segunda-feira, 30 de maio de 2022

4828) "Night Sky": a FC da terceira idade (30.5.2022)


 

Na ficção científica tudo se cria, na medida em que tudo se transforma. E toda vez que utilizamos a tradição – temas que já existem, situações já exploradas, ambientes já descritos – nosso dever e nosso desafio é fazer com que essa parte da nossa história, a parte tradicional, familiar, já-conhecida, seja a parte menos relevante. A parte mais interessante tem que ser o que o autor traz de novo, de seu, de único, de peculiar – mesmo que seja apenas a receita na recombinação dos elementos antigos, como faz um chef de cozinha.
 
Na culinária, como na arte da narrativa, é meio raro alguém inventar um ingrediente. Tudo está na recombinação, naquela mistura única entre uma dúzia de ingredientes, entre um milhão de combinações possíveis. E no estilo de cada um, a “mão” da cozinheira.
 
O seriado Anos Luz (“Night Sky”, 2021) está com sua primeira temporada em streaming no Amazon Prime. Concebida e coordenada por Holden Miller, a série é uma agradável recombinação de temas antigos e recentes. Vou citar os que me vieram à mente enquanto assistia; outros espectadores, claro, terão lembrado de outras referências.
 
Way Station (1963) é um romance de Clifford D. Simak, um dos clássicos da FC de sua época. Nele, um fazendeiro solitário e discreto mantém num subsolo em sua fazenda um portal que dá acesso a outros planetas. Por esse portal trafegam criaturas de espécies diferentes, para as quais ele trabalha, servindo como uma espécie de hoteleiro, guia, quebrador-de-galhos. É uma “estação de trânsito”, como diz o título que o livro teve em português, para quem viaja pelo espaço.
 
Dark (2017-2020) é uma série de TV alemã, criada por Baran bo Odar e Jantje Friese. Numa cidadezinha alemã algumas pessoas descobrem portais subterrâneos que dão acesso a outras épocas, recentes ou remotas. Isso desencadeia fugas, crimes, tragédias, desaparecimentos, etc., e revela a existência de uma sociedade secreta de “guardiões” do segredo da viagem no tempo. Uma gente bastante implacável.
 
The Lost Room (2006, Canal Syfy), série de TV criada por Christopher Leone. Um quarto de motel, vítima de um evento físico inexplicável, é transportado para outro plano do espaço-tempo. Objetos associados a ele passam a produzir efeitos sobrenaturais e são buscados com avidez por colecionadores, pesquisadores e gangsters, que não hesitam diante de nada para obtê-los.
 
Elementos cruciais dessas três narrativas estão misturados em Night Sky, cuja história é centrada num casal setentão, J. K. Simmons (“Juno”, “Whiplash”) e Sissy Spacek (“Carrie, a Estranha”, “Missing”, “Coal Miner’s Daughter”), numa cidadezinha de Illinois. Os dois estão casados há uns 50 anos, perderam um filho único, têm uma neta. No primeiro episódio da série acompanhamos seu dia-a-dia carinhoso e às vezes áspero (por causa dele, principalmente), onde o maior medo parece ser a invalidez, ou o Alzheimer.


Num barracão nos fundos da casa ele encontraram anos atrás um bunker subterrâneo de onde é possível acessar uma espécie de mirante que dá para um planeta desconhecido. É o segredo deles. O “segredo”, como se vê, é de domínio público, no que diz respeito aos roteiristas e dramaturgos. Portais subterrâneos que proporcionam viagens no espaço ou no tempo não são mais propriedade intelectual de ninguém. E justamente por não sê-lo, não é neles que a história precisa se concentrar, a menos que disponha de uma super-idéia inovadora – o que é raro. O que interessa a quem escreve e a quem assiste é o reflexo daquilo na vida das pessoas ao redor.
 
Farnsworth, a cidadezinha onde tudo acontece, é um ambiente ideal para os autores desenrolarem sua trama, que tem de tudo: problemas conjugais de casal velho, problemas conjugais de casal jovem, relação entre filhos e pais, entre avós e netos, entre mãe solteira e filha única, entre ex-professores e ex-alunos... No meio da dinâmica inesgotável de tais situações, Night Sky constrói uma narrativa que avança a passos lentos.
 
