sexta-feira, 31 de agosto de 2018

4381) Variações em torno do pós-vida (31.8.2018)




Eu imagino às vezes que existe uma seita no norte da Mongólia para quem o inferno consiste em não se ter consciência dele.

Explicando melhor: o inferno não é um lugar diferente da Terra. É a ilusão de estar vivendo ainda, no mesmo mundo onde existia antes de morrer. Uma ilusão sádica, que Swedenborg anteviu ao seu modo, num texto recolhido na Antologia da Literatura Fantástica, de Borges, Casares & Ocampo:

Os anjos me comunicaram que quando Melanchton faleceu foi-lhe destinada no outro mundo uma casa ilusoriamente igual à que tivera na terra. (Ocorre o mesmo com todos os recém-chegados na eternidade, e por isso acreditam que não morreram.)
(Swedenborg, “Um teólogo na morte”)

A pessoa morre durante o sono, mas em espírito acorda na manhã seguinte e tudo lhe parece ser a continuidade daquela vida anterior.

Só que a pessoa agora está (para usar a linguagem cibernética) rodando numa simulação do tempo que viveu na Terra. Um simulacro no qual ele não percebe nenhum erro de continuidade.

Seria de fato interessante que não existisse o Inferno convencional (fogo, tridentes, demônios sádicos, etc.). O morto teria que prosseguir vivendo.

Ou, melhor ainda: voltaria ao instante do nascimento.  Teria que repetir tudo, passar por todas as mesmas circunstâncias de bebê, criança, jovem, etc.  E poderia haver dois modos de replay: modo amnésico e modo aprendizado.

Não estou delirando – tem um conto de Machado de Assis que consiste exatamente nisso: “A Segunda Vida” (em Histórias Sem Data, 1884). Um tal de José Maria afirma ter morrido e nascido de novo, com memória da vida passada; isto o levou a, da segunda vez, ter uma vida muito pior do que a primeira, porque a memória o deixava receoso de cometer erros. Com isso acabou privando-se de uma infinidade de coisas e cometendo a mesma quantidade de erros, só que de outra espécie.

Este seria o “modo aprendizado”, a chance de fazer alguém consertar, no pós-vida, as mancadas que deu.

O “modo amnésico” (o cara nasce de novo, mas não lembra de nada) coloca um problema filosófico: a gente não lembra do que aconteceu e pensa que esta vida aqui é a primeira e única. O que pode ser o presente caso.  Quantos milhares de vezes não já terei tentado escrever o presente artigo?

Podemos imaginar uma seita para quem o Paraíso não precisasse ser o Paraíso convencional (nuvens, asas, harpas). Seria um Paraíso bem parecido com a vida que a pessoa desfrutou na Terra. Como a pessoa fez por merecer algum tipo de recompensa, essa pós-vida se assemelharia à vida física, seria quase um prolongamento benigno dela.

A pessoa fica vivendo numa casa parecida com a sua, e acontecem-lhe coisas parecidas com o que na vida em carne e osso lhe provocaram boas reações; e la nave va. Esse Paraíso seria uma mistura de “volta sentimental” e “amnésia protetora”. Uma dona de casa viverá uma rotina de refeições que dão certo e faxinas leves; um Hell’s Angel terá aventuras ruidosas e inconsequentes.

O Inferno desse mundo seria, simetricamente, uma vida onde tudo acontecia da maneira errada. Doenças, dívidas, contratempos, desemprego... O sujeito não entende (ele pensa que ainda está na vida terrena) por que seu time sofre derrotas tão acachapantes para equipes menores, ou porque a mulher o trai, ou por que o patrão no escritório sabota seus projetos e retém seu contracheque.

O cidadão afrouxa a gravata, pára pra tomar um cafezinho no bar da esquina (o café é frio, com gosto de rato) e pensa: “Porra, que inferno, o que foi que eu fiz pra ter que passar por isso tudo?”. E não saberá o quanto está perto da Verdade.













quarta-feira, 29 de agosto de 2018

4380) Contracapa de Reddit (29.8.2018)




(ilustração: Theo Ellsworth)


&  se a Natureza entrasse em greve nem ela mesma escapava

&  a arte de fazer perguntas tão claras que não têm necessidade de resposta

&  se no mundo houvesse justiça para todos a gente nem ia perceber a existência da justiça

&  os círculos concêntricos daquela pedra que caiu na água no ano passado ainda não chegaram nas margens

&  basta aceitar o Absurdo e tudo começa a fazer sentido

&  apanhar e não reagir, não por bondade, mas por estratégia

&  certas mentes precisam orbitar em torno de um valor absoluto qualquer, senão viram farofa no ventilador

&  se você ensinar um prisioneiro a garatujar memes na parede da cela, pode até deixar a porta aberta

&  a palavra “amor” é uma espécie de dinheiro que compra qualquer coisa

&  ninguém escapa de uma guerra, nem mesmo quem sobrevive

&  toda mudez será castigada

&  tem dias que eu estou tão puto que dá vontade de sair pra rua só pra reagir a um assalto

