domingo, 30 de outubro de 2011

2701) Correr com os touros (30.10.2011)



Já vi na mão de muita gente um livro chamado Mulheres que correm com os lobos, que ao que parece é um clássico entre as feministas, “um livro libertário, libertador”, dizem elas. Esse título sempre me lembrou aquele filme de Neil Jordan, A Companhia dos Lobos, em que uma mocinha, na noite de núpcias numa cabana da floresta, vê seu noivo se transformar num lobisomem horroroso. Por que motivo, matutava eu, uma mulher iria querer correr com os lobos? Perguntei a uma amiga minha, que é meio xamã (não sei o feminino de xamã, vá desse jeito mesmo) e ela explicou: “A sociedade industrial, patriarcal e judaico-cristã reprimiu a animalidade feminina. A fisicalidade da mulher ou foi reprimida pelo puritanismo como fonte de todos os males, ou foi industrializada, para consumo compulsório dos machos com poder aquisitivo”. “Beleza”, respondi, “mas onde entram os lobos?”. Ela prosseguiu: “Os lobos são o símbolo da animalidade não reprimida, em estado selvagem, o Id freudiano traduzido em carne, músculos, sangue. A mulher que consegue correr com os lobos e sobreviver está libertada”.

Não tive escolha senão concordar, porque de fato as mulheres são muito reprimidas, basta ver os milhares de vezes que puxam a saia para baixo, ao sentar e ao levantar (quando de fato bastar-lhes-ia sair de casa com uma saia bem longa). Mas a tragédia das mulheres é isso. Metade dos homens as obrigam a mostrar, e metade as obrigam a esconder. E tome puxar a minissaia pra baixo.

Este arrazoado todo é para dizer: Se é assim, então por que motivo as mulheres mangam tanto daqueles caras (dos quais eu mango também, sedentário que sou) que correm atrás dos touros em Pamplona? Sai todo ano no Jornal Hoje: abrem as porteiras e os touros saem desabalados pelas ruas da cidade, enquanto centenas de otários se jogam na frente deles, agitando panos e levando chifradas que os arremessam a seis metros de altura, como espantalhos desengonçados. Num mundo onde as mulheres são tão reprimidas que querem correr com os lobos, os homens também precisam correr lado a lado com um minotauro qualquer, sentir a adrenalina do perigo e o bafo fétido da Besta, praticar uma façanha insensata que os mande de volta para casa trêmulos de terror e de triunfo, dispostos a enfrentar mais um ano de pasta dental, café da manhã, terno, metrô e escritório.

Ou talvez a hiperconsciência subliminar que nos faz antever o futuro nos esteja dizendo: “Acostumem-se a correr ao lado das feras, porque dentro de meio século serão elas que mandarão nessas cidades, será com elas que homens e mulheres terão que negociar sua sobrevivência”. Quem viver, correrá.

sábado, 29 de outubro de 2011

2700) Spoilers (29.10.2011)




O verbo inglês “to spoil” significa, entre outras coisas, “estragar um prazer”. Um spoiler é qualquer coisa – geralmente uma informação – que estraga a surpresa de um filme, um livro, etc. Os mais antigos hão de se lembrar duma antiga charge de Péricles em que O Amigo da Onça sai do cinema e passa ao longo da fila de espectadores que se preparam para entrar na próxima sessão, dizendo em voz alta: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...”.

O risco de estragar a surpresa alheia sempre existiu, mas só com a Internet (acho) surgiu o hábito de anunciar a presença dessas revelações. Quando a gente vê num resumo ou numa discussão de uma história alguma advertência (“Warning: Spoilers!”, “Spoilers ahead!”, etc.), já sabe que se ler o trecho seguinte vai ficar sabendo algo que preferiria não saber. Ainda não temos um termo em português que substitua este, uma palavra curta e precisa que diga o que é sem maiores explicações.

Pois muito bem. Uma pesquisa (http://bit.ly/tTOfkw) feita na Universidade da California em San Diego deu a três grupos de estudantes histórias de autores como Tchecov, Raymond Carver, Roald Dahl, etc. Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação. A hipótese dos pesquisadores é de que um “spoiler” pode fornecer um esquema de organização para as informações da história que se segue, levando a uma compreensão mais fácil e a uma fruição maior. Os spoilers também podem aumentar a expectativa por eventos futuros, aumentando assim o prazer da leitura.

Isto toca de perto uma questão importante da narrativa: a diferença entre Surpresa e Suspense. Surpresa é quando o personagem cai na calçada e depois da queda vemos que pisou numa casca de banana. Suspense é quando mostramos a casca de banana e o personagem, distraído, aproximando-se dela. Muitas histórias policiais, por exemplo, revelam já na metade (ou mesmo no começo do livro) quem é o criminoso, mas conduzem a narrativa de tal modo que o fato de ter essa informação aumenta o prazer da leitura, ao invés de diminuí-lo. Como? Ah, amigos, é uma simples questão de engenho e arte.




sexta-feira, 28 de outubro de 2011

2699) Drummond: “Fuga” (28.10.2011)



(Drummond, na época do lançamento de Alguma Poesia)

Um tema recorrente na obra de Drummond em sua primeira fase (a partir de Alguma Poesia, de 1930) é o da inadequação entre o poeta e o Brasil, a inadequação entre as expectativas imaginárias do poeta e a realidade que o Brasil tinha a oferecer. O livro é claramente a profissão de fé de um convertido, de alguém que provavelmente em certo momento (na adolescência, talvez) viu a si mesmo como um ser ungido pelas Musas, doido pra reproduzir aqui o toma-lá-dá-cá da vida cultural greco-romana (ou parisiense e lisboeta, para ser mais contemporâneo), e percebeu que era na verdade um exilado de nascença num país bárbaro, tropical, de gente que não sabe ler e muito menos apreciar um soneto de boa qualidade. O poeta pode ter sido assim; mas logo foi arrebatado pelo turbilhão modernista, e muitos textos de seu livro de estréia são a constatação meio nostálgica e quase toda irônica do quanto o Brasil é impermeável a essa poesia clássica que não o entende.

E vem o poema “Fuga”, onde o poeta de 28 anos diz: “"As atitudes inefáveis, / os inexprimíveis delíquios, / êxtases, espasmos, beatitudes / não são possíveis no Brasil. // O poeta vai enchendo a mala, / põe camisas, punhos, loções, / um exemplar da Imitação / e parte para outros rumos. // A vaia amarela dos papagaios / rompe o silêncio da despedida. / - Se eu tivesse cinco mil pernas / (diz ele) fugia com todas elas.” A “Imitação” a que se refere é certamente a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis, um livro religioso do século XV, muito influente para a geração de Drummond (entre os “meus” autores, Jorge Luís Borges e Malba Tahan o citam de vez em quando).

Esse poeta que Drummond fotografa batendo em retirada rumo à Europa é o poeta que ele próprio imaginou ser, e do qual agora permite-se mangar com a risada libertadora de quem sacudiu de si uma fantasia incômoda. Ele tem bom senso suficiente para ver-se ali. É sabido que Drummond admirava Anatole France, que não escapa de citação: “Povo feio, moreno, bruto, / não respeita meu fraque preto. / Na Europa reina a geometria / e todo mundo anda - como eu - de luto. // Estou de luto por Anatole / France, o de Thaïs, joia soberba. / Não há cocaína, não há morfina / igual a essa divina / papa-fina.”

