quarta-feira, 15 de novembro de 2023

5002) Explicar o poema e a piada (15.11.2023)




Dizem que Ava Gardner, numa visita social ao poeta Robert Graves, disse a ele: “Sabe de uma coisa, Robert, eu não entendo poesia.” E ele, cavalheirescamente: “Minha querida, ninguém espera que você entenda um poema, espera que você o desfrute.”
 
Isto bate um pouco com a afirmativa de Stanley Kubrick de que um filme, idealmente, não deve ser compreendido, e sim desfrutado como se fosse uma peça musical.
 
Quer dizer que um poema não deve ser examinado pelo nosso intelecto, pela nossa mente racional, analítica? Deve, sim; se alguém inventar de dizer que não deve, aí é que a mente analítica se assanha toda para produzir interpretações.
 
A questão é outra. Um poema não converge para uma explicação nítida e clara, como ocorre com um problema matemático. O poema espalha significados em várias direções, a cada leitura, e para cada leitor.
 
Interpretar (“explicar”) um poema é uma tarefa desnecessária mas inevitável, porque somos uma civilização propensa a interpretar tudo. Precisamos explicar tudo cujo sentido não é imediatamente claro – uma chuva fora de estação, um bezerro que nasceu com duas cabeças, um carro novinho que deu o prego na BR, o comportamento bizarro de um técnico de futebol ou de um político.
 
Ao ler um poema diante de uma classe com 40 adolescentes, um professor de literatura não consegue ficar o tempo inteiro colhendo e comparando 40 impressões. Ele cede à tentação demasiado humana de matar a charada:
 
– Este poema fala sobre a perplexidade do Homem diante da falta de sentido de nossa civilização.
 
Soa tão plausível que desse momento em diante todas as leituras do poema tenderão a passar por esta porta, e só por ela.
 
Uma das maiores armadilhas em que o leitor acaba caindo é a de achar que um poema tem uma “resposta certa”, uma “mensagem”, um “significado único” que é preciso descobrir, como se fosse uma charada ou uma adivinhação.
 
Uma adivinhação é algo assim:
 
O que é, o que é: cai em pé e corre deitado?
Resposta: a chuva.
 
Quem inventou essa adivinhação tinha esta resposta em vista, e nesse caso, sim, podemos considerar que esta é a “resposta certa”.
 
Outras podem admitir mais de uma resposta-certa, e com isso servem de jogo de engana-engana.
 

 
(Trupizupe, o Raio da Silibrina, direção de Hermano José, com Gilmar Albuquerque, Saint-Clair Avelar e Geová Amorim, 1979, Campina Grande)


Na minha peça Trupizupe, o Raio da Silibrina (1979) vários pretendentes vão à corte do Rei responder adivinhações, para conquistar a mão da princesa, mas ela é mal-humorada e não quer casar com ninguém.
 
REI: Que entre o primeiro candidato!
(ENTRA CANDIDATO 1)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A distância!
PRINCESA: Errado! É a escuridão. Cortem-lhe a cabeça!
(CANDIDATO 1 SAI)
REI: Que entre o segundo candidato!
(ENTRA CANDIDATO 2)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A escuridão!
PRINCESA: Errado! É a distância. Cortem-lhe a cabeça!
 
E por aí vai. O conceito de “resposta certa” pertence ao domínio da Matemática, da Lógica, da Ciência (de algumas Ciências), mas não ao domínio da cultura popular ou da poesia.
 
O poema é um gerador de “imagens”, “melodias” e “idéias” (fanopéia, melopéia e logopéia, nos termos usados por Ezra Pound), e quem o escreve tem consciência de estar apenas desencadeando um processo nas mentes alheias. 
 
Mal comparando, o poema é como um raio de luz. As mil-e-uma impressões sensoriais, emotivas e intelectuais que fervilham na mente do poeta são como um espectro de várias cores, que ele consegue por fim sintetizar num raio único, de cor branca, onde se contém tudo que estava em sua mente. Esse raio branco é o poema. E quando o poema é lido por uma pessoa, ele volta a se refratar em raios de várias cores, mas – isto é crucial – esses raios jamais serão idênticos aos que havia na cabeça do poeta. 