&  quando eu morrer, até de dor de dente eu vou sentir falta

&  a verdade é que se existisse um mosteiro medieval para ateus, eu já estava lá há muito tempo

&  o que acontece com meu corpo durante o sono é metade conserto e metade desmoronamento

&  na democracia a gente tem a chance de escolher os próprios sequestradores

&  a mente humana fica teimando em tirar conclusões, mesmo quando dispõe apenas de três palavras, meia vírgula e um ponto de exclamação com validade vencida

& às vezes a gente pensa que chegou a uma síntese mas o que tem em mãos é um coquetel de incongruências

&  um bom indício de como o mundo funciona é que uma doença pode ser contagiosa, mas a saúde não é

&  o Paraíso é tentar comer carne de sol com um talher de pano

&  o governo é uma espécie de Robin Hood institucionalizado, que toma dos ricos e distribui com os pobres

&  o mundo é assim: Deus entrega os produtos e o Diabo organiza a logística

&  o mundo é um diálogo de surdos e uma mímica de cegos

&  aquela sensação de receber a encomenda de uma Ilíada e pensar que um soneto bastaria

&  o futuro está tão incerto que nem sombra eu tô projetando

&  técnica e espontaneidade não são antônimos, são complemento um ao outro, como perna esquerda e perna direita

&  é um cara tão sem autoridade que se ele tanger uma galinha a galinha fica

&  o Himalaia desconhece o centímetro

&  a violência pode até ser inevitável, mas não é indispensável

&  o planeta vive nos mostrando como se faz para sobreviver a si mesmo

&  troco dez quilos de amor por duzentas gramas de respeito

&  certas pessoas são o mau hálito do mundo

&  para dar inspiração poética, tanto faz um cavalo, um cavaleiro, ou uma carga da cavalaria

&  a dor alheia não diminui a nossa, senão o sadismo imperava

&  o fogo não decifra o que consome

&  o problema dos elogios é que eles acabam inflacionando a expectativa de terceiros

&  cada caso é um cazzo

&  sou contra a pena de morte, basta cortar as duas mãos e furar os olhos

&  se não fosse a grande imprensa, não teríamos como esconder tanta coisa que acontece no país

&  algumas empreitadas nossas dão tão certo que a gente chega fica com uma espécie de remorso

&  o grande perigo hoje em dia é ir dar uma volta nas redes sociais e ser atingido por uma fala perdida

&  poesia é quando alguém escreve FOGO num quarto escuro e o quarto se clareia

&  quem passa o tempo todo pedindo calma é porque está precisando

&  uma banda de rock composta por oito integrantes, todos guitarristas

& um mundo pós-apocalíptico onde poços de gasolina vazios são usados como porão de guardar prisioneiros

&  até mesmo uma indústria de roupinhas para cachorros deve achar que presta um serviço à humanidade












sexta-feira, 24 de agosto de 2018

4379) Bellamy, Machado de Assis e Borges (24.8.2018)




Um dos romances de antecipação científica mais famosos do século 19 foi Looking Backward 2000-1887, de Edward Bellamy, publicado pela primeira vez em 1888. Grande sucesso de público. Diz-se que foi o terceiro livro de autor norte-americano a atingir a vendagem estupenda que atingiu, comparando-se apenas a A Cabana do Pai Tomás (1851) de Harriet Beecher Stowe e Ben Hur (1880) de Lewis Wallace.

Looking Backward conta a história de Julian West, um rapaz de 1887 que adormece um sono hipnótico e desperta no futuro, no ano 2000, na mesma cidade de Boston onde morava, só que agora a cidade faz parte de um futuro utópico e socialista.

O livro segue o padrão normal das utopias do século 19 e começos do século 20 – alguém chega de supetão numa sociedade futura ou remota, espanta-se com as transformações sociais, e recebe a companhia de um cicerone que vai explicar-lhe como aquele mundo funciona. O mundo de Bellamy, no caso, é racionalista, socialista (embora ele evite a palavra), cheio de pequenas justiças compulsórias.

Bellamy pode ter também influenciado várias obras obscuras mas importantes da literatura utópica ou especulativa brasileira, tais como São Paulo no Anno 2000 de Godofredo E. Barnsley (1909) ou O Reino de Kiato de Rodolpho Teófilo (1922).




Mas nem é disso que quero falar, e sim de certo curioso efeito narrativo do livro. Antes de contar aos seus leitores “futuros” como foi parar no mundo deles, Julian West começa dizendo o ano em que nasceu.


O começo de Looking Backward diz (tradução minha):


CAPÍTULO I

Vi pela primeira vez a luz do dia na cidade de Boston, no ano de 1857. “O quê!”, vocês dirão, “mil oitocentos e cinquenta e sete? Que erro mais curioso. Ele quis dizer mil novecentos e cinquenta e sete, é claro.” Peço perdão, mas não houve nenhum erro. Eram cerca de quatro horas da tarde do dia 26 de dezembro, um dia após o Natal, no ano de 1857, não de 1957, quando eu respirei pela primeira vez o vento leste de Boston, o qual, posso garantir ao leitor, naquele período remoto se caracterizava pela mesma qualidade penetrante que tem neste ano da graça de 2000.