O poeta se evade para a Europa, ou seja, para o passado: “Vou perder-me nas mil orgias / do pensamento greco-latino. / Museus! estátuas! catedrais! / O Brasil só tem canibais. // Dito isso fechou-se em copas. / Joga-lhe um mico uma banana, / por um tico não vai ao fundo. // Enquanto os bárbaros sem barbas / sob o Cruzeiro do Sul / se entregam perdidamente / sem anatólios nem capitólios / aos deboches americanos.”

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

2698) Bete Calamidade (27.10.2011)



Cap. 1 – De como Bete Calamidade entrou na Maternidade Santa Edvirges arrastando o cordão umbilical, para alvoroço das enfermeiras e incredulidade geral da população de Riachãozinho (PB).

Cap. 2 – De como, dada a grande cobertura da imprensa, cerca de dez mulheres apresentaram-se como mães arrependidas de terem abandonado a recém-nascida num monturo atrás da estação, mas um breve exame médico provou a falsidade ideológica de todas.

Cap. 3 – De como Bete Calamidade foi adotada pela família do Dr. Bianor Cavalcanti, que lhe deu o nome de Elizabeth em honra da Rainha da Inglaterra, e com a esperança de que isto motivasse a menina a, no mínimo, arranjar um casamento decente.

Cap. 4 – De como o apelido “Bete Calamidade” surgiu gradualmente, ao longo de sua adolescência, da mesma maneira cumulativa com que surgem os monturos.

Cap. 5 – De como Bete Calamidade teve que fugir de Riachãozinho após uma confusa madrugada etílica e um acidente envolvendo o carro do sobrinho de Dr. Bianor, a moto de Ronny Boy (filho de um rico proprietário rural da região), um caminhão-baú que nada tinha com a história e estava apenas cruzando o município, e um posto de gasolina que se postou imprudentemente na trajetória conjunta e desgovernada daqueles três veículos.

Cap. 6 – De como Bete reapareceu como por encanto em São Paulo, no bairro de Vila Madalena, torcendo o tornozelo numa calçada e esbravejando ali a madrugada inteira, o que a impediu de ser socorrida por quem quer que fosse.

Cap. 7 – De como Bete e o segurança de um “lounge” acertaram os ponteiros e viveram juntos por seis meses, num regime de tapas e beijos.

Cap. 8 – De como um incêndio no prédio e um rocambolesco resgate de helicóptero na cobertura reconduziram Bete Calamidade às manchetes, apenas 18 anos depois de nascida.

Cap. 9 – De como Bete entrou para um mosteiro zen chorando a morte do segurança (“pelo menos a cremação veio incluída”, suspirou ela) e convenceu o Dalai-Lama local a dar um golpe no caixa e fugir com ela para Trancoso.

Cap. 10 – De como um tsunami submergiu Trancoso assim que o casal chegou, e os dois se salvaram por causa das aulas de levitação que o monge há anos tentava ministrar via Lei Rouanet e ninguém aprovava por motivos óbvios.

Cap. 11 – De como Bete Calamidade e o monge fugiram a pé pela BR até que agentes da CIA, que vinham monitorando tudo (eles monitoram tudo) sequestraram Bete Calamidade, puseram-na numa cápsula da NASA semelhante à da cachorra Laika e a mandaram para o espaço, explicando à imprensa que era para o bem da humanidade, porque (comentaram, no equivalente em inglês) “eita mulezinha carregada da bobônica!”.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

2697) O leitor recalcitrante (26.10.2011)




Uma obra literária é um conjunto de imagens, idéias e emoções que brotam na mente de uma pessoa à medida que ela lê um texto. 

Por comodidade, dizemos que a obra literária é o texto em si, mas cada pessoa extrai daquele texto uma experiência distinta, formatada pela sua personalidade, seu conhecimento literário, etc. 

O texto é sempre o mesmo, mas sempre produz leituras (isto é, obras literárias) diferentes.

Essa experiência só acontece se o leitor se entregar a ela. Entregar-se a ela não é perder o senso crítico, não é aceitar passivamente tudo que o autor diz, mas é ter boa vontade, querer participar de um jogo jogado meio-a-meio, cada um dando sua colaboração para que o romance possa acontecer. Se o cara não quer participar disso, pra que diabo abre um livro?

Coleridge dizia que a literatura fantástica só funciona se o leitor proceder a uma “voluntária suspensão da descrença”, ou seja, deixar de lado o seu ceticismo, a sua convicção sobre a inexistência de vampiros, extraterrestres, etc., e disser: “OK, faz de conta que isso existe; qual é a história que você vai me contar?”. 

Eu diria que essa suspensão da descrença é igualmente necessária para a gente ler Gabriela, Cravo e Canela, ou até para assistir a novela das 8. Porque a gente sabe que tudo aquilo é invenção, é encenação, são atores pagos para recitar frases redigidas por terceiros.

Ora, existe na literatura um tipo de leitor que eu chamo o Leitor Recalcitrante, que é aquele que desde a primeira linha toma uma atitude hostil ou desconfiada. Fica perguntando mentalmente ao autor: 

"Ah, é? Quem disse que é assim? Por que você está me dizendo isto? Por que esse detalhe não está bem explicado? Para que serve isso? Por que esse personagem se chama Fulano?” 

E assim por diante. É um leitor cabreiro, sempre com o pé atrás, sempre pronto a descobrir um erro do autor ou a se queixar de que o autor não deixou claro um detalhe. Se o autor cita Fulano ou Sicrano, o leitor recalcitrante se encrespa: 

“Ôi, e eu tenho obrigação de ter lido Fulano? Pra ler esse livro aqui preciso ter lido quantos, antes?”.

O Leitor Recalcitrante não é um leitor crítico, não é nem sequer um leitor hiper-crítico, porque mesmo estes são capazes de mergulhar num texto com prazer e abandono, depois que suas exigências iniciais são correspondidas. (Críticos literários muitas vezes são assim.) 

O Recalcitrante se alterna em momentos de baixa estima (“Eu não consigo entender esse livro, está além da minha capacidade”) e de arrogância (“Não vou perder meu tempo, esse cara pode ser famoso mas não sabe escrever”). É um leitor que não sabe abrir a porta e sair pra brincar.






terça-feira, 25 de outubro de 2011

2696) Severino Marinho (25.10.2011)




(Marinho e D. Lurdinha)

Recebi a notícia do falecimento de Severino Marinho Leite, e me vejo mais uma vez, nas últimas semanas, diante dessa missão impossível: dizer o que uma pessoa representou em algum momento da nossa vida. Uma morte é um desses momentos que nos deixam sem saber o que dizer. Não porque não haja coisa alguma a ser dita, pelo contrário. De repente há uma vida inteira, milhões de coisas para serem ditas. Pode-se começar por qualquer ponto e prosseguir indefinidamente; esse excesso de caminhos acaba por nos condenar à imobilidade.

Marinho foi um dos grandes amigos do meu pai, e em muitos momentos foi uma espécie de anjo da guarda que orientava nossa família em situações difíceis. Uma vez, quando Seu Nilo estava meio enfarruscado com a vida, por causa de projetos que não andavam pra frente, alguém lhe perguntou se ele não tinha amigos, e ele disse: “Tenho, sim: Severinos Marinhos Leites”. Não o disse certamente para menosprezar os outros; mas sem dúvida porque naquele momento era Marinho o único capaz de ajeitar os óculos dourados de lentes verdes, passar a mão pelo cabelo e dizer: “Calma, Nilo, isso vai se arranjar, vamos analisar o problema”.

