponível & só estarei realizado quando inventar, e o Brasil repetir, um termo de gíria, um palavrão novo e uma anedota & a Internet é o lugar onde se pode ser famoso e anônimo ao mesmo tempo & um talismã de três sílabas que, qualquer que seja sua ordem, formam palavras sinônimas & não sei o que seria preferível a esta altura, se uma amnésia ou uma eutanásia & em breve teremos um celular em cada célula & tão desconfiado que tem olho mágico na porta do quarto de dormir & vou descer de balão em Macchu Picchu, e assistir o eclipse do sol & a cidade é uma mulher deitada no horizonte & um texto é como uma pirâmide, começa grande e vai reduzindo &

2044) Arte ou Crime (26.9.2009)



A grande polêmica ideológica de 2017 foi o chamado “Crime da Bienal”, ocorrido na capital de um país latino-americano. No dia da abertura da Bienal de Artes local, um turista dinamarquês morreu ao intervir numa instalação do artista Luís Morales. A instalação consistia em uma sala, vazia à exceção de um pedestal de madeira branca com metro e meio de altura, sobre o qual estava pousada uma pistola Magnum, presa ao pedestal por um cabo metálico (aparentemente, para não ser levada embora). Na parede em frente, um espelho de corpo inteiro, e o letreiro: “Do You Want to Kill Yourself?”. Os visitantes empunhavam a arma, apontavam para sua imagem no espelho, faziam piadas, iam embora.

Uma hora e meia após o início da visitação, o dinamarquês Gunnar Svenstrom, de 43 anos, apontou a arma para a cabeça da própria imagem e puxou o gatilho. Para susto e terror das demais pessoas, houve uma explosão, o espelho voou em pedaços em todas as direções, e verificou-se que por trás dele, num pequeno cubículo, havia uma pistola idêntica, aparentemente guiada (em movimentos, pontaria, etc.) por um controle remoto embutido na primeira. Quando o gatilho de uma foi apertado, foi a outra que disparou, matando instantaneamente o visitante.

O artista foi detido (e liberado sob fiança), acusado de homicídio doloso, em que há intenção de matar. Seus advogados alegaram que o gesto da vítima foi voluntário, e que a pergunta escrita era advertência bastante, não configurando ordem, coação ou injunção de qualquer natureza. A promotoria contra-atacou lembrando que em momento algum foi informado aos visitantes que havia uma arma de verdade escondida por trás do espelho, e que a vítima, muito compreensivelmente, julgara que se tratava apenas da proposição de um gesto simbólico, sem consequências mais sérias.

Três dias depois, o artista fez publicar nos principais jornais da cidade uma carta aberta à população, onde dizia, entre outras coisas: “À Arte cabe comunicar-se diretamente com o Inconsciente dos indivíduos, explorar suas pulsões, cristalizar conflitos, catalisar desfechos. A pergunta formulada em minha instalação foi respondida negativamente por todas as pessoas que ali passaram, precedendo o suicida. Vários empunharam a arma; nenhum puxou o gatilho. Que melhor demonstração de livre-arbítrio? Se o suicida disparou a arma, foi um gesto brotado das profundezas tectônicas de sua psique, foi um vigoroso SIM!, que ele pronunciou no deliberado e consciente gesto de apertar o gatilho. Cabe à arte desvendar e corporificar o destino individual dos que concordam em penetrar seu templo e submeter-se aos seus ritos. Uma sociedade como a nossa, que acaba de legalizar a eutanásia médica, não pode tratar com outro peso e outra medida a eutanásia psico-estética”. Pode ser sinal dos tempos, mas o fato é que Morales foi absolvido, em primeira instância, por 9 votos a favor e 3 contra.

2043) “The End” (25.9.2009)



Um editor literário me disse uma vez que ao receber um conto lia a primeira e a última página. Se visse algo interessante nelas, lia o conto inteiro. A teoria dele é que uma boa história deve agarrar o leitor de forma inapelável ao longo da primeira página; se não, o leitor vai embora e não volta nunca mais. Quanto à última página, ela deve não apenas “fechar a história”, mas deixar uma lembrança viva, mexendo, azucrinando-no-bom-sentido a memória do leitor por semanas, meses a fio.

O Website Filmcritic fez um levantamento dos 50 finais de filmes mais marcantes da história (http://tinyurl.com/elvcv). O saite observa que “final do filme” não quer dizer os últimos 20 minutos, mas, literalmente, a última cena do filme. Eu sempre vejo com restrições o uso excessivo do que chamamos de “final surpresa”, porque é um recurso que (principalmente na literatura, e no conto) foi usado até ficar “dessa finura”. Mas um grande final é sempre bem-vindo, quando é marcante, impressionante, quando não é uma mera reviravolta, mas uma informação nova que nos faz ficar pensando.