A surpresa sugerida, é claro, é porque os leitores de 2000 não podem acreditar que o rapaz tenha 143 anos.

Pode-se comparar o início desse livro com o início do conto de Machado de Assis, “O Imortal” (1882), publicado pela primeira vez na revista A Estação (Rio de Janeiro), entre julho e setembro de 1882, como folhetim seriado.

Assim começa o conto de Machado:


— Meu pai nasceu em 1600...

— Perdão, em 1800, naturalmente...

— Não, senhor, replicou o Dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600.

Estupefação dos ouvintes, que eram dois, o Coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.

— Não, senhor; nasceu em 1600.

É visível a semelhança retórica das duas aberturas. Anuncia-se a data (remota) do nascimento do personagem, há uma reação de espanto, uma correção é sugerida, mas o narrador reafirma, e começa uma transição para uma concretude dramática que faz esquecer o resto.

Quando percebi essa semelhança imaginei que Machado (1839-1908), ao escrever seu conto fantástico estaria meio que citando Bellamy (1850-1898), escritor contemporâneo seu. Só depois me dei conta de que o conto de Machado é anterior ao romance de Bellamy.

As Carpideiras do Plágio já começam a puxar seus enormes lenços, mas peço que façam uma pausa enquanto concluo minha argumentação. Bellamy, pelos relatos de que se dispõe, concebeu seu romance e trabalhou nele entre 1880 e 1887. Seria capaz de ler em português? Teria tido acesso à revista A Estação? Teria não apenas lido o conto de Machado, mas gravado na memória o recurso estilístico desta abertura?

Note-se que a semelhança não é entre os dois argumentos, os dois enredos. Em casos assim, é muito mais simples imitar uma obra que não se leu. Basta que outra pessoa tenha lido a obra original e faça um resumo; nesse resumo o segundo autor pode se inspirar para fazer a obra derivada. (Yann Martel afirma que leu apenas um resumo do livro de Moacyr Scliar, Max e os Felinos, para escrever seu A Vida de Pi, que foi acusado de plágio.)

O que há de semelhante é apenas o jeito de começar a história que desde o título promete tratar de alguma transgressão temporal: a afirmação de uma data espantosa, depois uma dúvida, depois uma reafirmação. Detalhe que pode perfeitamente ser omitido por quem se dispuser a resumir qualquer um dos dois textos. Semelhança de uma dúzia de linhas. A gente só percebe porque se trata do início de ambas as histórias.

Se a dúvida fosse ao contrário (“Machado imitou Bellamy?”), seria teoricamente mais plausível – se não fosse a questão da data. Machado era bem informado, lia (e traduzia) do inglês, tinha acesso a livros importados. Mas... quando escreveu “O Imortal” o livro de Bellany não existia ainda.

Mais interessante do que a discussão das precedências, porém, é a comparação estilística.

O texto de Bellamy, pelo menos nessa “cabeça” selecionada, é seco e preciso, apesar de uma certa coloquialidade meio forçada, aos olhos de hoje.

Machado, que fazia aberturas brilhantes, faz mais uma, não na dúvida cronológica, ou “cronoclásmica”, sobre quem nasceu quando, mas porque ele traça um verdadeiro diorama visual, com pinceladas de escuro e claro. O silêncio, a varanda, o lampião. A contraluz, e o vento.

É um parágrafo muito visualizador, e, recortado do presente contexto, poderia abrir um “capítulo 1” de muitos escritores de aventuras.

Machado não escrevia grandes cenas de ação épica, mas quando um detalhe de suas histórias precisa de uma ilustração vívida, sólida, indicando ambientação, tensão narrativa, aquarela social, ilustração de revista, ele faz com pinceladas assim.

E se alguém achar pouco a coincidência ou ressonância entre ele e Bellamy, há o episódio daquela figura de linguagem que eu chamo a Indecisão Borgiana, quando o Autor discorre em voz alta para o Leitor sobre a sua dúvida quanto ao nome de um personagem, à época em que aquilo se deu, ao cenário de uma trama. Em vez de fundar a narrativa numa ponto geográfico ou cronológico preciso, ele faz esse ponto flutuar sem causar problema.



No “Tema do Traidor e do Herói” (1944, Ficções), Borges abre com este parágrafo (tradução de Maria Julieta Graña e Marly de Oliveira Moreira, Sabiá, 1989):

Sob a notória influência de Chesterton (narrador e exornador de elegantes mistérios) e do conselheiro áulico Leibniz (que inventou a harmonia prestabelecida), imaginei este argumento, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que não me foram ainda reveladas; hoje, 3 de janeiro de 1944, vislumbro-a assim.