Não vou insistir apenas na minha perda pessoal. Melhor dizer logo que a perda de Campina Grande foi muito maior do que a minha. Não apenas pelo cidadão, mas porque Marinho foi o torcedor-símbolo do Treze, o homem que manteve ao longo de seus mais de 80 anos de vida o registro permanente dos jogos do Galo (jogo, data, local, placar, autores dos gols, escalação do Treze). Quantos times brasileiros podem se gabar de um torcedor assim? Em 1975 quando fizemos, sob a orquestração de Hélio Soares e do presidente Zé Agra, a revista do cinquentenário do Galo, foi dos arquivos de Marinho que extraímos as estatísticas de todos os resultados do Galo naqueles cinquenta anos. O mesmo com Mário Vinícius ao compor seu livro monumental sobre a história do alvinegro.

Uma bela lembrança que guardo, do meu tempo de garoto, é de uma viagem noturna ao Recife, quando ele e meu pai me levaram de carro para ver um torneio na Ilha do Retiro, que teve na preliminar Náutico x Palmeiras (a única vez em que vi Djalma Santos jogar) e na principal Sport x Corinthians. Estudei no Alfredo Dantas com seus filhos Marcos e Fernando. Depois tornei-me amigo de sua filha Cida Lobo, que foi há pouco tempo sub-secretária de Cultura do Estado. Marinho era para mim uma figura paterna, um pai mais jovem e mais comedido, levemente brincalhão e sempre sereno. O Treze que ele tanto amou deu-lhe alegrias nos últimos tempos. A cidade que ele defendia cresceu tanto que hoje nem percebe o quanto sente sua falta.

domingo, 23 de outubro de 2011

2695) O pintor de portas (23.10.2011)




Surgiu em nossa cidade um pintor especializado em portas. Cobrava muito caro, mas mesmo assim os candidatos a cliente faziam fila. Deixavam no escritório do “marchand” um documento contendo descrição e foto dos membros da família, e um texto de vinte linhas dizendo por que motivo queriam o quadro. Quando o artista escolhia a família, ela tinha que hospedá-lo durante o tempo necessário para que ele se familiarizasse com a casa, escolhesse o aposento e a parede, e pintasse ali a porta. 

Na casa do advogado Hrabel ele pintou no corredor uma porta feita de água verde do mar, um retângulo trêmulo e salgado onde se via às vezes passar como uma flecha um peixe arisco, ou flutuar uma água-viva. 

Na casa da família Yssahid, pintou na sala de jantar uma porta de carvalho maciço, coberto de musgo, com uma pesada aldraba de metal; mas suspensa a um palmo acima do piso, e numa inclinação de 30 graus. Era possível cerrar os dedos em torno da aldraba. 

No apartamento da viúva Tenmory, ele demorou quase dez dias para encontrar o lugar adequado, e foi preciso desmontar um armário para que naquela parede descolorida e arranhada ele produzisse uma porta esférica, que preenchia totalmente a abertura onde estava encaixada. Era possível usar as mãos para fazê-la girar, e cada movimento revelava formas e cores diferentes, distribuídas na superfície daquele globo de madeira; até mesmo palavras.

Seus sucessos se acumulavam. A porta vazia que pintou para a família Blinemuth; a porta narrativa que até hoje desconcerta os visitantes do mosteiro copta; as duas portas gêmeas e reversas no banheiro do usineiro Fargas. Para ter em casas essas obras merecedoras de contemplação e hipóteses valia a pena (segundo os clientes) suportar a presença do artista, cujas venetas pareciam mudar de acordo com a moradia onde se instalava. Soturno e arredio numa, impudente e ofensivo em outra; nesta, passava o dia deitado no tapete, bebendo vinho em silêncio e coçando os pés; naquela, devorava a biblioteca do dono, enquanto os pincéis e as tintas secavam, inúteis, sobre uma mesa de jantar de onde ninguém ousava aproximar-se. (Na minha casa, estranhamente, não demorou mais que meia hora, para executar às pressas uma porta no muro de pedra que dá para a rua, uma porta que só pode ser vista pelo lado de dentro.) 

Partiu um dia, após embolsar seu último pagamento. Deixou atrás de si polêmicas, contradições acaloradas, residências a cuja entrada se formam, ainda hoje, filas de turistas empunhando guias explicativos e câmaras de filmar; e essa coleção de passagens que não levam a lugar nenhum.





sábado, 22 de outubro de 2011

2694) O papel do crítico (22.10.2011)




(de Random Meanderings)

Um leitor indignado escreveu uma vez para Pauline Kael, a famosa crítica de cinema norte-americana, fazendo-lhe a tradicional pergunta: “Se você é tão segura a respeito de quando um filme é bom ou é ruim, por que não faz um?”. Ela respondeu que uma pessoa não precisa saber botar um ovo para poder dizer se um ovo frito está bom ou não. 

Existe um consenso difuso dentro do Clube dos Espectadores Irritados de que um crítico de cinema é um cara que tentou fazer cinema e não deu certo, ou que teve tanto medo que jamais tentou. Isso é tão injusto quanto imaginar que um espectador é um cara que quis ser crítico e não deu certo, etc etc.

Se um espectador pergunta a um crítico: “Quem é você para dizer que este filme é ruim?” o crítico tem todo o direito de perguntar de volta: “E quem é você para dizer que é bom?”. O direito do crítico é o mesmo de um espectador; os seus deveres é que são mais numerosos e mais sérios. 

O crítico pode ser aquele monstro horrendo de nossa época, o Especialista, o sujeito que dedica todas as horas de sua vida ao estudo de alguma coisa. Enquanto eu estou vendo futebol na TV, ele está estudando cinema. Enquanto eu tomo cerveja no boteco com os amigos, ele está estudando cinema. Enquanto eu escovo os dentes, penteio o cabelo, ele está estudando cinema. Quando eu e ele nos sentamos para discutir, ele me esmaga a cada frase como se fossem patas de elefantes: “Você sabe o que é diegético? Você já assistiu algum filme de Samuel Fuller? Você sabe a diferença entre um travelling e uma panorâmica? Você sabe qual é o clássico do cinema que está sendo citado na famosa sequência do varal de lençóis em Legendas de Krisnampur?” 

E assim por diante. Discutir com um Especialista é como jogar xadrez com um cara que tem onze damas, trinta torres, dezesseis bispos e noventa cavalos.

A função do crítico não se confunde com a do diretor; exigir que o crítico dirija um filme para ter o direito de criticar é o mesmo que exigir que um diretor escreva uma crítica para ter o direito de dirigir. 

Há pessoas que sabem olhar apenas o filme, o espetáculo. E há pessoas que sabem ver ao mesmo tempo o filme, a platéia e a cabine de projeção. Claro que ele pode ter a opção (se lhe convém) de se deixar arrebatar pelo filme, ver um filme primeiro como espectador e só depois como crítico; mas um “crítico” é quem sabe usar esses dois modos, e um “espectador” é quem só sabe usar um. 

Esta é uma das diferenças mais importantes, e o que às vezes irrita um espectador é perceber que está sendo considerado parcialmente cego, e que quem o considera assim tem mesmo razão.






sexta-feira, 21 de outubro de 2011

2693) Saul Steinberg (21.10.2011)


Eu tinha perdido no Rio de Janeiro esta exposição de desenhos de Saul Steinberg, As aventuras da linha, mas paguei essa dívida a mim mesmo indo vê-la na Pinacoteca de São Paulo. 

Quando estou sacolejando num metrô ou num ônibus rumo a um museu fico me perguntando por que diabo me dou esse trabalho todo na era da Internet, quando basta clicar um “abre-te sésamo” qualquer para que tudo apareça pixelando em nosso monitor. 

