terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

3419) A morte da Rainha (11.2.2014)



(foto: Mike Wells)

Era de madrugada, com uma chuvinha fina, quando bateram com força à minha porta, gritando.  A Rainha estava morrendo, e precisavam de mim. Pulei da cama, enfiei uma roupa às pressas, peguei meus apetrechos e segui o anão uniformizado, com dragonas, capacete e um sabre arrastando no chão.  Ele me acompanhou através do labirinto de becos e ruelas até a ladeira onde, numa casinha de alvenaria modesta, a Rainha estava vivendo após o fim do reino. Ele abriu e segurou para mim o portãozinho do jardim, seguimos a alameda por entre as flores e entramos na casa onde havia luzes acesas e o murmúrio das visitas.

Abriram passagem e eu sentei na borda da cama.  Não a via há duas semanas, e assim que meu olho bateu nela percebi que não duraria mais que algumas horas.  Ela pegou minha mão nas suas, lembrou meu nome, como sempre, contou alguma coisa antiga sobre minha família.  O sacerdote veio, preparou o ritual, arrumou todos em semicírculo. A Rainha apertou minha mão esquerda com força naquela mãozinha esquelética de mulher com mais de cem anos.  Com a mão direita apoiada em minha mesinha portátil, fui escrevendo de uma em uma as Senhas, que o Sacerdote repassava aos presentes, cada qual beijando e guardando a sua entre preces.

Ela lembrou-se de flores e de insetos dos jardins do palácio onde foi menina, falou do seu medo de múmias, reproduziu um gemido de engrenagem de moenda, enumerou famílias, espólios, currículos, recitou versinhos libertinos e resumiu em dez frases uma complexa história de aventuras. A cada trecho ouvido, eu meditava e depois escrevia a Senha, que era rapidamente distribuída; e a cada momento eu percebia na minha mão esquerda a mão dela diminuindo, um galhinho de mato que vai virando um graveto. À medida que ela falava, ia sumindo.  Por duas vezes o Sacerdote aplicou o estetoscópio, e sinalizou para continuarmos. 

Depois de quarenta Senhas ela já não tinha mais de vinte centímetros de altura. A voz era precária mas nítida, e quando ela soava o quarto ficava um túmulo.  Ela ia falando e se esvaindo, como se sacrificasse substância do corpo para que a voz se mantivesse plena. Eu já segurava sua mãozinha entre as pontas do polegar e do indicador, mas a sentia ainda morna, ainda pulsando, e fantasiava que se eu não a estivesse tocando ela já teria sumido.

Morreu antes de sumir; estava do tamanho de um fósforo queimado.  Todos se despediram, prepararam um lanche, aliviados, comeram e foram embora.  Eu e o Sacerdote esvaziamos um porta-jóias, colocamos o restinho dela lá dentro, e quando o dia amanheceu saímos para o jardim e a enterramos junto do relógio de sol.