A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a república de Veneza, algum estado sul-americano ou balcânico. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824.

Ou seja, ninguém está querendo que a gente contamine de realidade essa história que podia acontecer em muitos tempos, em muitos lugares. (Seria interessante uma antologia seguindo as dicas acima.)


No conto “O Homem no Umbral” (1952, O Aleph (tradução de Flávio José Cardozo, Globo/MEC, Porto Alegre, 1972), Borges desta vez faz um preâmbulo onde atribui toda a história que se segue a um relato de um diplomata. Depois diz:

A exata geografia dos fatos que vou contar importa muito pouco. Além disso, que precisão conservam em Buenos Aires os nomes de Amritsar ou de Udh? Baste-me dizer, pois, que naqueles anos houve distúrbios numa cidade muçulmana e que o governo central enviou um homem forte para impor a ordem. Esse homem era escocês, de um ilustre clã de guerreiros, e no sangue levava uma tradição de violência. Uma só vez meus olhos o viram, mas não esquecerei [...]

Para o narrador tanto faz estar ambientando sua história nesta ou naquela cidade da Índia. O local pode ser qualquer um. O que vale mesmo é o que vem depois dessa incerteza topográfica: Baste-me dizer, pois... . Borges investe pesado no realismo; não é um quadro a óleo cheio de detalhes e de profundidade de campo, como o do conto de Machado. Ele prefere jogar na mesa uma situação concreta de história que pode ser militar, de aventura, de faroeste ou samurai. Não é tão visual quanto a pintura de Machado, mas tem energia dramatúrgica. É um peão-quatro-de-rei que qualquer leitor entende e aceita.

Engraçado como Borges também cria seus precursores, porque esse falso-vacilo como filigrana de estilo surge com variações em seus relatos. E talvez só em retrospecto eu perceba o quanto isso já está em Machado, em muitos trechos como no citado acima:

A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas.

A mesma dúvida quanto à cidade (a cidade tanto faz, não influi na narrativa) e logo em seguida ele pular para um início preciso e já em movimento. Isso quando Borges nem era nascido, mas ninguém me garante que semana que vem, procurando outra coisa, eu não encontre um terceiro exemplo para comparar com os de Machado e dos outros.




(antologia de Roberto Causo, Ed. Devir, que inclui o conto "Um Imortal" de Machado de Assis)








segunda-feira, 20 de agosto de 2018

4378) Alice e Emília (20.8.2018)




Vejo por aí muitas discussões literárias sobre a questão de “personagens femininas típicas”, sobre a necessidade de uma literatura que reproduza a psicologia, o comportamento, os valores etc. de mulheres verossímeis.

Essa crítica não cessa de mostrar muitas personagens que ou são inverossimilmente abobalhadas ou inverossimilmente heróicas.

(Eu diria que o mesmo se aplica a personagens masculinos – mas essa é outra questão.)

Anos atrás traduzi um livro fascinante de Isaac Asimov que conta um breve espaço de tempo na vida de Hari Seldon: Prelúdio à Fundação. Seldon, um dos melhores personagens de Asimov, é o cientista que criou a Psico-História, a ciência de calcular probabilisticamente e psicologicamente a dinâmica das sociedades humanas a ponto de predizer certos fatos com séculos de antecedência.

Nesse livro, ele é auxiliado por uma cientista chamada Dors Venabili. O livro foi escrito numa época em que as reivindicações feministas pipocavam por todo lado nas revistas literárias. Talvez por isso o romance (que aliás é bom) tem uma dupla de protagonistas que, se o livro fosse adaptado para o cinema, poderia ser interpretada por Woody Allen (Hari Seldon) e Sigourney Weaver (Dors Venabili). Porque ele, apesar de cientista genial, é do ponto de vista prático um sujeito meio abestado, e é ela quem o protege, assessora, aconselha, inclusive quem o defende na hora da briga física.



Ou seja: substitui-se o clichê da mocinha indefesa pelo clichê da mocinha que é uma versão mulher de um macho típico. Isso é personagem feminino?

Alguém pode objetar que há inúmeras situações, na vida real, em que uma pessoa (homem ou mulher) meio abestalhada e indefesa é protegida por outra pessoa (homem ou mulher) experiente e capaz de encarar brigas violentas.

Não discuto esse aspecto de verossimilhança, apenas observo que toda a literatura popular tipo pulp fiction procede como se esta fosse a situação mais frequente na vida humana.

Perguntaram certa vez a Salman Rushdie “qual o primeiro livro por que ele se apaixonou”. A resposta dele foi:

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Não apenas pelas razões óbvias (a toca do coelho; o “me coma / me beba”; um sorriso sem um gato; o Chapeleiro Louco, a Lebre de Março, o Arganaz; “não há lugar, não há lugar”; “sopa da noite, linda sopa”); mas porque eu me apaixonei pela autoconfiança de Alice. Ali está ela, perdida no País das Maravilhas, mudando de tamanho o tempo inteiro, sem saber nada do ambiente que a cerca, e mesmo assim ela é tão irresistivelmente cheia de opiniões a respeito de tudo, sempre contradizendo as pessoas e estalando os dedos diante dos poderosos e dizendo: “Vocês não passam de cartas de um baralho!”. Meu tipo de garota.