Uma das respostas possíveis, no presente caso, é que nenhum monitor pode dar uma sensação equivalente a ver uma faixa de papel com quatro metros de comprimento em que Steinberg traça uma linha horizontal e a vai recheando e rodeando de imagens, como numa imensa Tapeçaria de Bayeux que se desenrola diante dos nossos olhos. 

A faixa começa com o desenho de uma mão que empunha a caneta e traça essa linha horizontal que sucessivamente se torna o chão de um desenho, o céu de outro, o horizonte de outro, a linha do mar em mais um, uma balaustrada, um meio-fio, sempre a mesma linha que corre horizontalmente e é cooptada por uma série de imagens, cada uma dando a ela uma leitura diferente. 

Esta é apenas uma das muitas magias do Rei do Traço, o romeno que por ser judeu teve que fugir da Europa e buscar refúgio nos EUA, onde se tornou um dos mais famosos ilustradores e capistas da revista The New Yorker

Conheci o trabalho dele nos anos iniciais do Pasquim, quando Millor Fernandes, Ziraldo e outros reproduziam seus desenhos e entoavam alalaôs ao mestre. Mestre deles, virou mestre meu também; mesmo quem não é desenhista pode absorver da linha enxuta de Steinberg alguma coisa para sua escrita, assim como um músico pode lucrar o mesmo para o seu piano (eu diria que foi o caso de Erik Satie, se um não fosse tão anterior ao outro) e até um jogador de futebol pode usar algo em seu trato com a bola. (Eu diria que Sócrates, Zidane e Paulo Henrique Ganso têm momentos verdadeiramente steinberguianos.) 

A exposição em SP traz numerosos exemplos das famosas séries em que Steinberg pega um tema (um cowboy; uma perua; uma passeata; um gato; um casal; um casaco de peles) e o reproduz incansavelmente, cada exemplo com um tracejado diferente que sugere diferentes interpretações visuais, leituras críticas, piscadelas irônicas, citações rebuscadas, ou apenas (e sempre) o mero prazer de desenhar. 

Vi na exposição montes de crianças, acompanhadas pela professoras, deitadas no chão da Pinacoteca, lápis e bloquinho na mão, copiando, imitando, parodiando e distorcendo os desenhos do mestre. E vivendo na idade certa a descoberta do prazer de desenhar, um reino onde as possibilidades, como sempre, são infinitas.




2692) O Espaço Selvagem (20.10.2011)





Um tema que a ficção científica brasileira tem cultivado, sem nenhum planejamento ou esforço coordenado, é o que poderíamos chamar de Espaço Selvagem, o espaço do vasto interior brasileiro, o Brasil profundo que ainda não foi descoberto e que pode guardar para a humanidade variados tipos de surpresa. 

Não é uma novidade no gênero, porque os ingleses (H. Rider Haggard, principalmente) inventaram o gênero dos Reinos Perdidos na Floresta. Os romances brasileiros, no entanto, não nos interessam por terem inventado um gênero novo, mas por terem utilizado uma fórmula européia para refletir sobre o Brasil.

Menotti Del Picchia escreveu dois romances fundamentais desse ciclo, A República 3.000” (ou A Filha do Inca, 1930) e Kalum, o mistério do sertão (1936). 
Jerônymo Monteiro, um dos pais da FC brasileira, publicou em 1934 A Cidade Perdida e em 1949 A Serpente de Bronze, onde aparecem os atlantes. 

O mito de Atlântida retorna em Os Bruxos do Morro Maldito e os Filhos de Sumé de Agostinho Minicucci (1992), e é ressuscitado na Paraíba (mais especificamente, na Pedra do Ingá) no poema épico A Atlântida de Amílcar Quintella Jr. (1957)

Descendentes do império inca também aparecem em A Amazônia misteriosa de Gastão Cruls (1925) e em A Clã Perdida dos Incas de O. B. R. Diamor (1958). Herberto Salles é um caso curioso de romancista regional (Cascalho, 1944) que depois se voltou para a FC com romances como O fruto do vosso ventre (1984) e A porta de chifres (1986), romances ambientados no interior, num contexto de apocalipse ecológico. 

Em épocas mais recentes, Roberto de Sousa Causo tem feito da Amazônia o cenário de seus “thrillers” militares futuristas, como Terra Verde (2000), O Par: uma novela amazônica (2001), etc. Cristovam Buarque, em Os Deuses Subterrâneos (1994), explora uma civilização no subsolo do Planalto Central.

A Amazônia e os cerrados do Centro-Oeste são os cenários preferenciais desses romances, é é curioso notar que a Atlântida e os Incas são frequentemente citados. É como se no Brasil, pela sua extensão e pela inacessibilidade de seu interior, essas civilizações estivessem tendo uma sobrevida. (Algo parecido com o que Conan Doyle imaginou em O Mundo Perdido: que no Brasil haveria um platô onde os dinossauros ainda existiam.) 

Não é exclusividade do Brasil a existência de um Espaço Selvagem literário; o que diferencia nossas histórias das demais é a variedade de paisagens físicas e geológicas, a proximidade histórica e geográfica com os Incas e a Atlântida, etc. São as fagulhas literárias do choque tectônico, ainda em pleno curso, entre a Europa e a América.




quinta-feira, 20 de outubro de 2011

2691) O ouvinte secreto (19.10.2011)




(detalhe do manto do rei Prempeh)

Esta história está contada com detalhes, e belas ilustrações, por David Apatoff, no saite “IllustrationArt” (http://bit.ly/po6IvV). Quando os ingleses derrubaram o império Ashanti, na África, impuseram ao rei derrotado uma série de condições humilhantes. Um dos oficiais ingleses era o coronel Baden-Powell (cujo nome foi herdado pelo violonista brasileiro). Em suas memórias, Powell conta: “Aquilo foi um grande golpe para o orgulho e a auto-estima dos Ashanti. Após a derrota, veio a exigência de pagamento de indenizações pela guerra. O rei Prempeh constatou que poderia dar aos ingleses apenas a vigésima parte do que lhe foi exigido, e recebeu a notícia de que seria levado prisioneiro, junto com sua mãe e seus chefes tribais”. Prempeh entregou-se, foi preso; os soldados ingleses saquearam e incendiaram seu palácio.

Nos últimos dias antes de se entregar, Prempeh mandou bordar um manto de rendição, medindo cerca de 2 metros por 3, coberto com símbolos gráficos ilustrando a cultura e a história do seu povo. O manto foi bordado em quadrados, com ideogramas simbolizando as lendas, provérbios e histórias dos Ashanti. Um padrão de círculos concêntricos, p.ex., simboliza o rei cercado por seus ancestrais, guerreiros e espíritos protetores. Um padrão chamado “pé de galinha” se refere ao provérbio Ashanti “uma galinha caminha sobre os pintinhos mas não os mata”, referindo-se ao rei poderoso que não esmaga seus súditos. Outro padrão em espiral, chamado “chifre de carneiro”, alude ao provérbio “a bravura de um carneiro vem de seu coração, não de seus chifres”.

