terça-feira, 6 de agosto de 2013

3257) Vida e literatura (6.8.2013)


(D. F. Wallace, por Charlie Powell)

A vida é irredutível a palavras, como sabe quem já experimentou uma e quem utiliza as outras, mas é essa mesma incompatibilidade de essência que torna indispensável a tentativa. 

Verbalizar não produz uma síntese da experiência vivida, mas uma mera antítese a ela, uma expansão dela, a criação de um simulacro em tão alto grau de alteridade e de abstração que o simples ato de produzi-lo ou de absorvê-lo (ou seja, o ato de escrever e o ato de ler) turbina a intensidade da experiência vital, e chegamos a nos perguntar se faz sentido passar pela vida inteira sem experimentar esse simulacro que não a explica nem substitui, mas talvez a justifique.

No seu famoso ensaio “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer” (em Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo, Cia. Das Letras, 2012), David Foster Wallace assim descreve o cheiro de detergente no banheiro de um navio de luxo: 

“...um desinfetante norueguês estranho, mas nada mau, cujo perfume se parece com o cheiro que existiria se alguém, que conhecesse a exata composição organoquímica de um limão mas nunca tivesse de fato cheirado um limão, tentasse sintetizar o perfume de um limão.” 

A escrita é um epifenômeno (um fenômeno secundário, consequência de um fenômeno principal) que na tentativa de evocar o fenômeno principal desenvolve estruturas expressivas de tal complexidade que adquire vida própria e essência independente, tornando-se tão ou mais digno de atenção quanto o fenômeno que, a princípio, tentava reproduzir ou sintetizar.

Wallace falou em limão mas a imagem que me ocorre é a de um caju. O caju não é uma fruta. O fruto do cajueiro é na verdade a castanha (que para nós é somente um caroço avantajado, como o do abacate ou o do pêssego); o caju é apenas “um pedúnculo carnoso”, que desenvolveu forma, cor, aroma, textura, massa esponjosa, cordames tenros, sucos adstringentes e doces, e, como uma atriz tarimbada contracenando com uma estrela mais jovem, dá um jeito coreográfico de colocá-la de costas para a platéia, ou sob luz desfavorável, invertendo assim o balanço hierárquico e tomando as rédeas da cena. 

Não desmerecemos o fenômeno principal (castanhas assadas são sempre uma delícia), mas igualmente há que se tirar o chapéu para a exuberância ontológica desse mero coadjuvante que, por méritos próprios, consegue redefinir o Universo em seus próprios termos.

Pois é isso que a Arte, mero efeito, faz com a Vida, causa essencial e primeira de todas as coisas, dela inclusive; e o único consolo dos que apenas vivem e não têm tempo para a Arte é dizerem, cobertos de razão, que quando íamos para os cajus eles já vinham das castanhas.