domingo, 18 de fevereiro de 2024

5033) "Anatomia de uma Queda" (18.2.2024)



 
Este filme multi-premiado e muito debatido tem uma porção de qualidades que bastam para justificar esse trelelê todo. Direção (Justine Triet), fotografia, elenco, tudo muito competente, e para mim a prova disto é que comecei a ver o filme às 3 da manhã e só fui dormir quando acabou. Se um filme me prende desta forma, alguma qualidade ele tem. Muitos clássicos e muitos blockbusters já me mandaram para o travesseiro após 15 minutos de teste. 
 
Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) são um casal de escritores que mora nas montanhas, no interior da França, perto de Grenoble. Ela é acusada de assassinar o marido, que caiu-ou-se-jogou-ou-foi-jogado de um terceiro andar, no chalé isolado em que vivem com o filho, um garoto de 11 que ficou cego após um acidente. 
 
Segue-se uma longa batalha de tribunal, um promotor (Antoine Reinartz) altamente disposto a conseguir uma condenação, uma porção de provas circunstanciais que apontam todas para a culpa de Sandra, e o esforço do seu advogado (que é super na-dele, mas salta aos olhos que é perdidamente apaixonado pela cliente) para tirá-la do buraco.   



(Swann Arlaud, o advogado, e Sandra Hüller, a acusada)


O filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner) é o vértice dessa história toda, e o terror calmo e lúcido do garoto diante dessa ominosa possibilidade (“minha mãe assassinou meu pai”) ajuda a manter toda a narrativa equilibrada sobre esse fio-de-aranha de indecisão. Assassinou? Não assassinou? Essa é a grande questão do filme (há outras, menores, importantes), mas vê-se que desde o princípio (ao que tudo indica) os roteiristas (a própria diretora Triet, com Arthur Harari) decidiram não “bater o martelo”. Não tem resposta final. Eles deixam a interpretação a cargo do público. 
 
Eu tenho um gosto especial por filmes que não dão resposta final, não solucionam o mistério, não carimbam um desfecho dizendo “foi assim, não foi assado”. Por que? Talvez porque quando isso acontece o filme nunca se fecha em nossa mente, a gente leva o filme para casa, dorme com ele, acorda pensando nele... Aos poucos ele vai cedendo lugar a novos acontecimentos, mas sempre que alguma coisa faz barulho aquela luzinha na memória se acende. 



Uma luzinha que se acendeu na minha memória foi Dois São Culpados (“La Glaive et la Balance”, André Cayatte, 1962). Este é um dos mais curiosos filmes de tribunal já feitos. Há um sequestro e assassinato cruel de um garoto. Os dois sequestradores, mascarados, são perseguidos pela polícia e se escondem num farol. A polícia cerca o local, e prende três rapazes que encontra lá dentro (interpretados por Anthony Perkins, Renato Salvatori e Jean-Claude Brialy). 
 
Cada um dos três diz mais ou menos a mesma coisa: “Eu estava aqui no farol, passeando, e de repente apareceram esses dois caras, fugindo de alguém”. Nenhum tem álbi. Todos precisam de grana. O roteiro consegue encaixar bem os detalhes, e cria um ótimo suspense com essa situação inusitada: dois são culpados, um é inocente. Mas qual? 
 
A obra de André Cayatte tem uma porção de filmes de tribunal, e merece uma atenção sob este aspecto: a dificuldade de se saber a verdade quando tudo que temos são testemunhos, impressões pessoais e depoimentos de segunda mão. Como decidir sobre a vida e a morte de uma pessoa, com base no que outras pessoas dizem sobre ela? 
 
Cayatte dirigiu um díptico que nunca assisti, mas parece interessante: Jean-Marc ou La Vie Conjugale (1964) e Françoise ou La Vie Conjugale (1964). Os dois filmes contam a história de um casal sob o ponto de vista do marido (Jacques Charrier) e da esposa (Marie-José Nat). 
 
É sempre isto: a versão de cada um, a narrativa de cada um, a interpretação de cada um. O sistema judiciário ergue as mãos para o céu quando lhe trazem impressões digitais, imagens de câmeras de segurança, mancha de pólvora ou de sangue na mão do suspeito. Sinais mais ou menos inequívocos de que Fulano é culpado. Mas, o que fazer quando não se tem certezas físicas, e é preciso recorrer ao que outras pessoas acham que pode ter acontecido?




Um dos grandes trunfos do roteiro de Anatomia de Uma Queda é seu multi-lingüismo. A esposa é alemã, o marido morto era francês, os dois se comunicam em inglês. Cada palavra pesa. De tempos em tempos o debate se cerra em torno do significado de uma palavra, que o promotor que ouvir de um jeito (como “sedução”) e a testemunha insiste em interpretar de outro. A acusada, Sandra, recebe a determinação de falar em francês, já que o julgamento ocorre na França, mas volta e meia ela pede licença e pula para a língua inglesa para explicar melhor o que sente – e isso bota em atividade os tradutores simultâneos. Quem sai ganhando com a mudança? É golpe? É estratégia? 
 
