quinta-feira, 27 de novembro de 2008

0649) A falácia da vanguarda (17.4.2005)


Perguntaram a Charles Baudelaire se ele se considerava um poeta de vanguarda e ele respondeu: “Não gosto de metáforas militares”.

Vanguarda é um conceito defeituoso porque nos induz a uma visualização errada da literatura. Vanguarda é aportuguesamento de “avant-garde”, “guarda avançada” ou “tropa avançada”, aquele pequeno grupo que vai à frente do restante do exército, embrenhando-se no território inimigo, descobrindo caminhos e correndo perigos que os que vêm lá atrás não correm. Ser de vanguarda, portanto, dá a idéia de ser mais audaz e mais corajoso, de não ter medo de correr riscos, e de estar conquistando hoje um território onde indivíduos mais prudentes só terão coragem de pisar muito tempo depois.

Quando se diz: “Fulano é a vanguarda da poesia brasileira de hoje”, a gente fica com a impressão de que a poesia brasileira é um grupo de gente indo numa direção, e que Fulano está centenas de metros à frente de todo mundo. Admiramos e invejamos Fulano pelo seu talento e pela sua coragem de partir na frente sozinho, descobrindo tudo por conta própria. E aí nos vem o maior erro de pensar em termos de vanguarda: achamos que o Poeta Vanguardista está mais adiantado do que nós em algum tipo de maratona, e que precisamos ultrapassá-lo. E a única maneira de ultrapassá-lo é fazer, mais ou melhor do que ele, aquilo que ele está fazendo.

Quando a crítica começou a considerar James Joyce a vanguarda do romance ocidental muita gente se sentiu na obrigação de passar à frente dele. E tentou fazer isto escrevendo romances que eram imitações ao-pé-da-letra dos romances de Joyce. Todo país ocidental hoje em dia tem esses romancistas, indivíduos que tentaram ser aquele escritor que, como diria Shakespeare, “out-joyces Joyce” – o cara que supera em joyceanismo o próprio Joyce.

Joyce fez um mergulho fundo na fusão entre voz e escrita, na colagem de diferentes discursos literários dentro de uma mesma obra, no mergulho nos arquétipos culturais de sua Irlanda natal, e assim por diante. Seu trabalho é monumental e impressionante, mas em hipótese alguma significa que a literatura inteira esteja indo neste rumo, com ele à frente. Cada literatura está indo em mil direções diferentes. Todo mundo está escrevendo livros diferentes, e neste sentido cada escritor só é vanguarda de si mesmo, ou talvez de um grupo de textos com os quais ele deliberadamente dialoga – a novela de detetive, a crônica urbana, o romance histórico, o conto psicológico...

Jovens, em geral, acham que precisam ser de vanguarda, porque sentem-se com a compreensível missão de trazer ao mundo o Novo, o Inédito, o Original. Só que a melhor maneira de conseguir isto não é tentando suplantar o que já está sendo feito, e bem, por Fulano ou Sicrano. Vanguarda é toda vez que um indivíduo descobre sua voz pessoal e uma comunidade literária descobre o quanto esta voz lhe fazia falta.

0648) Bilac e Leandro (16.4.2005)




Gosto de coincidências numéricas, até porque são as únicas indiscutíveis, as únicas que não dependem de uma projeção de nosso ponto de vista sobre os fatos. A cristalina frieza dos números que se encaixam uns nos outros faz um “clic”, e o resto é conosco. Revisando um texto recente sobre poesia, percebi uma coincidência singular: tanto Olavo Bilac quanto Leandro Gomes de Barros nasceram em 1865 e morreram em 1918. Isto faz com que dois dos maiores poetas brasileiros tenham existido precisamente no mesmo nicho cronológico, e por si só já bastaria para que algum estudante de Letras, entre as centenas que se formam anualmente em nossas faculdades, escolhesse como tema de sua futura tese de Mestrado algo como: “Bilac e Leandro: o Brasil Oficial e o Brasil Real através da Poesia”.

Bilac foi eleito em vida “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, e participou de campanhas cívicas como a Abolição da Escravatura e a instituição do Serviço Militar obrigatório. Vivia, portanto, no Brasil oficial. Leandro era um caboclo rude que saiu do sertão da Paraíba e fixou-se no Recife; não sei se algum dia terá sequer conhecido o Rio. Carlos Drummond (num texto reproduzido no livro de Irani Medeiros No Reino da Poesia Sertaneja, João Pessoa, Editora Idéia) compara a poesia dos dois, observa que a de Bilac “correspondia a uma zona limitada de bem-estar social, bebia inspiração européia”; e diz que se alguém merecia o epíteto de príncipe era Leandro e sua poesia “pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco”.