Muitos críticos se queixaram do ritmo arrastado da série: eu achei uma bênção. As séries de FC atuais têm mais “Ação & Aventura” do que FC, e querem ganhar o público pelo excesso de efeitos, velocidade da narrativa, brutalidade das situações, espetacularidade dos desfechos. No primeiro episódio já ocorrem cinco assassinatos, quatro explosões, dois estupros, três perseguições de carro e uma sessão de tortura.
 
Night Sky não tem nada disso – nos oito episódios da primeira temporada, lembro de ter visto um assassinato e alguns tiroteios apenas. Há violência, tensão e ameaça, contudo: no avançar da história tomamos conhecimento de que, tal como em Dark, existe uma irmandade secreta, cruel, autoritária e impiedosa, monitorando quem viaja (e quem foge) através daqueles portais. Esses fugitivos são os “apóstatas”, que mesmo escapando para o outro lado do mundo sabem que podem ser alcançados cedo ou tarde por agentes vingadores – tal como ocorreu com Trotsky no México, Somoza no Paraguai ou Orlando Letelier nos EUA.  



 
A série tem o suspense necessário para atrair a atenção dos que gostam do melodrama de perseguição, mas é no troco miúdo dos desencontros cotidianos que ela ganha densidade e o ritmo arrastado fica imperceptível. Já observei que uma cena longa, parada, onde “nada acontece”, onde um personagem está apenas fumando um cigarro e olhando pela janela, ou duas pessoas estão em silêncio numa mesa de restaurante, ganha densidade se àquela altura a gente sabe quem são elas, o que sentem, o que pensam, e o que deve estar acontecendo na cabeça delas naquele instante. Quando o espectador não se interessa por isso, ou não desenvolveu esse tipo de “psicografia” (ficar adivinhando o que o personagem pensa), a cena não tem graça nenhuma. Cabe ao escritor/diretor evitar que isto aconteça.
 
Night Sky – que tem no Brasil o título de Anos Luz – deixou mais perguntas do que respostas no fim desta primeira temporada, o que é uma boa coisa. A base do seu “visgo” é sem dúvida o casal idoso de protagonistas, suas gentilezas, suas distâncias, seus carinhos, suas amarguras, suas cumplicidades ritualizadas ao longo dos anos e, ao longo dos episódios, as mentiras, os segredos, os fatos escondidos “para não magoar o outro”, “para não assustar o outro”.
 
Este último aspecto se reflete com mais força em um dos núcleos narrativos secundários, o das duas mulheres argentinas que cuidam de um dos portais secretos: a mãe, que sabe de tudo, e a filha de 15 anos, protegida do segredo, uma garota esperta, inquieta, revoltada com a solidão em que vive (a mãe a proíbe de ter amigos), revoltada com a quantidade de vezes em que ouve variantes de “você ainda não está pronta para saber a resposta”.  
 
Tal como em outra série que comentei aqui recentemente, Severance, a narrativa desta primeira temporada começa lenta, expositiva, desvelando pouco a pouco as complicações do enredo, e ganha uma acelerada nos três últimos episódios.
 
Dark, a série alemã, esticou-se demais, foi vítima do próprio sucesso e acabou emaranhando em excesso a própria narrativa (mesmo assim, merece ser vista). Já The Lost Room  tinha uma premissa e uma execução tão “davidlynchianas”, tão cheias de elementos surrealistas e bizarros, que nunca teve a chance de uma “temporada 2”, e parece que seus mistérios ficarão mistérios para sempre.
 
Resta torcer para que Anos Luz possa prosseguir em paz.
 


 













sexta-feira, 27 de maio de 2022

4827) O indivíduo na planície (27.5.2022)



As verdades da literatura (da arte em geral) são verdades subjetivas, de dentro para fora. Um ótimo livro pode ser inspirado por uma idéia, e outro ótimo livro pode ser inspirado pela idéia oposta. Isto vale até para extremos como o de religiões, ideologias, políticas, etc. Mas o mais comum é vermos temperamentos diferentes produzindo obras diferentes.
 
