quinta-feira, 12 de outubro de 2023

4991) A Empregada e o Professor (12.10.2023)




A pulp fiction consagrou uma imagem típica da ficção científica, a do cientista louco. Em geral é um pesquisador solitário, isolado da comunidade acadêmica, com delírios de grandeza e de poder sobre o resto da humanidade. Reúne traços de inventores obsessivos como Thomas Edison, empreendedores implacáveis como Steve Jobs ou Elon Musk, e autocratas como Vladimir Putin.
 
O cientista louco da pulp fiction, é claro, é um cara tipo Dr. Silvana, é Lex Luthor, é o Dr. No...
 
O cinema e a literatura de anos mais recentes têm abordado um tipo que acho muito mais interessante, em termos de dramaturgia, e mais próximo da nossa realidade. Podemos chamá-lo “o cientista excêntrico”, ou “o gênio fora-de-esquadro”. Ele não é ambicioso, não é vilão, não sabe de política, não busca riqueza, não ameaça ninguém (a não ser ele mesmo, por descuido). É apenas um sujeito que vive num mundo mental próprio. 
 
Já abordei alguns destes personagens aqui, mas o tema me voltou agora após a leitura do romance The Housekeeper and the Professor (“Hakase no ai shita suushiki”, 2003) de Yoko Ogawa.  Há uma tradução brasileira, A Fórmula Preferida do Professor (Estação Liberdade, 2017, trad. Shintaro Hayashi).



Yoko Ogawa é uma escritora japonesa contemporânea, de quem li recentemente o ótimo Hotel Iris (1996), uma espécie de roman noir japonês sobre a relação mórbida entre uma adolescente e um homem mais velho.
 
Este outro livro tem como foco também a relação de uma mulher mais jovem (uma criada doméstica de trinta e poucos anos) e um velho professor que sofre de amnésia parcial. A mulher vai servir de empregada na casa dele através de uma agência de empregos, e se depara com um homem idoso, considerado um gênio matemático. Ele sofreu um acidente e agora sua memória só consegue reter os últimos 80 minutos de sua vida. 



O Professor (assim chamado durante todo o livro) vive num “eterno presente” parecido com o de Leonard, o personagem de Guy Pearce em Amnésia (“Memento”, 2000) de Christopher Nolan. O personagem do filme tatuava e escrevia recados para si mesmo na própria pele. O Professor anota as informações essenciais em papeizinhos e os prega com alfinetes no terno. 
 
A relativa tensão na convivência entre a Empregada e o Professor decorre do seu distanciamento social bem japonês, bem respeitoso; e do fato de que todos os dias ela precisa se reapresentar a ele. O gelo começa a ser quebrado quando o Professor descobre que ela tem um filho de 10 anos que fica sozinho em casa esperando que ela volte do trabalho. O Professor é radical. Crianças merecem toda a atenção. Ele obriga a Empregada a trazer o filho do colégio e ficar com ela até o fim do expediente. 
 
O Professor começa a ajudar o garoto a fazer suas tarefas de casa. Os dois gostam de beisebol, e começam a trocar figurinhas”, enquanto o Professor fala de Matemática com tanto entusiasmo que a Empregada começa, por conta própria, a estudar a teoria dos números primos e outros capítulos abstrusos da Matemática Pura, seduzida pelo entusiasmo que ele demonstra. 
 
O livro não é um thriller, não tem peripécias, não tem suspense (a não ser os pequenos e ingênuos suspenses da vida banal de todos nós, talvez os únicos que venhamos a experimentar). É um estudo de delicadeza e de aproximação gradual entre pessoas muito diferentes. E do mistério de uma mente capaz de resolver problemas complicadíssimos de raciocínio mas que precisa todos os dias ser apresentado de novo às pessoas que lhe são mais próximas. 


 
O mundo mental do Professor me trouxe à memória (a minha ainda funciona, podem testar) o matemático do filme Pi (1998) de Darren Aronofsky. Neste caso, o matemático é mais jovem e mais amalucado. Max Cohen é um rapaz cujas viagens no mundo abstrato da alta Matemática o deixaram meio maluco, meio paranóico, profundamente convencido de estar a apenas um passo de desvendar os segredos fundamentais do Universo. 
 
São duas histórias muito diferentes, mas ambas nos dão um vislumbre do estado alterado de consciência que é a prática do raciocínio abstrato em alto nível. 
 
E não é somente a Matemática Pura. Um dos filmes mais intrigantes e “em surdina” que vi nos últimos tempos foi The Sound of Silence (2019, Michael Tyburski), em que um técnico de som dedica-se a gravar e analisar os sons produzidos numa grande metrópole (no caso, Nova York). 

Gravando e ouvindo, obsessivamente, ele desenvolve uma teoria que é uma espécie de “Feng Shui do som” – um modo de alterar o background sonoro de uma casa a fim de melhorar as condições psicológicas de quem mora nela. 
 
Peter Lucien, o personagem, não tem nada de doido nem de paranóico, e é interpretado por Peter Sarsgaard num diapasão contido e discreto que somente aos poucos vai nos fazendo resvalar para o mundo de obsessão e de monomania. Lucien é manso, educado, sensível; mas tem uma total incapacidade de explicar às “pessoas comuns” as coisas que vê, que pensa e que ouve. 



("The Sound of Silence")
 

Um dos ângulos mais fascinantes destas histórias é o fato de que esses cientistas excêntricos não são propriamente perseguidos nem ameaçados com as fogueiras da Inquisição. Eles simplesmente não conseguem fazer com que ninguém (nem mesmo as pessoas que os amam) entenda as descobertas prodigiosas que fazem. 
 
Li anos atrás um conto de Joyce Carol Oates, cujo título não recordo, em que um astrônomo idoso e sem família é cuidado por uma enfermeira ou governanta, numa situação parecida com a de A Empregada e o Professor. O astrônomo é tido como senil, caduco, mas inofensivo; e a criada o trata de acordo. Ele fala o tempo todo nos cálculos e nas descobertas prodigiosas que está fazendo; e ela, atarefada, limpando a poeira, responde no tom de “ah, que bom, professor, que bom que seu trabalho está dando certo, não esqueça de comer sua aveia”. 
 
Nas últimas páginas do conto o astrônomo está febril, enfraquecido, mas fica empurrando um maço de folhas de papel nas mãos da criada, dizendo que ligue para aquelas pessoas, aqueles telefones, explique o que está acontecendo, explique que ele fez uma descoberta que vai mudar o mundo, e ela, “ah, claro, professor, não esqueça de tomar seu remédio”. E o conto se encerra com uma dupla leitura extraordinária, porque ele tanto pode ser um velhinho caduco quanto um novo Einstein a quem ninguém dá ouvidos.