Assim como nossos olhos veem no mesmo arco-íris um arco-íris diferente do que as pessoas ao nosso lado estão vendo (porque o ângulo de incidência dos raios luminosos é diferente, mesmo com alguns centímetros de distância entre os olhos de um e os olhos do outro), nossa leitura do mesmo poema é parecida mas nunca é igual. Porque aquelas palavras despertam ressonâncias diferentes em mim e em você. 
 
Um poema não conduz a um único significado, previsto (e disfarçado) pelo autor. É um gerador de múltiplos significados – todos flutuando, é claro, no interior da “nuvem” de significados cabível nas palavras do texto. O poema não é uma casa-da-mãe-joana onde cada um lê o que bem entende. 
 
Um poema é para ser sentido, desfrutado, saboreado, experimentado com interesse, curiosidade, sem muita pressa de “entender”, de “achar a resposta”. 
 
Nem todo poema se presta a isso. A maioria dos poemas que eu leio eu não desfruto muito, não porque “não compreenda o significado”, mas, em geral, porque já li centenas de poemas muito parecidos. Aquele ali, por mais benfeitinho que esteja, é agradável, mas não me traz muita novidade. É uma lata de Coca-Cola a mais. 
 
Explicar um poema é um pouco como explicar uma piada. A gente conta a piada. Algumas pessoas riem no final, outras não. Então a gente vai explicar a piada, o que já é, por definição, a confissão de uma derrota. É como fazer uma carícia na parceira, ouvir dela que não sentiu absolutamente nada, e depois explicar-lhe cientificamente por que deveria ter sentido alguma coisa. “Sheldon In Love.” 
 
A emoção do poema e a graça da anedota dependem muitas vezes de um voo mental, dependem da nossa capacidade de, num segundo, repensar o que vinha sendo pensado e ver tudo com novos olhos, a partir de cada informação nova que chegou. 




Fazer isto é saltar de um pico-da-montanha a outro, sem descer ao vale; mas o que chamamos “compreender” é filho do “explicar”, que é por natureza uma atividade pedestre. Explicar requer um avanço passo a passo, um reconhecimento cauteloso de cada pedaço de chão, como quem cruza uma floresta detendo-se a nomear e descrever cada árvore.  
 
Nem o poema nem a anedota resistem a esse desfibrar de uma experiência que se supõe instantânea. Claro que uma explicação sempre deixa algum lucro atrás de si; mas é como explicar a água fria a alguém que nela não mergulha a mão. 
 
Ou explicar o que é o leite a um menino cego, como na anedota antiga que li em Seleções
 
Um Homem está passeando no parque, num dia de sol, fazendo companhia a um Menino cego de nascença. O menino se queixa do calor e diz que gostaria de tomar um copo dágua. 
 
Homem: Por mim, eu tomaria um copo de leite. 
 
Menino: O que é leite? 
 
Homem: É um líquido branco. 
 
Menino: Líquido, eu sei o que é. Mas o que é branco? 
 
Homem: É a cor das penas de um ganso. 
 
Menino: Penas, eu sei o que é. Mas o que é ganso? 
 
Homem: É uma ave do pescoço torto. 
 
Menino: Pescoço, eu sei o que é. Mas o que é torto? 
 
O Homem, já impaciente, pega o braço do menino, estica-o, e diz: “Assim, seu braço está reto”. Dobra o braço do Menino, e diz: “E assim está torto”. 
 
Menino: Ah... Entendi o que é leite. 
 
O problema da maioria das explicações, principalmente as de poesia, é que tendem a se afastar cada vez mais da questão inicial. 


 
Para explicar uma frase, o explicador propõe um conceito que não está visível no poema em si. Não está muito distante, também; mas só em ser chamado a esclarecer alguma coisa ele já desloca o centro da discussão um pouquinho para o lado. Um novo questionamento afasta esse centro ainda mais, e assim por diante. 
 
O poema vai se distanciando no retrovisor, vai sumindo, e a explicação vai produzindo novos e mais novos conteúdos, e em torno deles a discussão avança. Pode deixar algo positivo? Sem dúvida. Mas o poema perdeu-se lá atrás, intacto. 
 
E é isto que acontece com centenas, milhares de poemas que lemos desde a infância e a adolescência, enquanto ampliamos a nossa capacidade de ler e de sentir. E jamais chegaremos a um ponto em que sejamos capazes de “entender” qualquer poema. Ninguém chega – embora seja capaz de explicar tudo e mais um pouco.