Steven Erikson é um autor canadense, arqueólogo de formação, autor da bem-sucedida série de fantasia do “Malazan Book of the Fallen”, no estilo de Game of Thrones.
 
Numa entrevista à revista Locus (# 484, maio de 2001) ele faz uma comparação interessante de sua obra com a obra da também canadense Margaret Atwood, autora de The Handmaid’s Tale. Erikson se queixa de que existe, entre autores canadenses, uma mentalidade de vítimas do ambiente; heróis canadenses, cedo ou tarde, sucumbem ao ambiente e morrem.
 
É uma luta incessante que envolve um meio ambiente muito inóspito e a persistência humana; uma luta onde o ambiente invariavelmente triunfa. E todo mundo adotou este aspecto de vitimização como nossa identidade cultural. (trad. BT)
 
Erikson faz uma comparação entre duas atitudes possíveis:
 
De acordo com a tese de Atwood, se eu mostro um indivíduo solitário parado no centro de uma planície, esse indivíduo irá se sentir pequeno e insignificante. Mas quando eu escrevo algo assim, esse indivíduo percebe que ele, ou ela, é a coisa mais alta que existe de horizonte a horizonte. Com isso eu assumo uma atitude completamente diferente, que muitas vezes é uma reação deliberada a todo o espírito predominante no meio acadêmico e literário do Canadá.
 
Em discussões desse tipo brota muitas vezes a pergunta: “E qual dos dois está certo?”  Minha resposta geralmente é “Não existe resposta certa e resposta errada a esse tipo de pergunta. Cada autor reage de forma pessoal aos estímulos da sociedade e da cultura e do momento histórico. Cada um tem sua resposta, sua reação, sua verdade.”
 
Querer reduzir a “identidade nacional” canadense às atitudes pessoais de Atwood e de Erikson é algo sem sentido. Mesmo que não estivéssemos falando de algo tão complexo, mesmo que fosse apenas uma questão tipo “Qual a sua atitude pessoal diante do mundo?”, ainda assim as respostas são insuficientes. Erikson escreveu uma série de fantasia com 10 romances, provavelmente uma massa de texto maior que Game of Thrones, com centenas de personagens. Ninguém escreve algo dessa dimensão sem possuir um repertório proporcional de idéias, emoções, conceitos, respostas diante da vida, que possam ser transmitidas aos personagens.
 
Todo autor “é” seus heróis, mas esses heróis não bastam para representá-lo. Ele é também seus vilões, e seus figurantes medíocres, e suas vítimas trágicas, e seus “alívios cômicos”.
 
Este é o perigo de quando estudamos superficialmente uma literatura qualquer (ou qualquer conjunto de obras artísticas). Muita gente dirá que a literatura de Machado de Assis é cheia de sutilezas, de ceticismo, de ironia. Isso resume Machado? De jeito nenhum. Guimarães Rosa inventava palavras novas, distorcia a sintaxe, misturava regionalismos com arcaísmos. Isso resume sua obra? De jeito nenhum.
 
Um dos problemas de quem é professor, ou de quem escreve textos para o público em gral, dando informações iniciais sobre um tema, é a necessidade de usar esses resumos, essas formulazinhas, essas micro-definições que nem de longe correspondem à complexidade de um autor. Mas quando estamos fazendo balanços gerais (“O conto brasileiro na segunda metade do século 20”...) é inevitável fazer esse tipo de redução. Pegamos um autor de obra extensa e variada, e o definimos em duas ou três linhas de texto, que serão lidas, decoradas e repetidas por algumas pessoas até o fim da vida, crentes de que aquilo é “a verdade”.
 
A obra de Nelson Rodrigues exibe conhecimento psicológico, visão pessimista do ser humano, uso do sexo e do palavrão, autenticidade nos diálogos e nas descrições de ambientes, principalmente da classe média carioca.
 
Isso aí é verdade? Eu penso que sim, enxergo tudo isso na obra de Nelson. Saber isso equivale a conhecer a obra de Nelson? De jeito nenhum! 
 