Os ingleses não entenderam o significado do manto, mas um soldado apossou-se dele após a cerimônia, e levou-o consigo. Ele está hoje no museu da Smithsonian Institution, em Washington. Em seu blog, David Apatoff tenta adivinhar a função que esse manto poderia ter desempenhado, e comenta:

“Por que motivo Prempeh se daria o trabalho de criar uma obra de arte cuja mensagem não seria compreendida? Uma resposta possível é que as pessoas recorrem à arte quando nada mais lhes resta, e quando nossos sentidos não conseguem reproduzir o mundo de uma maneira suportável. O poeta Schlegel disse: ‘Através do ruído da vida – este sonho multicor – nossas canções são cantadas para um ouvinte secreto’. Muitas obras de arte são criadas assim, como uma mensagem numa garrafa, para que um dia possam chegar até esse ouvinte secreto capaz de entender o que nos aconteceu. O império Ashanti, com sua rica tradição, deixou de existir naquele dia, mas o manto de Prempeh serviu para que uma parte daquela cultura sobrevivesse e alguém ficasse sabendo que ela existiu”.




2690) Profissional vs Amador (18.10.2011)



(foto: Yanik Chauvin)

Foi uma dessas semi-gafes em que sou especialista. A gafe é involuntária, é quando a gente paga um mico, mas agindo com a maior inocência. A semi-gafe é quando a gente pensa “se eu fizer isso vai ser uma saia-justa danada”, mas faz assim mesmo. Faz uns quinze anos, eu estava em São Paulo numa reunião cultural qualquer. Um cara colocou na minha mão uma revista enorme, em papel cuchê, a cores, com uma programação gráfica de cair o queixo, e disse: “É o número 1 da revista que estamos lançando, tem os melhores fotógrafos, os melhores ensaístas...” Folheei, fiquei de queixo caído; vi no índice os nomes de colaboradores dos mais ilustres, uma galera que abrangia desde catedráticos da USP até poetas independentes do Bexiga. Elogiei, o cara disse: “Pois é, nosso esforço foi para fazer uma revista literária de nível profissional, e acho que conseguimos. Você poderia nos mandar uma colaboração?” Perguntei quanto eles pagavam por um artigo. O rapaz pigarreou, ajeitou o nó da gravata: “Olha, como nós estamos ainda começando, essa questão da remuneração dos colaboradores ficou para mais adiante, quando a revista estiver mais estruturada”. Eu devolvi o exemplar para ele e disse: “Sei como é. Então quando passar essa fase amadora, e começar a fase profissional da revista, quem sabe eu mando uma colaboração”. O cara deu uma risada, um tapinha nas minhas costas e nunca mais falou comigo.

Eu vejo por aí as pessoas usarem os termos “profissional” e “amador” de um modo totalmente inadequado. Para elas, profissional é tudo que é super bem feito, super competente; amador é tudo que é tosco, desajeitado, imaturo. Eu discordo e proponho a seguinte fórmula: profissional é todo trabalho que é pago, e amador é todo trabalho que é feito de graça. Em ambos os casos existem gradações que vão do mais sofisticado ao mais tosco. E nenhum de nós é totalmente profissional ou totalmente amador. Eu mesmo todos os dias me alterno entre trabalhos profissionais (como esta coluna, pela qual recebo um salário) e trabalhos amadores, que não me rendem um tostão, mas que eu faço por amor à arte, ou por amizade, por desfastio, por curiosidade, por qualquer outro motivo que não seja um depósito bancário.

Tem muito trabalho profissional que é labrojeiro – a gente chama um encanador pra ajeitar um vazamento e uma semana depois tem que chamar outro, porque o conserto ficou igual à cara de quem fez. E muitos catedráticos escrevem artigos amadores de alto nível, porque a USP lhes paga um belo dum salário e lhes permite escrever de graça para revistas onde o único profissional é o cara que embolsa os lucros.

domingo, 16 de outubro de 2011

2689) Já batemos no iceberg (16.10.2011)



Meu primo, que mora perto da proa, me confirmou por email. O choque com o iceberg foi em novembro do ano passado. Aqui, no Convés 18, sentimos o abalo em dezembro, e foi então que começaram os boatos. Em fevereiro, um comunicado do Capitão aos passageiros disse que estava tudo bem, mas a essa altura, apesar da censura na mídia interna, já havia um certo consenso de que algo tinha mesmo acontecido. Há cada vez mais migrantes afluindo para o meio do navio. Todos são obrigados a dar versões tranquilizadoras dos fatos e desculpas esfarrapadas sobre os motivos de sua mudança às pressas. Há uma corrente oficial de otimismo nas TVs, no sistema de rádio e de alto-falantes que só nos dão dados positivos sobre o percurso e as condições meteorológicas. Mas há também uma corrente subterrânea de rumores, de histórias contadas pela metade, de fotos e vídeos em baixa resolução mostrando situações dantescas, e nos levando a duvidar de nossa sanidade mental. Porque basta olhar em volta, como insistem os tripulantes, para constatar o sol brilhando, o céu azul, a coreografia plácida dos albatrozes e das gaivotas; para ver à noite as nuvens esparsas arrastadas pelo vento, a luz prateando o espelho das águas. Como acreditar nesses vídeos clandestinos dos migrantes da proa, mostrando o rombo cataclísmico no casco, as catadupas de água, os marujos em capas de plástico amarelo bombeando água para fora, em mangueiras maiores que sucuris? Como acreditar que andares inteiros do porão de carga já estão invadidos pelas águas, como crer nas fotos que mostram um rastro de automóveis e eletrodomésticos boiando à deriva nas ondas revoltas? Nem mesmo o pranto histérico dos que perderam parentes ou amigos nos convence, porque a própria histeria os deixa incoerentes, há detalhes que não batem, datas, nomes, fatos cujos relatos não coincidem. Mas todos os dias, enquanto nos douramos ao sol na piscina, basta que nos debrucemos para ver, centenas de metros abaixo, no tombadilho principal, a extensa fila de viajantes, com malas, caixotes e trouxas de pano à cabeça, nos postos de controle, solicitando passagem. Não vêm para ficar aqui, claro; estão em busca de abrigo nos territórios mais baratos (e nos compartimentos populares) na região da popa. Mas o mero fato de atravessarem nosso território nos contamina de inquietação. “Por que passam por aqui?”, murmurou hoje de manhã a Duquesa de Beauséjour, massageando as narinas. “Se querem ir para a popa, bem que podiam alugar botes e ir remando”. Concordei, bocejei, fiquei contemplando meu uísque onde boiava um indestrutível bloco de gelo.

sábado, 15 de outubro de 2011

2688) A palavra vexame (15.10.2011)



É uma palavra que já vi produzir mais de um mal-entendido entre nordestinos e sudestinos em geral. Para o pessoal do Sudeste, vexame é sinônimo de constrangimento, vergonha, situação desagradável e embaraçosa: 


“Passei o maior vexame ontem no Banco, um cheque meu voltou e tive que ir lá cobrir o valor”. 

Desse sentido se derivam várias palavras correlatas: 


“Fiquei muito vexado quando no meio da reunião o vice-presidente falou para todo mundo que estava esperando um relatório meu há uma semana e eu não tinha apresentado nada”; 


“É melhor resolvermos isto internamente, pois eu não quero ficar exposto a uma situação vexatória diante dos alunos”.

No Nordeste, contudo, vexame significa pressa, açodamento: “Deixe de vexame, que o ônibus só sai às três horas e ainda é meio-dia.” Estar vexado é estar com pressa: “Olhe, vamos deixar para discutir isso outra hora, eu estou muito vexado porque deixei o táxi esperando aqui na frente”.

Um exemplo interessante e talvez pouco notado está no poema “Os doentes”, de Augusto dos Anjos: 


“Do fundo do meu trágico destino,
onde a Resignação os braços cruza, 
saía, com o vexame de uma fusa, 
a mágoa gaguejada de um cretino.” 


