sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

4795) Dinheiro demais é veneno (18.2.2022)


 
Dois documentários em exibição no Netflix são tão parecidos que poderiam ser vistos como os dois episódios iniciais de uma série. São filmes diferentes, porém, feito por pessoas diferentes e abordando dois assuntos distintos.
 
O primeiro é The Tinder Swindler (Felicity Morris, 2022), sobre um picareta que se fingia de milionário no Tinder para arranjar namoradas ricas e engalobar o dinheiro delas.
 
O segundo é Fyre: The Greatest Party that Never Happened (Chris Smith, 2019), sobre um festival de música pop numa ilha distante, onde nada deu certo. Prejuízos milionários foram causados a um monte de gente, e o organizador de tudo acabou na cadeia.
 
Esses dois filmes poderiam ser vistos e pensados em conjunto com uma porção de outros que venho comentando esporadicamente aqui no blog: The Corporation (Mark Achbar & Jennifer Abbott, 2003), TrabalhoInterno (“Inside Job”, Charles Ferguson, 2010), Capitalismo, UmaHistória de Amor (Michael Moore, 2009), MarginCall – O Dia Antes do Fim (“Margin Call”, J. C. Chandor, 2011)...  E chega, né?  São muitos, e aconselho todos estes.

Minha mãe dizia, do alto de sua sabedoria caririzeira, que “tudo demais é veneno”. Isso vale para o dinheiro, também. O mundo neo-liberal de hoje (ao qual nosso país está atrelado) está bêbado de dinheiro, envenenado de dinheiro, e esse dinheiro nem é tão volumoso assim – ele apenas está concentrado numa lasquinha mínima da população. E isso permite a ocorrência de todos os absurdos descritos nos filmes acima.
 
Para ser justo, afirmo também que livro demais é veneno, café demais é veneno, cerveja demais é veneno, tudo demais é veneno.


 
James Joyce, num dos melhores contos de Dublinenses (“After the Race”, 1914), afirmou com lucidez profética: “Rapid motion through space elates one; so does notoriety; so does the possession of money.”
 
Joyce estava escrevendo no contexto da febre nascente do automobilismo, e das primeiras corridas de carros, aquelas baratinhas tossideiras e sacolejantes do começo do século passado. O movimento rápido através do espaço deixa uma pessoa inebriada; o mesmo acontece com a fama; o mesmo acontece com a posse de muito dinheiro.
 
Imagine as três coisas juntas.


Simon Leviev era um rapaz pobre de Israel, que ainda adolescente migrou para os Estados Unidos. Desde cedo começou a dar pequenos golpes. Quando entrou para o Tinder, o aplicativo de encontros, começou a se dar bem. Apresentava-se como filho de um bilionário dos diamantes em Israel. Logo no primeiro encontro, levava as mulheres para restaurantes de luxo onde o maître e os garçons o tratavam com atenção e familiaridade. Dirigia carros caríssimos, pagava passagens de avião – era aquele tipo do cara que diz para a namorada: “Londres está muito chata, hoje. Vamos jantar em Roma?...”



As mulheres caíam com gosto na conversa dele, que era bonitão e descolado. Aí começavam os problemas. “Sou um homem visado, perseguido por inimigos”, explicava ele, porque o ambiente dos diamantes envolve bilhões, interesses políticos, interesses escusos. “Estou sendo seguido... estão grampeando meu celular...”
 
Além do romance amoroso, as pretendentes estavam vivendo um romance de aventuras e se dispunham a tudo para ajudar um cara tão bacana, tão resoluto, perseguido por capangas, precisando de guarda-costas. Não há como não lembrar A Identidade Bourne, em que uma moça se mete numa intriga internacional porque simpatizou com Matt Damon.
 
E começavam os pedidos: “Bloquearam meu cartão de crédito... Você pode me emprestar 20 mil dólares? Te pago segunda-feira”. O resto está no Netflix.


(Billy McFarland)
 
O “Fyre Festival” é outra história envolvendo muita grana e muita cara de pau. O protagonista neste caso é Billy McFarland, um investidor jovem que botou alguns milhões no bolso com projetos bem sucedidos na área de cartões de crédito, passou a circular nas “altas rodas” e a sonhar “com coisas que o morro não tem”.
 
Billy gabava-se de que sua empresa, Fyre Media, tinha valor de mercado de 90 milhões; as autoridades descobriram depois que ela tinha um faturamento de 60 mil dólares.
 
De qualquer modo, Billy circulava com cantores, atletas, modelos, socialites... Diga-se dele o que se quiser, mas tinha um carisma irresistível. Pessoas que foram arrastadas para um buraco financeiro insolúvel diziam: “Eu sempre acreditei nele, ele passava uma alegria, uma auto-confiança enorme, sempre dizia, vamos acreditar, vai dar certo sim, vamos conseguir o que ninguém conseguiu...”
 
O festival de música ia ter lugar numa ilha remota das Bahamas. A divulgação maciça incluiu um filme promocional com modelos lindas e caríssimas do mundo inteiro, e começou poucos meses antes. Tudo maravilha, embora o pessoal da técnica dissesse que teria sido necessária uma antecedência de um ano para produzir aquilo num local sem muita estrutura. (Sem água potável; sem eletricidade; sem internet – pra começo de conversa).
 
Movido a carisma, otimismo e cartões de crédito, Billy vivia de jatinho pra cima e pra baixo, arrumando 30 mil dólares aqui, 50 mil acolá, enquanto centenas de trabalhadores montavam palcos, tendas, vilas, som, luz, o escambau. E no dia do Festival, com gente do mundo inteiro desembarcando no aeroporto (depois de pagar com antecedência) tinha sido montado, quando muito, um terço da estrutura necessária.
 
O resto está no Netflix.  


 
O dinheiro embriaga, principalmente quando em vez de ser contado em moedas de ouro é contado em zeros eletrônicos. A velocidade embriaga, a velocidade dos jatinhos, do café da manhã em Oslo, o almoço em Amsterdam, o jantar em Paris. A fama embriaga: o selfie tirado com atrizes californianas, modelos russas, magnatas alemães, príncipes sauditas.
 
Não é nenhuma novidade do mundo internético. Joyce fazia seus rapazes dublinenses perderem rios de dinheiro numa mesa de jogo com pessoas de quatro ou cinco países; Machado de Assis contava o mesmo, em escala mais modesta, com seus playboys da Rua do Ouvidor, filhinhos de fazendeiros ricos ou de políticos (“Vinte anos! Vinte anos!”, 1884); Berilo Neves, em Século XXI, fazia suas socialites da Confeitaria Colombo encomendarem compras na Lua e marcarem chás-das-cinco em Saturno.
 
A única novidade, talvez, é que as pessoas que pensam assim nunca tiveram tanto dinheiro, nunca tiveram tanta liberdade, nunca tiveram tanto poder.