Mas se nós, que somos profissionais da escrita, não temos tempo de ler as obras mais importantes de todos os autores importantes, o que dizer do leitor comum, cuja vida útil é ocupada com mil outras tarefas e compromissos? Se eu, que leio 5 a 6 horas por dia, não consigo ficar em dia com tudo, quanto mais a pessoa que lê 5 ou 6 horas por semana, ou menos que isso.
 
Daí que essas formulazinhas de vez em quando precisam ser viradas pelo avesso.
 
Kafka era pessimista? Talvez, mas também havia humor no que ele escrevia – consta que ele lia capítulos de O Processo para a família e todos morriam de rir.
 
Augusto dos Anjos era o poeta da morte? Talvez, mas muitos dos seus poemas são celebrações cósmicas da Vida, vista como uma série infinita de metamorfoses e processos evolutivos.
 
Cecília Meireles era uma poetisa subjetiva e emocional, cantando a natureza, os devaneios? Talvez, mas escreveu também um dos maiores poemas políticos de nossa literatura, o Romanceiro da Inconfidência.
 
E assim por diante. Não deveríamos nos limitar nem mesmo às avaliações que os autores fazem de si mesmos; nem sempre, ou quase nunca, o que um autor vê em sua própria obra é o que vai encontrar resposta nos leitores.
 





terça-feira, 24 de maio de 2022

4826) "Love, Death & Robots - ano 3" (24.5.2022)



 
Os derradeiros despojos da ficção científica dos Estados Unidos foram repartidos entre a Disneylândia e o Pentágono.
 
A frase acima não representa minha opinião oficial sobre o tema. É apenas um gracejo que me ocorreu, enquanto assistia a terceira temporada da ótima série de animação Love, Death and Robots (produzida por David Fincher), que entrou recentemente na Netflix. O nível técnico da série (a animação em si) é de excelente qualidade, as histórias são rotineiras mas bem desenvolvidas. Há várias adaptações de contos de autores da “primeira linha” da FC (Ellison, Scalzi, Bacigalupi, Ballard, etc. – e nesta terceira série, Bruce Sterling e Michael Swanwick.).
 
Aqui, minhas impressões sobre os nove episódios desta série mais recente.
 

Ep. 1 – “Three Robots: Exit Strategies”, de Patrick Osborn, bas. em John Scalzi.
São três robozinhos exploradores dos resíduos da civilização humana. Ficaram como uma espécie de personagens-símbolo da série. Diálogos curtos e ferinos, mostrando as razões do fracasso do processo civilizatório no planeta Terra, fracasso que já em 2022 era irreversível e de conhecimento público, mas, fazer o quê?  Fazer humor, melhor que nada.

 

Ep. 2 – “Bad Travelling”, de David Fincher, bas. em Neal Asher
Um monstro meio crustáceo-antropófago se apodera de um navio e sequestra a tripulação. Uma narrativa totalmente noturna e dark, que não tem nada de mais mas acaba se destacando por sua ambientação marítima e retrô, fugindo ao tom de space opera da maioria dos episódios da série.
 



Ep. 3 – “The very pulse of the machine”, de Emily Dean, bas. em Michael Swanwick
Uma astronauta “naufraga” num satélite e precisa aproveitar o oxigênio da companheira que morreu no acidente, enquanto atravessa a pé um deserto e se enche de drogas para manter-se viva. Visões alucinógenas, comunicação telepática... uma daquelas “robinsonadas” da FC, pessoa sozinha tentando sobreviver em meio hostil. 
 
 

Ep. 4 – “Night of the Mini Dead”, de Robert Bisi & Andy Lion, bas. em Jeff Fowler & Tim Miller.
Um dos melhores episódios, descrevendo a escalada gradual (mas acelerada) de um apocalipse zumbi que começa no cemitério de uma cidade e acaba se espalhado pelo planeta. O uso permanente da imagem distanciada é um recurso simples mas muito eficaz. A narrativa é tão acelerada quando a ação. Lembra o episódio “Ice Age” da 1ª. temporada, em que toda uma civilização se desenvolve e se auto-destrói em poucos dias, no freezer de um casal.