Diante dessa descrição, não há como não lembrar de uma personagem feminina parecida, a Emília, de Monteiro Lobato, no ciclo do “Sítio do Picapau Amarelo”. Sei que hoje em dia a maioria das pessoas lembra do seriado da TV Globo, mas é da Emília dos livros que estou falando, e à qual poderia se aplicar totalmente a descrição de Rushdie faz da personagem de Carroll.

Que aliás deve ter ajudado a inspirar o escritor paulista – como se sabe, na coleção de livros infantis de Lobato aparecem traduções/adaptações de clássicos infantis, com o “Alice” entre eles. De modo que alguma transfusão de sangue literário deve ter passado da personagem de Carroll, bem anterior, para a boneca de olhos de retrós.

São personagens que, talvez até por serem garotas em livros destinados a outras garotas, o autor não procurou “tornar femininas”, o que em mãos de autor homem geralmente implica em tornar abestada ou tornar sexy.

Alice e Emília são meninas espertas, meio avoadas, meio corajosas, meio trapalhonas, cheias de recursos e ao mesmo tempo descobrindo coisas novas o tempo inteiro. Podem ser implicantes, irreverentes, negociadoras, mal-educadas, prudentes, cabeças-de-vento, interesseiras. São meninas reais – nesse sentido vejam o quanto Emília, a boneca, é mais real e mais interessante do que Narizinho, que apesar de ter seu charme tem uma certa aura politicamente correta.

O que acontece com alguns autores homens é que eles têm uma dificuldade cultural em se colocar no lugar de uma mulher. Receiam abrir mão de seu raciocínio de homem, sua intuição de homem, sua capacidade avaliadora de homem. Ou seja, de um conjunto lentamente conquistado de “olhares masculinos” sobre tudo.

Não sabem como é uma mulher por dentro (não me refiro a todos, claro). Mesmo quando precisam se colocar no ponto de vista delas, são sempre umas “elas” desenhadas pelo olhar masculino.

Em revistas literárias têm aparecido com certa frequência trechos satíricos em que escritoras parodiam o jeito masculino de descrever personagens femininas. Elas descrevem os homens do jeito que os escritores homens descrevem as mulheres em seus livros. O resultado é geralmente hilariante e plausível.

Coisas tipo:

“Sir Stanley Nottingham vinha descendo lentamente a escadaria de sua mansão. Dentro da camisa engomada de linho, seu peito musculoso e peludo erguia-se compassadamente. Sua mão morena deslizava ao longo da balaustrada, enquanto ele sentia a cada passo a compressão do seu sexo volumoso no interior da cueca;  uma aura de masculinidade exsudava de seu vulto atlético enquanto ele descia os degraus seguido pelos olhos fascinados de Lady Winterbottom.”

Os homens descrevem mulheres nesse estilo, há séculos, e vêm se safando.












sexta-feira, 17 de agosto de 2018

4377) O último processo de Kafka (17.8.2018)




(ilustração: Misha Vyrtsev)

Em março de 1939, quando o Alemanha nazista anexou a Tchecoslováquia, um escritor judeu chamado Max Brod fugiu imediatamente de Praga, e por vias tortuosas acabou se refugiando em Tel Aviv. 

Brod não quis correr riscos: era um judeu militante, e uma figura pública na capital tcheca. Aos 24 anos publicara um romance de grande sucesso, O Castelo Nornepygge (1908), logo seguido por outras obras que tornaram seu nome conhecido não só nos meios literários tchecos, mas também na Alemanha – como muitos tchecos cultos do seu meio, ele escrevia em alemão.

Ao fugir, ele levou consigo, curiosamente, uma grande quantidade de manuscritos deixados por outro autor, grande amigo seu, chamado Franz Kafka, um nome que apenas algumas centenas de pessoas do meio literário de Praga sabiam quem era.

A obra de Max Brod parece ter sido esquecida; ao salvar o espólio do amigo, ele parece ter condenado a si próprio a ser eternamente “o amigo que salvou da destruição a obra de Kafka”.

Kafka é um dos dez ou doze autores de quem já disse algo tipo “sua obra condensa, resume e define o que foi o século 20”.

Em vida, Kafka (que trabalhava como um advogado) era conhecido nos meios literários por coletâneas de contos como Contemplação (1912) e Um Médico Rural (1919), além das noveletas A Metamorfose (1915) e Na Colônia Penal (1919). Quando morreu em 1924, coube a Brod editar postumamente obras como O Processo (1925), O Castelo (1926) e America (1927).