Note-se que o sentido do verso de Augusto é: “com a velocidade de uma música executada em fusa”. Uma fusa é uma das menores subdivisões do tempo musical, indicando notas executadas com grande rapidez. É uma imagem análoga à que o poeta emprega em “Gemidos da Arte”, onde um pássaro salta de galho em galho “com a rapidez de uma semicolcheia”.

Vexar-se, no sentido de apressar-se, fazer algo às pressas, aparece também no folheto Romance do Pavão Misterioso, de João Melquíades Ferreira: 

“Logo no segundo dia 
Creusa saiu à janela
os fotógrafos se vexaram 

tirando o retrato dela 
quando inteirou uma hora 
desapareceu a donzela. 

"João Batista viu depois 
um retratista vendendo 
alguns retratos de Creusa 
vexou-se e foi dizendo: 
quando quer pelo retrato? 
porque comprá-lo pretendo."

“Avexar-se”, no sentido de “apressar-se” virou um desses termos que os cariocas consideram típicos dos nordestinos, tanto assim que se dirigem a eles, em tom brincalhão, dizendo: “Não se avexe não, bichim!”. A expressão, que pelo menos nos meus círculos linguísticos era de uso muito raro, voltou à evidência com a canção “A natureza das coisas”, composição de Accioly Neto gravada por vários cantores: “Se avexe não, que amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada...” 

Note-se também que essa construção é tipicamente nordestina, dizer “Se avexe não” ao invés de “Não se avexe”. Detalhes assim são tão típicos da fala nordestina quanto o vocabulário propriamente dito.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

2687) Canto Fúnebre sem Música (14.10.2011)





(Der müde Tod, de Fritz Lang)

Quando perdemos um amigo, ou alguém que mesmo não conhecendo pessoalmente admirávamos à distância, temos aquela angústia de querer dizer um monte de coisas e saber que não temos palavras. As palavras existem. Estão à nossa espera. Nós é que não conseguimos achá-las. (Como se sabe, todas as palavras de Vidas Secas ou do Claro Enigma estão no dicionário. O segredo é colocá-las na ordem certa). A poesia lírica, que fala dos sentimentos, é uma revelação de nós mesmos quando nos justapomos ao sentimento do poeta. Dizemos, ao ler o poema lírico: “Eu também sinto assim”; e às vezes: “Sei que de agora em diante vou sentir assim”.

Todos nós sentimos, na morte de alguém, não apenas a dor da nossa perda pessoal, mas a perda coletiva de todos, o desperdício de que uma pessoa como aquela deixe de existir. A minha perda pessoal (nunca mais vou ver Fulana, nunca mais vou conversar com Fulano) é multiplicada pelas perdas de todos; porque aquela pessoa foi única para cada um. Multiplicou-se em muitas ao logo da vida, tendo com cada um de nós uma relação única e irrepetível. Ao morrer, multiplicou a perda.

Em momentos assim, um dos primeiros textos que me vêm à mente é o poema abaixo, “Dirge Without Music”, da americana Edna St. Vincent Millay (1892-1950). (Quem quiser conferir o original, está aqui: http://bit.ly/aCLrnY). Entre tantos poemas de resignação que há por aí, o dela é de uma serena recusa. Exprime o amor à vida desta poetisa que um dia disse ser capaz de “tocar uma centena de flores, e não colher nenhuma”. Aqui vai, tentando manter mais o sentido do que a rima.

“Não me conformo em ver os corações apaixonados sendo trancafiados no chão duro. 
É assim, e vai ser assim, porque assim tem sido desde tempos imemoriais. 
Para dentro da escuridão eles deslizam, os sábios e os adoráveis. Coroados 
de lírios e de louros eles vão; mas eu não me conformo.

“Amantes e pensadores, todos, todos para dentro da terra! 
Misturem-se com o pó indiscriminado e mudo! 
Um fragmento do que vocês sentiram, do que souberam, 
uma fórmula, uma frase vai ficar – mas o melhor se perdeu.

“As respostas rápidas e espertas, o olhar honesto, o riso, o amor, 
tudo isto foi embora. Foi alimentar as rosas. Tão elegantes e sinuosas 
são as flores. Tão perfumadas quando brotam. Eu sei. Mas não concordo. 
 A luz em teus olhos era mais preciosa do que todas as rosas do mundo.

“Descendo, descendo... rumo à escuridão do túmulo. 
Suavemente eles se vão, os belos, os ternos, os afetuosos. 
Discretamente eles vão, os inteligentes, os espirituosos, os valentes. 
Eu sei. Mas eu não concordo. E não vou me conformar.”



Aqui, o texto original:

DIRGE WITHOUT MUSIC

I am not resigned to the shutting away of loving hearts in the hard ground.
So it is, and so it will be, for so it has been, time out of mind:
Into the darkness they go, the wise and the lovely.  Crowned
With lilies and with laurel they go; but I am not resigned.

Lovers and thinkers, into the earth with you.
Be one with the dull, the indiscriminate dust.
A fragment of what you felt, of what you knew,
A formula, a phrase remains,—but the best is lost.

The answers quick and keen, the honest look, the laughter, the love,—
They are gone.  They are gone to feed the roses.  Elegant and curled
Is the blossom.  Fragrant is the blossom.  I know.  But I do not approve.
More precious was the light in your eyes than all the roses in the world.

Down, down, down into the darkness of the grave
Gently they go, the beautiful, the tender, the kind;
Quietly they go, the intelligent, the witty, the brave.
I know.  But I do not approve.  And I am not resigned.






quinta-feira, 13 de outubro de 2011

2686) Os Indispensáveis (13.10.2011)




(na foto: Ivanildo Vila Nova)

Depois que conhecemos Toulouse Lautrec ou Mozart e os transformamos em referência obrigatória, pensamos que não saberíamos viver num mundo sem eles. Mas saberíamos, sim. Um artista só é indispensável depois que é conhecido. Se nunca ouvirmos falar nele (ou mesmo se ouvimos falar, mas de sua obra não escutamos um pio), nossa vida corre mansa do mesmo jeito, sem um catabí a mais ou a menos.

Eu, por exemplo, vivo num mundo onde não existiram os poetas Anacreonte e Alexander Pushkin, os romancistas William Faulkner e Leon Tolstoi,, os cineastas Manoel de Oliveira e Satyajit Ray, os compositores Schoenberg e Stockhausen.

Sei que são indispensáveis para muita gente, e não discuto que o sejam, mas minha vida transcorreu até agora dispensando-os, sem a menor cerimônia. (Claro que não digo isso me gabando. É uma mera constatação de que a arte é longa e a vida é breve, ou que a arte é uma semibreve e a vida é uma semifusa).

Nunca li muitos autores que são indispensáveis à maioria da humanidade. Para mim, são apenas nomes na lista cronológica dum almanaque. Do mesmo jeito, conheço pessoas que vivem num mundo em que Augusto dos Anjos não existiu. Nunca o leram, nunca se interessaram por ele, e viveriam igualmente bem se Augusto tivesse morrido de escarlatina aos sete anos, sem ter escrito uma linha.

Sinto em calafrio de horror quando um amigo de infância me pergunta: “Quem é esse tal de Philip K. Dick?”, e percebo que eu e ele vivemos em universos incompatíveis. Conversar com estrangeiros, então, é um terror sem fim: gente que nunca ouviu falar em Carlos Drummond, em Nelson Pereira dos Santos, em Mário de Andrade...