Não creio que o texto de Leandro fosse tão pobre assim, embora certamente o fosse se comparado à riqueza de nuances que um artesão como Bilac sabia extrair do decassílabo e do alexandrino. Bilac foi o maior artífice de um gênero, de um conjunto de preferências culturais que ele soube enfeixar com harmonia e refinar com perfeição. Quando um gênero cai de moda, é natural que o mestre daquilo mergulhe no esquecimento. Talvez daqui a 50 ou 100 anos surja no Brasil um novo surto de Parnasianismo e ele volte a ser o maior poeta brasileiro, e será a vez de Drummond e Cabral ficarem hibernando nas prateleiras.

Bilac celebrou como ninguém o amor romântico e o erotismo do corpo feminino; Leandro passou a vida descendo a ripa nas esposas, nas sogras e no casamento. Bilac mergulhou fundo na História clássica, na mitologia grega, nas grandes jornadas épicas dos conquistadores e desbravadores; Leandro estendeu-se no campo da sátira, da crônica cotidiana de costumes, da saga dos valentões e cangaceiros, e dos contos de aventura e encantamento. Um estudo minucioso das semelhanças e diferenças entre os dois poderia nos dar uma idéia desse complicado sistema de espelhos em que um poeta olha para o mundo à sua volta e produz textos que não apenas reflitam esse mundo mas também o enriqueçam. Pouco lembrados hoje em dia, Bilac e Leandro ainda explicam bem nosso país.



0647) A noite do Judas (15.4.2005)


(Guy Fawkes)

A tradição de queimar um “judas” no Sábado de Aleluia é um exemplo de como o instinto destrutivo é condicionado socialmente. Dá gosto ver o prazer com que as crianças dependuram no poste aqueles bonecos desengonçados, entopem seus bolsos de rojões e peidos-de-véia, e na hora H incendeiam suas roupas, fazendo-os pipocar em todas as direções. Depois, botam abaixo a carcaça, descem-lhe o porrete, até que um o pega pela corda no pescoço e sai correndo rua afora, enquanto a turba o persegue, danando o cacete nos despojos da vítima. No outro dia, haja donas-de-casa a reclamar que quebraram todos os cabos-de-vassoura da casa.

Na Inglaterra as crianças comemoram em 5 de novembro a noite de Guy Fawkes, ou “Bonfire Night”, noite das fogueiras. Em 1600-e-cocada um grupo de conspiradores católicos, inconformados com as perseguições do Rei Jaime I, teve a brilhante idéia de explodir o Parlamento britânico, com rei, nobres, e tudo o mais. Eles chegaram a estocar dezenas de barris de pólvora no subsolo do Parlamento, o que dá uma boa idéia do que eram os sistemas de segurança daquele tempo. Mas na noite de 5 de novembro rolou uma denúncia e foi feita uma inspeção. Um dos conspiradores foi flagrado junto à pólvora: justamente o tal do Guy Fawkes, que foi torturado e morto. Desde então, a noite-do-judas inglesa é a Noite de Guy Fawkes. Preparam-se bonecos usando um capote e um chapelão (que, ao que parece, era a roupa do personagem), os bonecos são arrastados pela rua, pendurados, têm os bolsos cheios de fogos de artifício, e o resto é todo igual.

Isso me dá duas idéias. A primeira é a constatação óbvia de que as sociedades precisam de bodes expiatórios, de inimigos simbólicos nos quais possam extravasar sua fúria linchatória, protegida e avalizada por uma tradição folclórica. A segunda é uma idéia política. Imaginemos que, cem anos depois do golpe de Guy Fawkes, os católicos tivessem tomado o poder na Inglaterra. Ele passaria de terrorista a herói, o dia 5 de novembro seria feriado nacional, e haveria uma estátua dele em frente ao Parlamento. Sua efígie estaria em notas e moedas, e talvez quem estivesse sendo queimado nas ruas na Noite das Fogueiras fosse o rei que mandou matá-lo.

Porque é mais ou menos isto que temos aqui no Brasil, com um sujeito como Tiradentes. Fosse isto aqui, ainda, uma monarquia, e o pobre do inconfidente mineiro estaria sendo enforcado, queimado e esquartejado alegremente pelas nossas crianças, todas imbuídas do mesmo espírito cívico que hoje as faz homenagear o herói. Não sabemos muito bem porque queimamos uns e celebramos outros; ou melhor, sabemos, sim. Fazemos isto porque é o que nos foi ensinado no lar, na escola e no bairro, com o aval das autoridades civis e eclesiásticas. Mas ninguém me impede de matutar, daqui do meu canto, que o conceito de “terrorista” e de “herói” muda quase tão depressa quanto o de “campeão brasileiro de futebol”.