Na fuga de 1939 para Tel-Aviv, Brod levou consigo uma quantidade de outros escritos deixados por Kafka. Esse espólio, desde então, tem sido objeto de uma briga jurídica tipicamente kafkeana, sobre a qual já escrevi aqui:


Esses manuscritos, depois da morte de Max Brod em 1968, em Tel Aviv, acabaram ficando presos num limbo supranacional. Estão como aquele personagem de Tom Hanks no filme Terminal (2004) de Steven Spielberg, que não pode sair do aeroporto nem embarcar em nenhum voo porque seu país de origem deixou de existir.

Os alemães reivindicam para si o material, que é escrito em alemão. Os judeus querem mantê-lo consigo, por ser a obra de um autor judeu.

A obra de Kafka tem recebido ao longos destas décadas numerosas leituras. Para os de viés psicanalítico, ele se debatia contra a autoridade implacável e surda de um pai dominador, contra o qual escreveu a famosa Carta ao Pai (1919).

Para os religiosos, ele se defronta com o silêncio de um Deus que se manifesta através de decisões incompreensíveis e se recusa ao diálogo.

Para os de formação política, ele prenuncia os estados totalitários de hoje, que se valem de instrumentos como a burocracia, a tortura e a arbitrariedade jurídica. Ou então como o pesadelo de um judeu prefigurando a catástrofe que as décadas seguintes trariam sobre o sue povo.

A labiríntica batalha jurídica entre alemães e judeus pela obra ainda inédita do autor tcheco é descrita no livro (a sair em breve) Kafka’s Last Trial de Benjamin Balint, resenhado aqui por Adam Kirsch:


Kirsch chama a atenção para o fato de que esse limbo, essa indefinição, esse confuso estatuto de pertencimento e de não-pertencimento que caracteriza a vida e a obra de Kafka talvez seja um dos motivos profundos do seu apelo para o leitor moderno.

Kafka era tcheco por nascimento, judeu por etnia e cultura, alemão pelo idioma. Tinha lealdades e afiliações contraditórias. Como todos nós, hoje.

O século 19 em que nasceu era ainda o século do colonialismo, da Europa que se supunha onipotente, dos nacionalismo em consolidação ou em expansão voraz. Supunha-se, naquele tempo, que para alguém era possível (e até desejável) ser apenas alemão, ser apenas francês, ser apenas inglês, e que isso bastaria para fornecer toda a “fórmula química” capaz de definir um cidadão.

A falácia nacionalista (ou a fantasia nacionalista, para usar um termo mais suave, mais compreensivo) foi estilhaçada pela economia e pela política do século 20 – o Século de Kafka.

Nenhum ser humano pertence a uma só categoria, e à medida que as crises sociais e as revelações históricas se expandem, essas categorias se tornam cada vez mais contraditórias, rasgando e dilacerando a alma de cada um.

Pergunte-se (para dar um exemplo extremo) a uma mulher negra do Nordeste brasileiro se ela se considera “mais” mulher, ou “mais” nordestina, ou “mais” brasileira, ou “mais” negra. Qual dessas categorias a define de forma mais essencial? Cada pessoa dará uma resposta diferente.

São lealdades contraditórias. Cada pessoa (também eu, e cada um de nós) é produto do Século de Kafka, o século das essências fragmentadas, da busca de um Centro que não mais existe.














terça-feira, 14 de agosto de 2018

4376) A mesa de vidro da madame (14.8.2018)




Fiz minhas primeiras traduções profissionais para  a Rio Gráfica Editora e para a atualmente combalida Editora Abril. Eu traduzia livrinhos de bolso com histórias de amor, e alguns de faroeste, que eram bem mais divertidos, e mais bem escritos. Assinava tudo com pseudônimo.

Nesse tempo, eu morava no Catete. Tinha um bar perto de casa onde eu ia às vezes tomar uma cerveja quando aparecia algum amigo em casa e a geladeira estava desprevenida. A gente sentava, ficava por ali tomando uma. Tinha uma turma de habituês onde fluía um papo interessante sobre futebol, sobre os acontecimentos do país e sobre a mecânica da rua.

Eu ia até contar outra coisa, especificamente sobre os problemas da tradução literária, mas vou fazer uma pequena digressão para falar sobre esse conceito, a Mecânica da Rua. Toda rua tem um fluxo de funcionamento, de administração confortável dos eventos rotineiros, e de assimilação segura dos imprevistos. “Imprevistos” são um carro que morre o motor ali e engarrafa tudo, ou um ameaço de incêndio no depósito de madeira, ou uma briga...

Tudo isso influi na nobre arte de fazer funcionar a Mecânica da Rua.

Nesse dia, na mesa vizinha, aquelas mesas Antarctica de metal, com pernas dobráveis em X, cercadas de tamboretinhos, estava rolando uma conversa de dois caras que eu conhecia dali mesmo, dois caras que faziam mandados e ajudavam em tarefas variadas.

O mais velho era um mulato forte, de bigode. Estava dizendo pro outro:

– Ela devia ter medido o tamanho desde antes, pra ver se subia no elevador.

