domingo, 8 de junho de 2025

5183) A poesia não tem leis (8.6.2925)



(ilustração: Wassily Kandinsky)

 
Já fiz muitas oficinas de poesia pelo Brasil afora, sem contar as oficinas online, que cresceram de importância nos anos mais recentes. 
 
O Brasil está cheio de poetas, ou de pessoas querendo se exprimir através de poemas, o que não é necessariamente a mesma coisa. Acho isso uma boa notícia. Todo mundo deveria poder escrever poemas, assim como todo mundo deveria saber escrever cartas. 
 
É uma forma de expressão pessoal, onde você pode ter uma extensão incrível de liberdade, para dizer o que quer, do jeito que quiser, falar do que sente e do que não sente, do que viu, do que imaginou. 




O filósofo Hegel dizia que o domínio da poesia é o reino infinito do espírito. Minha divergência com Hegel (olha só o atrevimento) é que para ele poesia não se faz com palavras, e sim com idéias. Eu acho o contrário, mas como sou conciliador, gloso isto desta maneira: “Tudo que faz parte do espírito humano e pode ser expresso em palavras pode ser expresso em forma de poesia”. 
 
Nas minhas oficinas a coisa mais difícil de ensinar sempre foi o uso da forma fixa, da poesia em estrofes fixas, com uso obrigatório da métrica e da rima. Todo mundo quer fazer poesia, mas existe uma aversão às regras, à disciplina que a métrica e a rima exigem. Eu entendo. É como a aversão à matemática, a algo que tem regras rígidas e não pode ser escamoteado pelo aluno. 
 
Você não pode dizer: “Eu acho que 2 mais 5 é igual a 40, é minha opinião”. Você não pode dizer: “Eu vou fazer um soneto com 31 linhas de tamanhos diferentes, é minha maneira de fazer soneto”. 
 
Pode?  Ou não pode?  Existem leis poéticas?  Quem as escreveu?  Se a gente desobedecer, que viatura virá bater à nossa porta às 5 da manhã? 




Nas últimas semanas tenho lido as traduções da poesia de Lord Byron feitas por André Vallias (Byron: poemas, cartas, diários, &c, Ed. Perspectiva, 2025) - e tenho caraminholado um pouco a respeito das tais formas fixas, muitas das quais o Lord praticava duzentos anos atrás, e continuam a ser praticadas hoje em dia, inclusive em nosso idioma. 
 
O verso inglês se organiza em torno de conceitos métricos clássicos, que vêm da poesia grega e da poesia latina. Não vou me estender a respeito porque confesso que nunca estudei essa poética. Minha escola – mais rudimentar, talvez – é a escola de contagem silábica, da literatura de cordel e dos cantadores de viola, que é mais próxima, em alguns aspectos, do verso praticado pelos parnasianos e simbolistas brasileiros. 
 
Tanto é assim que temos um poeta como “Cancão” (João Batista de Siqueira), que foi uma espécie de sonetista parnasiano em São José do Egito, lá no Vale do Pajeú, em pleno epicentro da cantoria de viola. 



 
Voltando a Lord Byron, me deparei com um longo comentário de Edgar Allan Poe sobre a métrica do Lord em seu ensaio clássico “The Rationale of Verse”, traduzido entre nós como “Análise Racional do Verso”. 
 
Os teorizadores da métrica criaram uma imensa terminologia para designar os “pés” poéticos: iambo, troqueu, espondeu, dáctilo, etc. Neste trecho, Poe está comentando um verso “dactílico” de Byron, verso que usa o “dáctilo”, uma unidade métrica que consiste em uma sílaba forte seguida por duas fracas. A palavra DÁ-ti-lo, por exemplo; ou a palavra SÍ-la-ba
 
Diz Poe, comentando um verso de Byron que exibe uma leve desobediência à lei: 
 
Isto convinha lindamente bem; mas as Gramáticos não admitiam tal pé, como de uma sílaba; e além do mais o ritmo era dactílico. Desesperançados, os livros são rebuscados, porém, e por fim os investigadores são recompensados com uma plena solução do enigma, na profunda “Observação”, citada no começo deste artigo: “Quando está faltando uma sílaba, diz-se que o verso é catalético; quando a medida é exata, o verso é acatalético; quando há uma sílaba redundante, forma hipérmetro”. Isto basta. Sentencia-se que a linha anômala é catalética na cabeça e forma hipérmetro na cauda – e assim por diante, logo se descobrindo que quase todas as linhas restantes se acham em similar categoria, e que o que flui tão maciamente para o ouvido, embora tão asperamente para o olho, é, afinal de contas, uma simples misturada de cataleticismo, acataleticismo e hipermetrismo, para não dizer pior. 
(Edgar Allan Poe, Poesia e Prosa, Ed. Globo, 1960, trad. Oscar Mendes e Milton Amado, pág. 535)
 
A questão aqui não é o verso de Byron em si, é o fato de que os gramáticos e os teóricos, como quaisquer outros cientistas, são vulneráveis à Psicose Classificatória. É precisa classificar tudo, dividir em grupos, depois dividir esses grupos em setores, e cada setor em departamentos, e cada departamento em sub-departamentos e assim por diante. E botar um nome diferente em cada coisa descoberta. 
 
Não nego a importância desse processo – apenas acho que não é decorando essas taxonomias que se aprende a escrever poesia. 
 
Explicar que certos versos são cataléticos e outros são acataléticos é como dizer que um tem consoantes fricativas e outro tem consoantes bilabiais. Provavelmente é verdade, e isso talvez resolva o problema de quem classifica, mas adianta muito pouco a quem escreve. 


 

Quando penso nessas classificações dos versos, lembro das classificações dos passos de dança. Cada dança tem certos “passos” estabelecidos pela tradição. O tango, por exemplo. Existe toda uma coreografia de movimentos combinados entre o homem e a mulher, movimentos que podem ser aprendidos por qualquer pessoa, numa escola de dança qualquer. 
 
Penso nas nossas danças-de-salão brasileiras, a gafieira, etc.  Existem passos já estabelecidos: o “cavaleiro” paga a dama, roda pra um lado, roda pro outro, dá uma volta, pega na cintura, faz uma acrobacia... Como dizia meu pai, quando é bem feito fica muito bonito. 
 
Todo mundo é obrigado a dançar assim? De jeito nenhum. Eu não sou um dançarino muito bom, sou da escola dois-pra-lá-dois-pra-cá, mas não importa – danço para me divertir, não para dar espetáculo; mas eu não posso fazer minha dancinha feijão-com-arroz e dizer que estou dançando tango, ou gafieira. Não estou. 
 
Às vezes alguém vem me mostrar algo que escreveu: “Olha aqui esse meu cordel.” Eu leio e respondo: “É um bom poema, bem escrito, mas não é um cordel. O cordel tem regras.” 
 
Ou então: “Isto aqui é um ótimo poema, mas não é um soneto. Um soneto tem regras”. 
 
Quando certos tipos de poemas aparecem com regras, não são as regras do Código Penal. são as regras de uma dança, ou de um jogo. Uma atividade que tem um lado lúdico. E é da essência do jogo a existência de regras um tanto arbitrárias, mas que são aceitas com alegria pelos participantes. 
 
Quando as formas poéticas propõem regras, é para o prazer consensual de quem as pratica, e quem não sente prazer nessa atividade deve ter escolhido o meio de expressão errado.