sábado, 14 de março de 2020

4559) A ficção científica de Nelson Leirner (14.3.2020)




O artista plástico Nelson Leirner faleceu recentemente no Rio de Janeiro, com 88 anos. Era uma figura muito conceituada no meio das artes plásticas, mas a primeira referência que eu tive dele foi como autor de ficção científica.

Foram muito importantes para minha geração as publicações de duas editoras, nos anos 1960: a GRD (RJ), do meu hoje amigo Gumercindo R. Dórea, e a EdArt (SP), de Álvaro Malheiros. 

Juntas elas publicaram algumas dezenas de títulos de FC traduzidos (Robert Heinlein, Ray Bradbury, H. P. Lovecraft, Evgeni Zamyátin, etc.) e publicaram numerosos autores nacionais que vieram a se tornar os grandes nomes da chamada Primeira Onda da nossa FC: André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone, Jeronymo Monteiro e outros.

Uma das publicações mais importantes da EdArt foi a antologia Além do Tempo e do Espaço – 13 contos de ciencificção (São Paulo: EdArt, 1965).

A antologia já começava com esse neologismo, uma tentativa de criar um nome em português para uma literatura que, entre nós, era novidade. “Ciencificção” era uma maneira de tornar o nome próximo da sonoridade do termo original, “Science Fiction”. Não colou; e não sei dizer agora se foi usada na capa e nos demais paratextos dos livros da época.

Essa antologia, provavelmente organizada pelo próprio Álvaro Malheiros, tinha um dos projetos gráficos mais elegantes de toda a nossa FC, com capa de Luiz Dias e desenhos de Renato José. 

Os treze autores escolhidos eram André Carneiro, Domingos Carvalho da Silva, Antonio D’Elia, Álvaro Malheiros, Lygia Fagundes Telles, Clóvis Garcia, Nelson Leirner, Ney Moraes, Nelson Palma Travassos, Jeronymo Monteiro, Nilson Martello, Walter Martins e Rubens Teixeira Scavone.

O conto de Nelson Leirner intitulava-se “O Espelho”.

A narrativa, na primeira pessoa, começa com a reunião de vários astronautas num alojamento, enquanto esperam ser designados para as próximas missões espaciais. Um deles chama-se Enovacs, numa alusão direta ao autor paulista Rubens Scavone, que usou em algumas obras o pseudônimo “Senbur Enovacs”.

Enovacs descreve uma viagem que fez a Titã, a lua de Saturno, e ele descreve uma flor que avistou ali:

Aproximei-me, curvei-me e vi que de perto era ainda mais bela. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma luz brilhante. E o bater do vento movimentando a haste docemente fazia com que a corola traçasse círculos e mais círculos luminosos. (pag. 107)

O Narrador conta então que voou para a Lua, e seu foguete a certa altura penetrou numa “...gruta cujas paredes lisas davam a impressão de serem torneadas pelo homem”. Ele perde contato com a base e logo em seguida vê-se planando num espaço desconhecido, onde avista um planeta não identificado. Ao descer, ele percebe que está na Terra – o túnel onde tinha penetrado na Lua o conduziu, inexplicavelmente, para um deserto na Arábia.

Ele fornece a data exata da viagem: 22 de outubro de 1982. Cruzando o deserto, chega a uma cidade, consegue ir até Riad e pegar um avião de volta para sua cidade (não diz qual é). Ao desembarcar, vai direto para sua casa, que parece estar deserta – ninguém atende aos seus chamados na porta. Os transeuntes passam sem prestar atenção, como se não o vissem. Ele fica vagando perplexo pela rua, e tem um sonho, onde vai parar numa espécie de templo, onde as paredes multiplicam a cena de um casamento que ocorre lá dentro:

Vejo meu retrato de casamento. As portas do antigo templo voltam a abrirem-se e recebem o cortejo que caminha lentamente. Tudo é preto. Encontro-me cercado por quatro paredes, em cada parede quatro celas, em cada cela quatro noivas e o teto coberto por enorme espelho. Sessenta e quatro noivas, dezesseis celas, quatro paredes e o teto coberto por enorme espelho. (pag. 110)

Ao despertar do sonho ele volta à rua onde ninguém ainda o reconhece, mas uma mulher estranha para ao seu lado e os dois começam a conversar. Tornam-se amigos. Fazem daquele local um ponto de encontro. O narrador conjetura:

Talvez um outro “eu” estivesse me substituindo. Talvez esta não era a descoberta de uma nova rota entre a Terra e a Lua. Talvez tivesse caído em outro planeta que não fosse a Terra. Talvez estivesse num planeta que fosse o espelho da Terra. (p. 111)

O narrador está feliz por ter encontrado aquela nova mulher, e agora se divide entre o impulso de voltar para a Terra original, onde estão sua esposa e seus filhos, e o de permanecer ali. E ele corta bruscamente para o foguete, onde volta a percorrer a gruta, e ao emergir dela recupera o sinal de rádio, o contato com a base, e para lá retorna – para reencontrar o amigo descrevendo a flor que descobrira em Titã: “... Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma luz brilhante...”

O conto de Leirner tem essa estrutura em que o fim se cola no começo, anulando o tempo; tem uma prosa intensa e poética, de imagens vívidas, que compensa o enredo um tanto desconexo – não é uma ficção que traga respostas claras aos mistérios que propõe. Guarda essa curiosidade de ter sido escrito por alguém de fora do mundo literário (nos obituários recentes, não vi menção a nenhum livro de ficção escrito por Leirner), e com razoável competência.