segunda-feira, 27 de outubro de 2008

0621) Leituras aconselhadas (16.3.2005)




Acontece de vez em quando, e toda vez que acontece eu penso comigo mesmo: “Preciso preparar uma resposta para a próxima vez que acontecer”. Por alguma razão freudiana, nunca preparo (talvez a razão freudiana seja a vertigem do improviso, a fascinação pelo ato de abrir a boca e começar a falar sem ter a mínima idéia do que vou dizer). 

Mas voltando ao assunto principal, tudo isso ocorre quando alguém me diz: “Me aconselhe um livro bom”. Como diabo se responde a isto?

Não há conceito mais subjetivo e impalpável do que o de “um livro bom”. Pessoas gostam de ler diferentes coisas, por diferentes motivos. Eu não posso simplesmente aconselhar um clássico da literatura: “Leia Os Irmãos Karamazov...” Corre o risco do cara perguntar se eu próprio já o li, e eu ter que dar a humilhante resposta. (Me consolo em pensar que Jorge Luís Borges também não leu.) 

Muitas vezes o que o interlocutor quer é que lhe aconselhemos isso que hoje em dia se chama um livro “cult” – um livro bom, bem escrito, fascinante, que dê o que pensar, mas que por alguma razão seja conhecido por muito pouca gente, o tipo do livro que dificilmente veremos elogiado num suplemento literário. 

O que o nosso amigo quer equivale a nos perguntar “uma praia legal onde passar as férias”. Tá na cara que ele não quer ouvir como resposta “Porto Seguro” ou “Búzios”.

Como eu tenho fama de conhecedor de ficção científica, muitas vezes a pergunta é: “Qual o livro de FC que você me aconselha?” Fico igualmente perdido, a não ser que se trate de um amigo cujos gostos literários eu conheço bem. Porque aí posso pensar por associação de idéias. 

Eu digo: “Olhe, se você gosta de política e ciência, talvez goste de Os Despossuídos, de Ursula Le Guin – é a história de um sujeito dividido entre dois mundos, sabendo-se prestes a fazer uma descoberta científica que vai revolucionar a humanidade, mas para isto tendo que largar seu país pobre e socialista e ir trabalhar num país capitalista e corrompido, mas que vai lhe dar laboratórios à altura”. Onde se lê “país” leia-se “planeta”, aliás.

Aconselhar leituras é sempre problemático porque a gente vê num livro uma coisa, e o cara ao lado vê outra. 

Já me pediram um livro engraçado e eu propus O Pêndulo de Foucault

Já me pediram um livro erótico e eu aconselhei Noites do Sertão de Guimarães Rosa. 

Já me pediram um livro de amor e eu indiquei Fragmentos do Discurso Amoroso de Roland Barthes (talvez a única coisa inteligente já escrita sobre o tema). 

Já me pediram um livro de terror, daqueles de deixar o cara uma semana sem dormir, e eu (desta vez de propósito) indiquei As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano.

Aconselhar livros é pior do que alcovitar namoros alheios, porque nunca sabemos quando um casal livro-e-leitor vai se ajustar, se encaixar, se combinar. Melhor deixar isto entregue aos deuses do Acaso, e à bússola cega e clarividente de cada um.






0620) Zilka Salaberry (15.3.2005)



Morreu Zilka Salaberry, a Dona Benta do “Sítio do Picapau Amarelo”. Para mim é o caso típico da atriz de um papel só, embora eu saiba muito bem que Dona Zilka teve uma carreira longa e variada. Paciência. Anos e mais anos interpretando a matriarca do Sítio fixaram sua imagem de maneira indelével na minha (acredito que na de nós todos) memória afetiva.

Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Alguns deles, como Historia do Mundo para as Crianças, Emília no país da gramática, Serões de Dona Benta ou O Picapau Amarelo, não li menos de cem vezes. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo, porque a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.

Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem alguns contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Lobato e Malba Tahan formataram minha cabeça e a de mais de uma geração. Graças a eles dois, dezenas de milhões de brasileiros como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.

Voltando a Dona Benta, é admirável que Lobato tenha escolhido uma avó, e não um avô, como o símbolo da sabedoria. Talvez eu tenha me deixado contaminar com facilidade porque sou de uma família onde as mulheres idosas sempre foram chegadas tanto aos livros quanto às lições de sapiência, ao saber “só de experiências feito”. Minha mãe, minha avó Clotilde, minha tia Adiza, foram algumas das principais Donas Bentas que supervisionaram meu crescimento e a formação do meu caráter. Isto me tornou um adepto de certas formas de matriarcado, porque sendo homem eu entendia muito bem os rompantes de autoritarismo e de rispidez dos homens, sabia de sua falibilidade como líderes. As mulheres, mais compassivas, mais serenas, tinham uma autoridade que se baseava menos no individualismo e mais numa rede interligada de responsabilidades.