0646) O construtivismo em Rayuela e Avalovara (14.5.2005)


Certas experiências literárias, embora tenham lá sua importância, recebem uma valorização que às vezes acaba por atrapalhar uma leitura mais ampla, prejudicando a “chegada” do leitor à obra. Vou pegar como primeiro exemplo O Jogo da Amarelinha (Rayuela) de Julio Cortázar. Se for feita uma enquete por aí entre críticos e leitores, a grande maioria irá lembrar este romance como sendo aquele livro em que os capítulos devem ser lidos numa ordem diferente da ordem numérica. Cortázar propõe um sistema de leitura parecido com o próprio sistema do jogo da amarelinha (que na Paraíba chamamos de “academia” ou “cademia”), onde uma criança pula num pé só por entre os quadrados de um esquema desenhado no chão, impelindo com o pé uma pedrinha.

O autor sugere que a gente comece o livro pelo capítulo 73, depois leia o 1 e o 2, aí salte para o 116, volte para o 3, e assim por diante. Não é por mera excentricidade, ou pelo cacoete de ser diferente dos outros. O livro se organiza um pouco como um currículo universitário, que tem cadeiras obrigatórias e cadeiras optativas. Os capítulos de 1 a 56 seriam os obrigatórios, os que contam a história propriamente dita; os de número 57 a 155 são os capítulos optativos, que não modificam o enredo mas ajudam a enriquecer a história.

Infelizmente, este “gimmick” acabou se superpondo a tudo o mais no livro, o que é uma pena, pois provavelmente alguns leitores se sentem desconfortáveis com esses zig-zags, que imaginam muito mais complicado e incômodo do que é de fato. E com isto se afastam de um livro que tem imensas riquezas a oferecer. Rayuela é um desses romances sinfônicos em que se misturam diferentes histórias, diferentes vozes narrativas, diferentes visões-do-mundo, tudo construindo uma notável história de intelectuais argentinos exilados em Paris durante os anos 1950.

Um caso semelhante corre com Avalovara de Osman Lins, recentemente reeditado pela Companhia das Letras. Sob uma certa influência de Cortázar, mas obedecendo à sua própria índole estética, muito mais “construtivista” do que a do argentino, Osman Lins estruturou a leitura dos capítulos de seu livro em torno do deslocamento de uma espiral que gira no interior de um quadrado dividido em 25 quadrados menores, a cada qual corresponde uma letra. Para um leitor não-construtivista, um leitor que deseja apenas pegar um livro e lê-lo de A a Z, a perspectiva de encarar um livro assim deve ser atemorizante. Ele recua, e com isto está perdendo também um romance com imensa beleza estilística, uma múltipla e bela história de amor, e um retrato sutil do Brasil sob a ditadura militar.

Meu conselho: esqueçam os palíndromos, os zig-zags, o simbolismo gráfico e cabalístico. Ler estes livros pela sua história, seus personagens e sua voz narrativa é uma experiência enriquecedora, da qual não devemos nos privar pelo simples receio do desconforto de uma leitura não-linear.

0645) Mangueira x Portela (13.4.2005)




Em 1968, o poeta Hermínio Bello de Carvalho fez uma visita ao Morro da Mangueira. Deslumbrado com a belíssima visão do casario, das pessoas e da paisagem carioca, começou a escrever um poema sobre o que tinha visto. 

Aí recebeu a visita de Paulinho da Viola, portelense de coração. Ao ler os versos, Paulinho se emocionou tanto que pediu para musicá-los, mesmo sendo eles em homenagem à escola rival. Nasceu assim um dos sambas mais bonitos de todos os tempos, “Sei lá Mangueira”: 


“Vista assim do alto, mais parece um céu no chão... Sei lá... Em Mangueira a poesia feito um mar se alastrou, e a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Que os olhos não conseguem perceber, que as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar...”

Fast-forward no botão do Tempo. Em 1981, o poeta Paulo César Pinheiro é casado com a cantora Clara Nunes. Mangueirense de coração, ele precisa atender a um pedido da esposa, que é Portela: um samba para a escola azul-e-branca. 

A idéia salvadora lhe vem ao olhar o pequeno oratório para Nossa Senhora Aparecida que a própria Clara tem em casa. Ele nota que as cores da santa são o mesmo azul-e-branco da Portela, e que a imagem do Espírito Santo é uma “rima” perfeita para a águia, símbolo da Escola. 