Ep. 5 – “Kill Team Kill”, de Jennifer Yuh Nelson, bas. em Justin Coates
Um fucking team de soldados armados até os fucking dentes enfrenta na floresta um fucking urso-cyborg criado pela CIA, numa orgia de disparos, rajadas e fucking explosões. Uma prova de que as armas de fogo não passam de um substituto-potencializador da ejaculação masculina (ou pelo menos é isso que um personagem dá a entender, lá na fucking linguagem dele).
 



Ep. 6 – “Swarm”, de Tim Miller, bas. em Bruce Sterling
É a única história desta série que eu já conhecia, baseado num dos contos mais intrigantes de Sterling (1982; no livro Crystal Express, 1989), da sua série “Shaper/Mechanist”. Cientistas humanos mergulham num mundo subterrâneo (ou subaquático?), comunicando-se com espécies alienígenas através de feromônios. Não reli o conto, não sei até que ponto o enredo se mantém, mas a estranheza do ambiente e dos seres é muito bem reconstituída. A animação a serviço da imaginação pura, cheia de alusões e de subtextos biológicos. Um dos melhores episódios desta série.
 


Ep. 7 – “Mason’s Rats”, de Carlos Stevens, bas. em Neal Asher
Um fazendeiro precisa de livrar de uma praga de ratos mutantes, inteligentes, e recorre a um vendedor de armamento de extermínio high-tech. Desgraça vai se amontoando por cima de desgraça, enquanto ele é forçado a comprar armas cada vez mais sofisticadas e mais caras, que fazem os ratos evoluírem milênios em questão de dias. O fazendeiro começa a ficar de saco cheio com aquilo, e a ter idéias. Ótimo episódio de tiroteio, com humor e criatividade.



Ep. 8 – “In vaulted halls entombed”, de Jerome Chen, bas. em Alan Baxter
Outra fucking aventura de um fucking grupo de super-soldados invadindo uma caverna protegida por enxames (?) de fucking aranhas metálicas antropófagas. Os sobreviventes acabam tendo acesso a um fucking templo megalítico subterrâneo, onde (depois que a munição deles se esgota) uma fucking criatura lovecraftiana os hipnotiza e pede para ser libertada. Fuck.



Ep. 9 – “Jibaro”, de Alberto Mielgo.
É o episódio mais enigmático e elusivo de todos, mostrando um grupo de guerreiros numa floresta sendo atraídos a um lago por uma aparição feminina que lembra um destaque de Escola de Samba e que causa um morticínio geral. Faço piadas, mas o episódio tem uma belíssima sucessão de imagens, tem uma narrativa puramente visual que lembra em alguns momentos o ritmo “aos solavancos” dos videogames, e nele a violência é um elemento, apenas, numa mandala narrativa de mitologia e mistério. O diretor Mielgo (ao que parece, autor do argumento) já havia apresentado, na temporada 1, o episódio “The Witness”.
 
Três temporadas já são o suficiente para fazer desta série uma das melhores séries antologia de FC em streaming, comparável aos melhores momentos de Black Mirror. O fato de ser em animação é um atrativo a mais, porque de história para história não mudamos apenas de ambiente e personagens, mudamos o alfabeto visual por inteiro. Mesmo com as inevitáveis repetições!  Grupos de mercenários fuzilando monstros, pessoas trancafiadas com monstros em ambientes fechados, robôs frankensteinianamente descontrolados, personagens aparentemente frágeis ou ingênuos revelando-se páreo-duro para monstros ou exércitos...
 
São os clichês e as convenções de qualquer gênero bem sucedido quando encontra um novo nicho de expressão e exibição. É sempre bom levar em conta que mesmo um clichê acaba sendo visto pela primeira vez por alguém, porque novas gerações de espectadores não param de surgir. E la nave va.
 
 
 
 







sábado, 21 de maio de 2022

4825) Minhas canções: "Batida"



(BT, no Teatro Lira Paulistana, foto Iroã Simões)
 
Minha vitoriosa carreira de cantor-de-bar começou em finais dos anos 1970, sucedendo a uma também vitoriosa carreira de cantor-de-mesa-de-bar.
 