O outro se chamava Sinval, era do Piauí e botafoguense. Disse:

– Zeca, a mulher compra uma mesa pro apartamento dela. Ela tem tantas pessoas pra almoçar, tantos metros de sala... Ela escolhe a mesa pensando nesse tamanho.

– Mas a mesa é de vidro, a mesa chega, os caras descarregam, e aí a mesa não cabe no elevador. Ela não pensou nisso?

– Mulher não pensa nessas coisas, ela pensa em como a sala dela vai ficar.

– Mulher pensa em tudo, mas ela confia que se tiver um problema, alguém resolve, porque ela tá pagando. Aliás, já que a gente ganhou, bora gastar.

Pediram mais cerveja, um tiragosto e como a conversa parou por aí eu tive que perguntar.

– Ô Sinval, e afinal de contas, a mesa voltou?

– Voltou nada. A gente viu de longe e foi perguntar. Eram só dois caras. Se coubesse no elevador eles levavam, mas pra subir cinco andares com um tampo de vidro redondo daquele tamanho, eles precisaram da gente.

– E deu certo?

– Claro. Era uma escadinha “miserave” de estreita, mas deu. O problema era que os dois caras são da vidraçaria. Eles acham que são as únicas pessoas no mundo que sabem que vidro quebra.

– Ficavam dando instruções – disse Zeca. – “Cuidado... não pode bater na parede... Bora dar a volta... não deixa escapulir...”

A madame era generosa, acabou dando aos dois o que equivaleria hoje a uns 50 reais e eles foram tomar uma. Mas isso me ficou na cabeça porque dias depois (nessa época eu já estava traduzindo para a Editora Récord, em São Januário) eu fui pegar um livro novo (oba, um Asimov!) e parei pra conversar numa das salas da revisão.

A moça me chamou e começou a me dar lições. Moça é um eufemismo, porque naquele tempo eu tinha uns 38 anos e ela já galgava a encosta dos sessenta, mas era muito delicada, muito fina, tinha unhas longas pintadas de cor-de-rosa com as quais ela percorria linha por linha, parando em certas palavras e fazendo uma marquinha embaixo, bem de leve.

– O senhor repetiu muito aqui – disse ela. – Observe. “Olhos”... “olhou”... “olhando...”  Em quatro linhas! É muito. Não concorda que fica feio?

– Sem dúvida – disse eu.

–  “Look” e “eyes” são palavras muito diferentes... Então eu tomei a liberdade de refazer a frase aqui... Tirei este, não fez falta... Troquei esse “olhou” por “percebeu”...

– Ficou bem melhor.

– Nem preciso dizer isso ao senhor, mas é o que eu penso sempre: repetição de palavras é um ponto cego na cabeça da gente. A gente faz e não vê que está fazendo.

Guardei essa para o meu caderninho. Eu estava nas fraldas descartáveis do ofício e ela já devia fazer aquilo há décadas, mas chamava um cabeludo como eu de “o senhor”; e se eu pudesse passaria tardes inteiras ali com ela, vendo a unha cor-de-rosa dela passar a borracha em meus pecadilhos de novato.

Escritor, tradutor: peça para ver a revisão dos seus textos; aprenda com elas. Sempre há o que aprender.

O que é a tradução de um texto literário? É o transporte de uma mesa de vidro que precisa chegar intacta até um quinto andar.

Tem uma equipe e ninguém está ali pra ser mais forte, nem mais expedito, nem mais habilidoso, nem mais inteligente do que ninguém. Todo mundo está ali com uma única missão: que o texto, seja ele uma fantasia romântica de Geneviève Sauvignon ou um policial de Raymond Chandler, chegue inteiro, em boas condições, ao leitor que o espera no andar lá em cima.

Tudo pode ser questionado, tudo pode ser discutido, ninguém ali é um pequeno déspota, ninguém ali é um sabotador do trabalho alheio. Todos estão a serviço do autor, do leitor e principalmente do texto. “Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era” – como já disse o poeta Drummond.










domingo, 12 de agosto de 2018

4375) Dia dos Pais (12.8.2018)




Eu não sou muito acompanhador dessas efemérides, Dia disso, Dia daquilo. Nem meu aniversário eu comemoro. (Não, não há problemas, nem teorias justificatórias. Questão de hábito, apenas.)

Como hoje está todo mundo nas redes sociais botando fotos e contando episódios (alguns muito bonitos) sobre seus progenitores, lembrei de postar algo sobre Seu Nilo. O pobrema é que todo ano tem essa cerimoniazinha e não quero ficar repetindo as postagens dos anos passados.

Vai daí, reproduzo abaixo um trecho do Capítulo 4 (“Deixa a vida me levar”) do meu romance recém-lançado Bandeira Sobrinho – Uma Vida e Alguns Versos (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017). É um retrato 3x4 daquela figura indescritível. (O capítulo prossegue falando da minha mãe, mas quem quiser ler vai ter que encomendar o livro no link abaixo.)