E aí surge “Portela na Avenida”, um samba belíssimo que hoje é, ao lado de “Foi um rio que passou na minha vida”, de Paulinho da Viola, uma espécie de hino não-oficial da Escola: 


“Portela, eu nunca vi coisa mais bela, quando ela pisa a passarela e vai entrando na avenida... Parece a maravilha de aquarela que surgiu: o manto azul da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida...”

No Rio, essa coisa de Escola de Samba é levada a sério mesmo, tanto quanto o futebol. É como uma religião ou um patriotismo. O que leva um portelense roxo como Paulinho da Viola a querer participar, por pura emoção, de um samba que exalta a sua maior rival, a Mangueira? O que leva um mangueirense como Paulo César Pinheiro a louvar a escola rival de uma tal maneira? 

É como um vascaíno compor uma música exaltando o Flamengo, ou vice-versa. Pode-se dizer que são compositores profissionais e vêem a possibilidade de emplacar um grande sucesso, e por outro lado estão atendendo a pedidos de pessoas queridas. Mas isto não explica tudo.

Creio que ambos os compositores amam suas escolas, mas acima delas amam o samba e tudo que o samba representa. Mangueira e Portela são imagens visíveis de algo que não se vê mas que está presente na teia de relações humanas e afetivas, nos laços de parentesco e de vizinhança, na história de um bairro ou de uma rua, na memória racial compartilhada por uma comunidade inteira. 

Garotos descobrem isto através das cores de suas Escolas de Samba, e elas deixam de ser simples escolas, tornam-se portas para uma Pátria que é possível ver e compreender por inteiro.







0644) Treze x Botafogo (12.4.2005)



De passagem por João Pessoa há duas semanas, caiu-me do céu no colo a oportunidade de ir ao Estádio Almeidão matar as saudades dos velhos tempos, vendo a decisão do 1º. Turno do campeonato paraibano. Era um sábado de Aleluia, e na arquibancada as piadas giravam em torno de temas como “jejum de títulos”, “malhar o judas”, etc. Achei o jogo ótimo, mesmo não tendo gostado de como o Galo se portou. Tendo ganho o primeiro jogo por 3x0, o Treze entrou em campo com aquela postura idiota de quem tenta perder por 2x0 para ficar com o título. No primeiro tempo, levou 40 minutos de sufoco, e só ameaçou duas vezes, no finzinho. No segundo tempo, a mesma coisa.

O Botafogo sofreu o Calvário dos Afobados, dos que têm a obrigação de fazer 3 gols e vão se desesperando a cada chance perdida e a cada minuto mastigado pelo relógio. Quando um time nessas condições perde um pênalte aos 30 minutos de jogo, a vontade que dá é ajoelhar no meio-fio e bater com uma lata na cabeça, não é mesmo? Méritos para o time do Bota, que não se abateu, conseguiu um gol no começo do segundo tempo e chegou a acreditar, com razão, que poderia fazer o placar de que precisava. O gol de empate do Treze decidiu o jogo. O segundo foi só para começar a festa.

O placar moral do jogo teria sido 2x1 para o Botafogo, que atacou mais, demonstrou mais organização em campo, perseguiu o resultado, tomou a iniciativa do jogo em todos os momentos. O Treze teve uma defesa impecável que ganhou 100% das bolas altas e perdeu muito poucas por baixo. O ataque é muito elogiado, mas nesta tarde, pelo que vi, foi uma nulidade. Toquezinho pra lá, toquezinho pra cá, evitando a área como a polícia do Rio evita os morros. Só se salvou o Raphael, que entrou no fim e fez dois gols de artilheiro, de quem pega a bola e emburaca: ”Sai do meio que agora eu vou fazer um gol!”.

O Treze aparentemente queria recuar, chamar o Bota, e decidir o jogo nos contra-ataques. Só que o Botafogo, ao perder a bola no ataque, matava imediatamente a jogada para se recompor atrás, o que lhe valeu alguns cartões amarelos. As virtudes maiores do time do Galo me pareceram a calma, o toque de bola sem afobação, um goleiro seguro, uma zaga quase imbatível (excetuando a incrível pixotada no lance do gol). Faltou um lançador rápido que enfiasse, antes do impedimento, a bola em profundidade que os atacantes esperaram o jogo inteiro.

Treze x Botafogo são o clássico que melhor exprime a rivalidade Campina x João Pessoa, uma rivalidade saudável quando fica apenas no terreno do jogo, da gozação, do “Mas teu time é ruim, Fulano!”. A lamentar alguns arranca-rabos à saída do estádio; será que chegou aqui a praga das pseudo-torcidas que usam a camisa dos clubes como disfarce para brigas de gangs? Em todo caso, eu, que não piso mais no Maracanã nem por um decreto, matei as saudades de um bom jogo de futebol. E o Galo é o Galo, o resto é conversa.