Acabei me lembrando de um postulado meio radical de George Steiner, citado por Douglas Hofstadter em Le Ton Beau de Marot (1997): 
 
Deste modo, um ser humano pratica um ato de tradução, no pleno sentido da palavra, quando recebe uma mensagem verbal de outro ser humano. (...) Resumindo: no interior de uma língua, ou mesmo entre duas delas, qualquer comunicação humana é sinônimo de tradução. Um estudo da tradução é um estudo da linguagem. (trad. BT) 


 

Neste filme, uma mulher alemã é acusada de matar o marido e tem que se defender em duas línguas estrangeiras, seja o inglês que usava para conversar com ele, seja o francês que é a língua falada pelo juiz, pelo promotor, pela corte em geral. 
 
Para tornar ainda mais movediço esse terreno, tanto ela quanto o marido eram escritores profissionais, inventavam histórias, manipulavam personagens, escreviam coisas que não necessariamente reproduziam seus sentimentos e seus pensamentos. 
 
Um sub-tema acusatório que surge durante o julgamento é o de que ela teria plagiado um livro do marido, livro que ele jogou no lixo por desgosto, mas do qual ela salvou uma idéia “de umas 20 páginas” que desenvolveu mais tarde, criando outra narrativa, um romance de 300 páginas, que foi um sucesso, elogiado pela crítica... E o marido acabou se sentindo prejudicado. Com razão? Sem razão? 



(Antoine Reinartz, o promotor)
 

Anatomia de Uma Queda é um mistério criminal, é um drama de tribunal, é a história do naufrágio de um casamento, mas a costura que une todas estas dinâmicas é a palavra, o modo como se usam as palavras, como elas são cuidadosamente escolhidas para produzir efeitos específicos nas pessoas, e como elas têm que ser exaustivamente analisadas para que alguém possa tomar decisões a partir delas.    
 
Tribunais se fundamentam na palavra, no que é irremediavelmente pronunciado. Vale o que foi dito em voz alta. E gravado em fita magnética. E registrado pelas estenógrafas. Mas (como diz a ré a certa altura) nem sempre o que a gente grita em voz alta numa discussão é a totalidade do que a gente sente. Como diz o bolero: “A gente briga... Diz tanta coisa que não quer dizer...”  O que a gente diz é sintoma do inconsciente, mas o consciente está justamente à procura de um antídoto para isto, está tentando convencer o inconsciente de que ele está errado.  
 
O filme é mais um que mostra como réus e testemunhas se preparam para enfrentar a Corte: sendo interrogados de modo exaustivo pelos próprios advogados, para não serem apanhados de surpresa, para escolherem bem o vocabulário, para evitarem termos que podem servir de “gatilho” para deflagrar uma acusação. 
 
A mescla entre palavra e realidade é mostrada nos trechos em que vemos em flash-back a vítima, Samuel. 

Primeiro, na briga que ele gravou no celular e que é reproduzida para os jurados e o público – só nesse momento a narrativa mostra o marido e a esposa “em carne e osso”, discutindo. No momento da briga física, porém, a imagem volta ao tribunal; ouvimos os baques, as pancadas, mas não temos certeza de quem está batendo em quem, e mais uma vez temos apenas a palavra dela quando diz que o marido, em desespero, estava dando socos no próprio rosto, na própria cabeça. 


 
Depois, é o depoimento do filho, relatando a conversa que teve com o pai no carro, quando o pai lhe aconselhou a ficar preparado para a morte do cão, que era inevitável – e o garoto percebe que era sobre a própria morte que o pai falava. Mas nesta cena ouvimos apenas a voz do garoto. A imagem do pai, em sincronismo labial perfeito, diz o que o garoto nos disse que ele disse. Podemos confiar no garoto?  As “aspas”, as frases atribuídas a outra pessoa, nunca foram tão bem relativizadas como nesta cena. 
 
Acreditar é um ato da vontade, não da razão. Anatomia de Uma Queda mostra que, na ausência de provas físicas, científicas, incontestáveis, temos o direito de acreditar no que nos convém, ou, mais precisamente, no que se harmoniza melhor com as nossas experiências prévias, e com as nossas expectativas futuras. 
 
O filme nos acompanha para casa, após a sessão, e nega a resposta confortável que a maioria dos filmes nos oferece: “Fulano é inocente”, “Fulano é culpado”. Em quantos casos de culpa e inocência, na vida real, temos certeza da verdade? Em quantos casos não acabamos acreditando naquilo em que, para nós, é mais seguro acreditar? 


(Swann Arlaud, a diretora Justine Triet, Sandra Hüller, Milo Machado-Graner)