-oOo-

(...)

Algum tempo depois dessa cantoria eu passei uns dez dias em Campina (eu já morava em Salvador, na época). Estava surgindo a possibilidade de ir morar no Rio, porque Elba Ramalho tinha gravado algumas músicas minhas que estavam rendendo direitos autorais. Ir morar no Rio! Eu estava morrendo de medo, se bem que hoje percebo que aquilo não era medo coisa nenhuma, era vontade.

Uma noite minha mãe (quando eu vinha passar uns dias em Campina eu ficava na casa dos meus pais, no bairro do Alto Branco) me disse que ia fazer um bolo porque era aniversário de alguém da família, algum parente que vivia longe; mas tudo na vida dela era pretexto para bolo, etc. E ia fazer um jantar mais caprichado.

Às oito da noite, eu liguei de um orelhão, perto do Bar de Seu Manu.

– Bença, mãe.

– Deus lhe abençoe. Tá aonde?

– Tou aqui perto do Edifício Rique. Tem bolo mesmo?

– Oxente, eu não disse que tinha? Tá pronto. Vem jantar?

– Acho que vou. Seu Nilo tá acordado?

– Tá por aqui, doido que você chegue pra conversar.

– Eu vou levar um amigo meu, Bandeira Sobrinho, aquele cantador da Rádio Borborema.

– Traga, traga mesmo. Tem bolo, tem café, mas se quiserem cerveja vão ter que trazer.

– Deus me livre, eu de segunda-feira pra cá tô arripunando cerveja.

Ela deu aquela risada longa dela – “ra-rraaaai!...” – e eu desliguei.

Foi muito bom ter levado Bandeira, porque ele e meu pai sentaram no terraço e daí a pouco se envolveram numa discussão sobre formas de soneto, onde cada qual procurava lembrar mais variantes do que o outro.

Para os que não conheceram meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, basta fazer uma lista breve:

1)      Era baixinho. Não sei a medida da altura dele. Era charadista e enigmista, membro da TerNor (Tertúlia Nordestina), colaborador de incontáveis revistas Brasil afora, com o pseudônimo de Pequeno Polegar. Uma vez, já morando no Rio, fui ao Círculo Enigmístico Carioca, perto da Av. Rio Branco, pesquisar uma matéria pra TV, e quando falei que meu pai tinha escrito um Dicionário do Que (locuções começadas com a expressão “Que...”), o cara foi lá dentro e trouxe um exemplar encadernado.
2)      Gabava-se de ser capaz de passar 24 horas ininterruptas recitando sonetos de autores brasileiros, inclusive dele mesmo, mas mesmo na Paraíba nunca apareceu homem nenhum que ousasse pegá-lo na palavra.
3)      Era do Recife e minha mãe era de Coxixola-PB (“A Cidade Que Precisa Dizer Que Existe”). Conheceram-se em Angelim (PE), casaram e vieram morar em Campina Grande, onde nascemos os quatro filhos: Clotilde, eu, Pedro e Inês.
4)      Nunca foi apologista, mas como trabalhou na Rádio Borborema conhecia os violeiros que passaram pelo Retalhos do Sertão, um dos mais tradicionais programas de cantoria no rádio. Para os cantadores mais antigos, como Zé Gonçalves, eu era “o filho de Nilo”.
5)      Torcia por três times: o Sport Club do Recife, na cidade onde se criou; o Treze Futebol Clube, na cidade onde iniciou sua vida de chefe de família; e o Flamengo, no seu país, que era feito em grande parte de jornais impressos e de emissoras de rádio.
6)      É simbólico da nossa relação que em 1975, quando o Flamengo foi a Campina jogar com o Treze, eu perguntei: “O senhor acha que a gente ganha?”, e ele respondeu: “E tu acha que a gente vai perder para um time fraco como o do Treze?”, e eu disse, “Peraí, Seu Nilo, a gente é quem, no seu vocabulário?” Foi um momento judaico-cristão em nosso relacionamento.
7)      Mas isso prova apenas que ele era mais romântico do que eu.

Em 1980 meu pai teve o que chamamos na época de uma “trombose”, ficou com um lado do corpo meio avariado, precisou fazer fisioterapia. Tinha que ficar apertando uma bolinha que de vez em quando escapava, e todo mundo corria a devolvê-la. Fisioterapia fica mais interessante quando vira uma diversão para todos os envolvidos, não é mesmo? Uráy, o antigo zagueiro do Treze, ia lá em casa para ajudá-lo nos exercícios, ia para dar uma força, só pela lembrança da convivência.

Foi se recuperando aos poucos, mas como deixou de trabalhar, sua diversão principal, além de ler, de decifrar e de compor charadas, e de ver TV, era esperar visitas que sentassem com ele no terraço da nossa casa na colina do Alto Branco. Ficava ali e via Campina Grande estendida horizontalmente à frente, como num filme de 70mm. Gostava de receber gente e conversar sobre as coisas boas da vida.