Um gremlin sertanejo e malicioso pousa agora no meu ombro, me cutucando pra que diga: “Também é terrível conversar com cariocas ou paulistas, que fazem cara de estranheza ao me ouvir falar em Manuel Xudu, em José Pacheco, em Colombita, em Rogaciano Leite, em Delarme Monteiro...”

Mas o gremlin recolhe as asas e cai fora, encabulado, quando lhe explico que a imensa maioria dos nordestinos também nunca ouviu falar nesses indispensáveis do nosso Panteão. Como dizia Joyce: “Vê agora. Esteve ali todo o tempo sem ti: e existirá sempre, mundo sem fim”.

Uma cultura compartilhada aproxima pessoas com divergências pessoais ou políticas. O nazista de um conto de Borges é admirador de Shakespeare e Beethoven, e isto de certa forma o traz para mais perto de mim do que algum vizinho meu, com quem cruzo no corredor, e que até hoje não deu a mínima para esses dois. Existem pessoas na Terra que nunca ouviram falar nos Beatles ou em Sherlock Holmes. Que planeta estranho deve ser esse que habitam.






quarta-feira, 12 de outubro de 2011

2685) A dor que deveras sente (12.10.2011)




A televisão adora matérias sobre reencontros. Pais e filhos que não se veem há 40 anos, irmãos que foram separados na infância, famílias que se dispersaram, etc. Aparecem nos programas de Ana Maria Braga, de Luciano Huck, de Faustão; aparecem no “Fantástico”, no “Globo Repórter”... 

A televisão adora localizar essas pessoas, organizar o encontro, preparar, gravar tudo, editar de um jeito bem caprichado e mandar ao ar para extrair lágrimas simultâneas em vinte milhões de lares.

Vemos o homem grisalho dentro do ônibus, indo de São Paulo para o lugarejo nordestino de onde emigrou; e vemos a velhinha de cabelos brancos, sentada na sala, à sua espera. Chega esquecemos das câmaras que acompanham um no ônibus e vigiam a outra na sala. 

O ônibus para, o filho desce, vem se aproximando do portãozinho da casa. Na sala, a mãe se ergue, vai à janela, ansiosa: “Vige Maria! Parece que é ele...” Batem à porta. A câmara de dentro mostra a velhinha indo abrir, a câmara de fora mostra o nervosismo do filho. 

A porta se abre, os dois nem sequer se olham, caem nos braços um do outro. Uma das câmaras dá um zoom numa lágrima.

A TV mostra isto o tempo todo, correto? Não se passa um mês sem que algum programa de grande audiência nos peça licença para apertar o botãozinho daqui de dentro que nos faz ficar de olhos úmidos. Se eu, que sou este poço de cinismo, fico, de vez em quando, que dizer dos seres humanos normais? 

E é um momento como estes nos dá um exemplo perfeito da junção entre verdade interior e fingimento exterior, entre sentimento e representação, entre a integridade da emoção vivida para dentro e a sós e a esquizofrenia da emoção vivida para fora e diante de uma platéia.

Não custa lembrar Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” A dor sentida é uma, a dor fingida é outra, embora ambas doam. A emoção que a mãe e o filho teriam ao se reencontrar por conta própria seria uma. Mãe e filho se reencontrando no “Fantástico” é outra. 

É uma emoção triangulada, em que há uma terceira parte (as câmaras, metonímia da audiência) envolvida. No mundo-espetáculo, não existem mais dores invisíveis: tudo é show público em tempo real. Toda emoção é planejada e executada conforme um roteiro. Não digo que a emoção é falsa, digo que é outra. 

Assim como é outra a emoção que o poeta experimenta. No instante de escrever, o que conta não é o que sentiu, é o que convém externar diante da platéia, o que é possível reinventar com palavras. Poetas e atores são especialistas nessas emoções trianguladas, representadas, fingidas com sinceridade.






terça-feira, 11 de outubro de 2011

2684) Dicionário Aldebarã II (11.10.2011)



A civilização humanóide de Aldebarã-5 possui uma complexa civilização influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime a natureza de seu planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Wullygag”: a sensação de irrealidade que se tem no instante em que se recebe uma má notícia longamente prevista.

“Pergonix”: óculos especiais que permitem ver tudo como se fosse um antigo filme em preto-e-branco.

“Andiblons”: fruta local cuja característica é não ter qualquer aspecto fixo (forma, cor, tamanho), mas apenas o mesmo sabor.

“Hepernim”: abrigos contra o sol e a chuva, feitos de material heterogêneo (folhas, palha, vime, madeira, etc.), onde cada pessoa que se abriga tem que contribuir com mais um pedaço para a estrutura.

“Yand-nul”: a percepção instintiva do que existe dentro de um embrulho apenas olhando-o pelo lado de fora.

“Lundoos”: pequenos ídolos esculpidos que se acredita trazerem boa sorte, e que servem para escorar as portas, evitando que batam com o vento.

“Reschaft”: a silhueta de uma cidade vista ao longe por quem vem pela estrada, e que tem um formato diferente a depender do ponto cardeal por onde se chega.

“Empizyum”: a lembrança involuntária de um fato ou de uma pessoa, provocada pelo fato de ouvirmos, sem perceber, uma música que os evoca.

“Thufarli”: alguma coisa que, depois de passar muito tempo sem acontecer, começa em certo momento a acontecer várias vezes, em rápida sucessão.

“Ilkonno”: o terceiro braço (cibernético) que o Estado fornece a toda mãe de Aldebarã, para usar durante os primeiros dois anos de vida de cada filho.

“Amburenes”: cortinas feitas com padrões de fibras plásticas coloridas, que mudam de desenho ao longo do dia, conforme as frequências de onda e a intensidade da luz do sol.

“Gronem”: o involuntário grunhido de desagrado que os aldebarãs produzem, baixinho, sempre que lhes vem à lembrança um episódio incômodo que viveram.

“Woltell”: a imagem de uma coisa em nossa memória (um quadro na parede, p. ex.) que faz com que continuemos a vê-la mesmo depois de ela ter sido retirada dali, até que alguém nos chama a atenção para este fato.

“Anspurdys”: ao pé da letra, “ilhotas”, mas se refere a pequenos atos cotidianos, banais, que sempre se repetem da mesma maneira, não importa o quanto as circunstâncias exteriores da nossa vida tenham mudado para melhor ou para pior.

“Olgzum”: colar utilitário onde os aldebarãs penduram pequenos objetos de uso diário, documentos, remédios que precisam tomar, relógio, etc.

domingo, 9 de outubro de 2011

2683) John Lennon, 71 anos (9.10.2011)




“Você se lembra de quando era pequeno, e as pessoas pareciam ser tão grandes?” (“Remember”, 1970).

“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor” (“God”, 1970).

“Eu estou farto de assistir cenas de primadonas esquizofrênicas, egocêntricas e paranóicas... Tudo que eu quero é verdade, me mostre alguma verdade” (“Gimme some truth”, 1971).

“A mulher é o negro do mundo – nós a obrigamos a pintar a cara e dançar” (“Woman is the nigger of the world”, 1972).

“Sim, estamos jogando juntos estes jogos mentais, projetando nossa imagem no espaço e no tempo” (“Mind Games”, 1973).

“Nós todos somos águas de rios diferentes, por isto é tão fácil ficarmos juntos; nós todos somos água num vasto oceano, e um dia vamos nos evaporar juntos” (“We’re all water”, 1972).

“O Karma Instantâneo vai lhe pegar e olhar seu rosto de frente... É melhor você se aprumar, querida, junte-se à raça humana” (“Instant Karma”, 1970).

