quinta-feira, 18 de maio de 2023

4943) A arte do trocadilho infame (18.5.2023)




O melhor livro sobre o trocadilho é o clássico de Sigmund Freud Os Chistes e a Sua Relação Com o Inconsciente (1905). A tradução “chiste” me parece seguir o modelo espanhol; conheci esse livro numa tradução espanhola, e tenho agora o volume VIII da Edição Standard da Ed. Imago, tradução de Margarida Salomão. 
 
No prefácio desse volume, discute-se a tradução do termo original alemão (“der Witz”). Ele deu em inglês “wit” e “joke”, mas grande parte dos exemplos freudianos, sem deixarem de ser “piadas”, “chistes”, “gracejos”, são principalmente trocadilhos, termo que em inglês é “pun”. (Evidentemente, nenhum brasileiro habituado a soltar um trocadilho deixou passar impune essa palavrinha sugestiva.) 
 
Resumindo: todo trocadilho é um chiste, mas nem todo chiste é em forma de trocadilho.
 
Tenho a doença do trocadilho; pertenço a uma irmandade informal de viciados, onde posso incluir sem medo Marcus Vilar, André Aguiar, José Araripe, Henrique Rodrigues, Fraga, e outros calemburistas de reputação duvidosa. O trocadilho é um sintoma neurótico, no sentido de que o indivíduo dotado dessa capacidade sente uma compulsão irresistível de trocadilhar tudo que lhe apareça pela frente, e, pior, de dizer em voz alta cada trocadilho que lhe ocorre. 
 
É difícil, ao viciado, não armar um trocadilho quando as palavras se articulam e se oferecem ao seu ouvido; e é praticamente impossível não dizê-lo. Nenhum trocadilhista autêntico cala um trocadilho que lhe ocorra em público. 




Vou teorizar um pouquinho sobre esta arte, usando um exemplo autobiográfico. Eu teria uns dezoito anos; na casa dos meus pais, vi uma maçã numa fruteira e fui pegá-la para comer. Minha mãe, que já tinha examinado a fruta antes, avisou que ela estava com uma metade podre. “Não tem problema,” disse eu, “eu jogo fora a metade má e como a metade sã.” 
 
É um bom trocadilho, e é por coisas assim (não porque leio Freud) que sou tido por inteligente na família. Mas esta pequena façanha tem características que o trocadilho ideal em geral apresenta: 
 
1) foi um improviso, uma resposta instantânea a uma situação não planejada; 
 
2) houve uma notável economia de meios, ou seja, não precisou de nenhum raciocínio complicado, nem fez alusão a algum elemento externo ao fato em si; 
 
3) a intenção da resposta foi instantaneamente compreensível, sem precisar de explicações posteriores. (Piada explicada é piada perdida.) 
 
Darei como contra-exemplo uma graça contada por Ariano Suassuna, que também manifestava pendor por esse traquejo. Ariano, aliás, eu coloco no rol dos trocadilhistas clássicos, ao lado de Guimarães Rosa, Paulo Leminski, François Rabelais, Millôr Fernandes, Emílio de Menezes, James Joyce, Lewis Carroll e John Lennon.



Foi no tempo em que Ariano era jovem. Ele vinha andando na rua, numa tarde ensolarada e abafada do verão recifense. Um amigo se aproximou, os dois trocaram algumas frases, e o amigo disse:
 
– Olhe, Ariano, eu admiro muito você. Um sujeito íntegro, intelectualmente firme.
 
– Muito obrigado – disse Ariano.
 
– Você é uma pessoa admirável, uma pessoa íntegra. Eu diria mesmo: uma pessoa una.
 
– É mesmo? – disse Ariano, já com alguma coisa coçando atrás da orelha.
 
– E ainda mais nesse calor! – exclamou o amigo, erguendo a mão de encontro à luz do sol. – Esse calor terrível, que faz a gente suar.  E aí... suas, una?... 
 
Ariano fazia um muxoxo de incredulidade e comentava: “Veja bem, o sujeito faz um arrodeio desse tamanho, traz uns assuntos que não têm nenhuma relação, somente pra fazer um trocadilho vagabundo como esse.”  
 
É a contraprova do primeiro exemplo! Porque claramente não foi improvisado (foi pensado em casa e trazido para a rua), precisou introduzir dois temas não relacionados (integridade pessoal, e calor) e mesmo não precisando de explicação adicional fica bem claro que para juntar essas duas palavrinhas o sujeito precisou dar o equivalente a uma volta no quarteirão. 
 
Isso é o chamado “trocadilho infame”. E agora vou propor a segunda parte da minha teoria: se o trocadilho é uma arte, o trocadilho infame é uma anti-arte, uma paródia de si mesma, uma versão grotesca do Belo e uma versão disparatada da Sabedoria. Ou seja: é Arte também. 



Um trocadilho bem–feito nos leva a guardar alguns segundos de silêncio e depois dizer um palavrão admirativo ou um elogio ao geniozinho que o fez. Um trocadilho infame faz o grupo inteiro gargalhar ao mesmo tempo, dar tapa na perna, tapa na barriga, fazer munganga de arrancar os cabelos ou de cortar o próprio pescoço; provoca crises lacrimais de hilaridade e – em suma – reforça a boa-vontade entre os seres humanos, e consequentemente contribui para a Paz Universal. 
 
Pertence ao domínio do trocadilho infame a famosa “charada trocadilhesca”, tão dependente da deformação sonora dos vocábulos que não tem cristão no mundo que adivinhe a resposta. Meu exemplo preferido: “O animal na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas.”  (Resposta: tatu / sino).
 
Ou esta clássica: “Sofre de gagueira o filho do Couto. Não é ele, é o outro. Duas e três.” (Sacadura Cabral). 
 
O trocadilho infame só presta se for uma forçação de barra, um pino quadrado enfiado à força num buraco redondo (ou vice-versa), algo tão desnecessariamente complicado quanto aqueles mecanismos rubegoldberguianos em que dezesseis objetos diferentes são conectados uns aos outros para acender um interruptor de parede. 



(Ilustração: Rube Goldberg)
 
O trocadilho é uma Arte porque implica num mínimo de esforço para obter um máximo de efeito. O trocadilho infame é uma anti-arte porque implica num máximo de esforço para obter um mínimo de efeito. (E portanto, pelas leis do Humor, é uma Arte também.) 
 
(Este texto foi motivado por uma postagem de Alex Antunes no Facebook, onde ele dizia: “Se um baiano tem abdome negativo, ele é chamado de 'meu rei côncavo'?) 



 (cartum: Odyr)