Comentando A Bruxa de Blair, diz Christopher Null: “O filme não é especialmente aterrorizante, a não ser nos dois minutos finais, que elevam o nível de tensão de 10 a 100”. Eu concordo. O estilo pseudo-documentário cria uma impressão de realidade (mesmo a gente sabendo que é tudo mentira), e os últimos minutos nos projetam no terror puro. Vi o filme na TV, numa tarde ensolarada, com gente em casa, e tremi como se estivesse a sós num iglu, em plena noite polar.

No outro lado do espectro de emoções, o final de Oito e Meio de Fellini (os personagens, vestidos de branco, dançando ciranda em torno da estrutura inacabada do cenário do filme) é talvez o final mais “pra cima” e menos piegas do cinema. Diz Chris Cabin: “Algum final de filme, ou mesmo algum filme, já conseguiu sintetizar melhor a compreensão da vida como esta grande e absurda piada que ela é?”

Finais-revelação são aqueles onde tudo que vimos antes precisa ser revisto, repensado, reinterpretado. É aquilo que se chama de “conceptual breakthrough”, ruptura conceitual, quando percebemos que estávamos avaliando tudo por um paradigma equivocado. Há muitos grandes exemplos; o saite lembra dois. No filme policial Os Suspeitos, Kevin Spacey monologa e improvisa diante do cético policial Chazz Palminteri, numa das maiores demonstrações da arte do repente na história do cinema, cujo sentido só é esclarecido no último minuto. Na FC, temos O Planeta dos Macacos com a descoberta (acho que a essa altura do campeonato posso dizer) da Estátua da Liberdade enterrada até a cintura na areia da praia, mostrando que o tal planeta é na realidade a Terra num futuro remoto. Virou uma imagem icônica, definidora, do “sense of wonder” que caracteriza a FC.

2042) O fim do mundo em 2012 (24.9.2009)



Falam que o mundo vai acabar em 2012 porque assim está previsto no calendário dos maias ou em algum outro códice obscuro. Não precisavam ir tão longe. Cientistas da NASA acham que esse apocalipse é possível, não por causa da ira dos deuses comedores-de-corações da Centroamérica, mas porque a estrutura elétrica que montamos para nosso planeta é extremamente vulnerável ao que eles chamam de erupções solares, provocando tempestades geomagnéticas. Quem diz, numa matéria da revista Wired, é John Kappenman, da empresa Meta Tech: “Temos uma grade de redes elétrica que cobre o país inteiro. Ao longo dos anos, voltagens cada vez mais altas têm sido aplicadas a ela. Isto aumentou nossa vulnerabilidade a tempestades geomagnéticas. Essas tempestades sempre existiram, mas involuntariamente nós criamos uma infraestrutura que serve como uma gigantesca antena para atraí-las”.

Segundo os cientistas, no estado de sobrecarga em que estão as redes elétricas dos EUA, uma dessas tempestades pode ser “fritar” toda a rede. O que causaria uma espécie de blecaute total em numerosas áreas... Bem, não sou engenheiro elétrico e não posso avaliar exatamente o que aconteceria. Mas Kappenman diz: “Grande correntes elétricas circulam em nossa rede, vindo da Terra através de conexões-terra em grandes transformadores. Precisamos disso por razões de segurança, mas as conexões-terra proporcionam entradas para cargas que podem danificar a rede”. Ou seja: é como se, tivéssemos construído algo que pudesse funcionar como um colossal para-raios. No dia em que cair um raio ali em cima, qual será o resultado?

Lawrence Joseph, autor de Apocalypse 2012:a Scientific Investigation into Civilization’s End, diz: “Transformadores de ultra-alta voltagem tornam-se mais delicados à medida que a demanda de energia cresce. Metade dos que temos hoje não podem mais suportar a corrente para a qual foram planejados. Um pouquinho mais de corrente pode “estourar” sua capacidade. Os de 500 e de 700 mil kilovolt são particularmente vulneráveis, e os EUA têm mais destes do que qualquer outro país”.

Transformadores desse tipo, segundo Kappenman, não podem ser consertados no local, geralmente há um período de um a três anos para que um deles seja substituído. Os cientistas acham que um grande curto-circuito custaria aos EUA de um a dois trilhões de dólares de prejuízo no primeiro ano, mas, mais do que isto, seriam necessários uns dez anos para recompor a rede do modo que era antes.

Pensamos muito no fim do mundo como sendo uma guerra nuclear ou o choque de um meteoro gigante. O fim do mundo, entretanto, pode ocorrer de uma maneira mais indireta, sem custar uma vida humana sequer. Pode ser apenas uma catástrofe tecnológica que faça nossas comunicações entrarem em colapso. E a economia. E a governabilidade das nações. E a produção de alimentos, que, ao fim e ao cabo, é quem define o limite entre a vida e a morte para bilhões de pessoas.