“As pessoas dizem que eu sou maluco, desperdiçando minha vida em sonhos, e me dão conselhos para me salvar; mas eu estou numa boa, vendo as sombras na parede” (“Watching the Wheels”, 1980).

“Quando você está sozinho, sem ninguém, basta dizer a si mesmo: segure as pontas” (“Hold On”, 1970).

“Eu não quero ser soldado, mãe, não quero morrer, eu não quero ser advogado, mãe, não quero mentir” (“I don’t wanna be a soldier”, 1971).

“Tudo que estamos dizendo é: experimentem a paz, para ver se funciona” (“Give peace a chance”, 1969).

“A gente nasce na prisão, cresce na prisão, e é mandado para uma prisão chamada escola. A gente chora na prisão, ama na prisão, vive na prisão como idiotas”. (“Born in a prison”, 1970).

“Parei numa esquina com Yoko, esperando por Jerry, surgiu um cara com um violão oferecendo maconha, e dizendo que o Papa fuma todo dia... Quê que é isso, New York?!...” (“New York City”, 1972).

“Todo homem tem uma mulher que o ama, chova ou faça sol, na vida ou na morte; se ele a encontrar vai ficar sabendo disto, quando encostar o ouvido ao seu peito” (“Every Man has a Woman who Loves Him”, 1980).

“Ninguém o ama quando você está velho e grisalho, ninguém precisa de você quando você está de cabeça para baixo” (“Nobody loves you when you’re down and out”, 1974).

“Quando estou no fundo do poço e sem contato, sem nada pra dizer, eu percebo que é apenas uma condição de ver as coisas como eu vejo; a intuição me leva até lá, me leva para qualquer parte” (“Intuition”, 1973).

“A vida é o que acontece com você quando você está ocupado fazendo outros planos” (“Beautiful Boy”, 1980).

“O que quer que lhe ajude a atravessar a noite está OK” (“Whatever gets you through the night”, 1974).




sábado, 8 de outubro de 2011

2682) Graciliano e Cândido (8.10.2011)




(Graciliano Ramos e Antonio Cândido)

Circula na Internet (deve estar no YouTube) um vídeo de uma palestra de Antonio Cândido sobre o escritor Graciliano Ramos e sua obra. 

Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=p3r-dY-0Ows 

Cândido, que deve ter uns 90 anos, é talvez uma das últimas pessoas vivas que conheceram Graciliano pessoalmente. 

Ele narra episódios de sua juventude no interior de Minas, quando ele e outros rapazes que gostavam de ler iam para a estação esperar a chegada do trem, onde vinham as caixas de livros para serem recebidas pelo dono da livraria local. E eles, que não eram bobos, compravam os livros ali mesmo no abrir da caixa, antes que chegassem à vitrine. 

Ele fala da importância das capas modernistas dos livros de Jorge Amado, Graciliano, etc., o quanto aquelas capas com desenhos diferentes produziam neles, jovens, a sensação de um mundo que estava mudando e de uma literatura que era (ironia das ironias!) o anúncio dessa mudança. Hoje, a literatura (não falo da ficção científica) é sempre a última a ficar sabendo.

Uma observação interessante de Cândido diz respeito ao Modernismo, que hoje é muito mais importante do que quando aconteceu. Cândido lembra que os livros modernistas vendiam pouco e eram pouco lidos. Sua influência se expandiu ao longo do século inteiro, mas, na época em que houve a Semana de Arte Moderna, o Brasil leitor a ignorou solenemente. Hoje, a gente fala da Semana como se ela tivesse tido em 1922 a repercussão de um Rock in Rio.

Outra coisa que ele destaca é o fato de que quando falamos em Romance Regionalista nordestino estamos nos referindo aos habituais suspeitos: Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano... 

Cândido lembra que escritores duradouros como estes surgem por entre outros autores, dos quais, a princípio, não se distinguem. Todos são novos, todos são vibrantes e estão dizendo algo nunca dito; e são todos lidos em conjunto. Com o passar dos anos, acontece uma decantação, uma filtragem. 

E ele diz: “Vou citar para os senhores alguns dos grandes autores dessa primeira fase do regionalismo, e penso que só os professores aqui presentes conhecerão algum”. 

Tiro e queda: dos nomes citados eu só conhecia Permínio Asfora (que ele pronuncia “Ásfora”), de quem meu pai tinha em casa, nos anos 1950, o romance Fogo Verde

E ele cita os demais, livros e autores que foram grandes quando surgiram e já não o são: Amando Fontes, Lauro Otaviano (Gororoba), Aurélio Pinheiro (Macau), Clóvis Amorim (Alambique), João Cordeiro (Corja), Cordeiro de Andrade (Cassacos)... Tirando Cândido e mais uma meia dúzia de macróbios, quem lembra desses heróis, que foram eclipsados por Graciliano & Cia?







sexta-feira, 7 de outubro de 2011

2681) Sugestão de pauta (7.10.2011)



Quando pisei pela primeira vez numa redação de jornal, aos quinze anos, tomei contato com uma das mais nobres instituições da imprensa, aquilo que chamamos informalmente de Tesoura Press. Era no tempo dos “Diários e Rádios Associados” de Assis Chateaubriand, expressão que meio século atrás tinha o mesmo peso que têm hoje os fonemas “Organizações Globo”. Os Associados tinham como principal órgão impresso O Jornal, editado no Rio de Janeiro, que servia a todos nós de fonte inesgotável de informação. Sendo ele o principal órgão da rede, qualquer jornal da rede podia impunemente (e na verdade devia) copiar qualquer matéria que ele publicasse. E tome a Tesoura Press a funcionar.

A bem da verdade histórica e do memorialismo, não cortávamos as matérias com tesoura: colocávamos a folha do jornal aberta na mesa, apertávamos uma régua marcando a linha do corte, na vertical e na horizontal, e puxávamos a folha de encontro à régua. Depois era só colar o recorte numa folha tamanho ofício, fazer as retrancas, ou seja, as indicações de tamanho, colunas, página, ilustração, etc., e descer via cordão pelo buraco do poço (uma abertura vertical através do piso, forrada de madeira, que ligava a redação no 1º. Andar e as oficinas no térreo). Beleza! Pausa para um cafezinho.

As famigeradas “sugestões de pauta” que hoje nos chegam pela Internet são um mero prolongamento dessa lei do menor esforço que preside o jornalismo mal pago. Para que quebrar a cabeça atrás de notícias, se já temos notícias publicadas no órgão líder da nossa cadeia, e basta recortá-las? Para quê, se chega às nossas mãos, diariamente, uma pilha de envelopes com “press-releases” impressos, de empresas de todo tipo, com a notícia que lhes interessa já redigidazinha, calibrada, no tom certo, doida pra saltar para a vitrine luminosa da página impressa? Pra que bater pernas nas calçadas e se esbaforir ao sol do verão em busca de coisas importantes que mereçam ser publicadas, se nossa caixa de emails (a minha, pelo menos) mostra diariamente 255 mensagens com o promissor título de “Sugestão de pauta”? É a tendência dos tempos, e em meio século só fez crescer.

O corolário: liberdade de imprensa deveria significar também iniciativa de imprensa. Pensamento próprio, idéias próprias, agenda própria de ação, de posições a serem tomadas. Um jornal (uma rádio, uma TV) não é um mero muro onde alguém chega e prega seu cartaz de propaganda. Um jornal é (ou teria que ser, idealmente) um muro que pensa, um muro com idéias próprias, que não exibe somente o que lhe pregam por cima. Um muro que pauta a si próprio, que só prega em si algo em que acredita.