É notável que Monteiro Lobato, num livro como A Reforma da Natureza, faça com que ao final da II Guerra Mundial os líderes da Europa, engalfinhando-se em contradições e disputas, resolvam convocar Dona Benta e Tia Nastácia para servir como “árbitras” das questões internacionais. Dona Benta, muito bem informada sobre política, aceita imediatamente e parte para a Europa. Aos oito anos de idade eu achava isto uma coisa meio surrealista, e ao mesmo tempo extremamente lógica. Afinal, Hitler, Mussolini e o Rei Carol da Romênia tinham comprovado sua incompetência para gerir o mundo, e nada mais natural do que convocar para conserta-lo as pessoas cujo sistema de administração tinha produzido uma comunidade organizada e pacífica.

Dona Benta é o símbolo de uma autoridade baseada na experiência e na credibilidade, mas disposta a acreditar no novo, no imprevisto e no improvável – haja vista a disposição com que ela se deixa arrastar nas aventuras das crianças, seja visitando a Grécia antiga, seja indo parar na Terra do Faz de Conta.

0619) O rádio e a vitrola (13.3.2005)




(Rádio-vitrola Philips)

O rádio e a vitrola (ou CD-Player, para os mais contemporâneos) nos dão experiências diferentes da vida. Quando ligamos o rádio, nunca sabemos exatamente o que vamos escutar. No máximo temos idéia do horário dos programas: programa de notícias, de música, de futebol, etc. Mas quando ligamos um programa musical, não escolhemos as canções, ficamos à mercê do programador. Claro que sempre é possível escolher uma rádio “que só toca MPB”, ou “só toca rock”, etc., mas não temos direito a escolhas mais específicas.

Na vitrola, o programador somos nós. Ela só toca se a gente disser o quê, e botar pra tocar. Por definição, então, a vitrola só toca o que a gente possui em casa. Temos controle sobre a programação – com a ressalva de que, se quisermos ouvir um disco que não temos, nada feito.

Ouvir rádio ou ouvir vitrola, portanto, são experiências de vida distintas. Na infância, toda vez que eu ligava o rádio tinha medo de que tocasse muita porcaria, mas o que esperava era que de repente aparecesse uma música que eu gostava e não tinha em casa, ou então alguma novidade que me fizesse largar qualquer brinquedo com que estivesse me entretendo (ou, de preferência, largar o dever de casa) e correr para junto, para ouvir até o fim e ficar sabendo qual era a música, quem era o artista. Ouvir rádio era um contato com O Mundo. As grandes epifanias musicais da minha vida foram através do rádio. A primeira vez que ouvi “Saudosa Maloca”, a primeira vez que ouvi “Eleanor Rigby”, ou The Brothers Four cantando “The Green Leaves of Summer”, Nelson Gonçalves cantando “Vermelho 27”, Leny Eversong cantando “Granada”.

Já a vitrola nos transporta para um mundo perfeito porém fechado. Nesse mundo, só ouvimos o que já conhecemos e já gostamos; e é um mundo onde não existe a novidade, a surpresa. Mesmo a possível surpresa tem que passar primeiro pelas nossas mãos, tem que ser comprada ou ganha e colocada por nós para tocar.

Assim é a cabeça das pessoas. A pessoa com Cabeça Rádio vive antenada para tudo que acontece em volta, é sempre uma das primeiras a perceber o brotar de novas tendências. Vive plugada nos terminais da Contemporaneidade, sensível ao mínimo estremecimento sísmico da cultura planetária, venha ele da Turquia ou da Provença. O lado negativo disto é que a pessoa tende a se distrair com irrelevâncias, a valorizar besteiras, e a consumir quantidades industriais de lixo cultural.

A pessoa com Cabeça Vitrola vive em seu mundo perfeito, onde as mudanças só ocorrem com uma lentidão geológica. Torna-se um gurmê de si mesmo, porque de tanto escutar e re-escutar seu próprio repertório passa a conhecê-lo num grau espantoso de sutileza e detalhe. As novidades lhe chegam em conta-gotas. E seu gosto, à medida que se torna exigente e perfeccionista, torna-se também conservador. Só ouve o que gosta, e só gosta do que já conhece.

Na vida cultural brasileira temos numerosos e ilustres exemplos de ambos os grupos.