Para os leigos a distinção pode parecer irrelevante, mas para os praticantes essa diferença é tudo e mais um pouco. Cantar em mesa de bar é justamente para os leigos, os diletantes, as pessoas felizes que estão ali apenas se divertindo. Cantar-no-bar é reivindicar o palco para si. E envolve conversar com o dono, mandar fazer cartazes e fôlderes, cobrar couvert artístico – em suma, sentir-se um Artista de verdade.
 
Nessa época, eu morava em Salvador, e além da capital baiana cantava em bares da Paraíba (Campina Grande e João Pessoa), e de Pernambuco (Recife e Olinda). Era um anônimo, um compositor de menos de 30 anos e sem nenhuma música gravada.
 
Isso foi mudando aos poucos, graças a Elba Ramalho, que me “amadrinhou” gravando algumas canções. Mas a essa altura eu já tinha aberto uma franquia cordelesca que me ajudava a faturar alguns caraminguás noturnos, além do famoso “couvert”. Através dos meus contatos com os cordelistas, comecei a editar folhetos com as letras das músicas que cantava no palco.


 
Este folheto foi homenageado anos depois pelo meu futuro parceiro Silvério Pessoa, num CD homônimo. O folheto trazia as letras das músicas “A Hipótese do Hipopótamo Tartamudo”, “Batida”, “Parece que é Rock”, “Soberano Desprezo”, “Meu Pai”, “Calango, Jumento, Mosquito e Preá” e “Caldeirão dos Mitos”.
 
Não dava para sobreviver mas ajudava. Digamos que eu vendesse um folhet por 5 reais; tinha noite em que eu chegava a vender 50 ou 100. Era uma grana extra que às vezes equivalia ao que era arrecadado com o “couvert” ou ingresso.
 
“Batida” era uma das canções típicas dessa época, e forneceu o nome, “Batida de Madrugada”, do meu primeiro show pra valer em espaço nobre – o Centro Cultura Luís Freire (Olinda), ao lado do meu parceiro Zeh Rocha, em 1979.


(com Zeh Rocha) 
 
Eu tinha várias canções melodicamente mais elaboradas, com dedilhado lento, e apesar de não serem tecnicamente blues eu as batizei de “blues etílicos”, porque quase todas falavam em bebedeira e dor de cotovelo. Eram canções como “Atlântico Blues”, “Cabelo de Espantalho”, a própria “Batida”, etc.
 
Depois que vim morar no Rio, descobri a banda Blues Etílicos, e houve uma conexão telepática imediata. Alguns anos se passariam até ficarmos amigos e eu compor, a pedido de Flávio Guimarães, a letra da “Balada de Robert Johnson”, que ele e Sebastião da Silva gravaram brilhantemente.
 
E no papo-vai papo-vem com Flávio, Otávio, Greg e o resto da turma acabei me lembrando da minha velha “Batida”, que eles gravaram de maneira divertida e escrachada em 2003, no álbum Cor do Universo.
 
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=44l-I2xLCko
 
Muitas das minhas músicas daquela época estão longe do esquema habitual das canções de MPB: primeira parte, segunda parte, refrão, etc. Elas seguem o esquema da canção folk: uma estrofe musical simples, que se repete sempre igual, com letra diferente. Pense em “Asa “Branca”.
 
“Batida” é uma dessas letras que poderiam ser esticadas indefinidamente, porque admitem uma espécie de mote, mudando apenas a palavra final, e sugerindo infinitas rimas.
 
 
 
 
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BATIDA
(BT)
 
Quando o tempo vai roendo
os ossos do calendário
e você envelhecendo
como um lobo solitário,
ainda existe uma saída
pra salvar o coração:
basta um copo de batida
de limão.
 
Quando alguém deixa os teus braços,
sai voando, e vai viver,
e o teu amor feito em pedaços
leva tempo pra morrer...
Pra curar essa ferida
de uma paixão que se acaba
basta um copo de batida
de goiaba.
 
Quando a noite desce fria
como um fundo de uma lagoa
e ao amanhecer do dia
a luz dos olhos magoa,
pra que a alma dolorida
tenha onde repousar
basta um copo de batida
de maracujá.
 
Quando você já não quer
acreditar em ninguém
e os olhos dessa mulher
amam sem dizer a quem...
Para haver uma saída
ligando o eu e o tu
basta um copo de batida
de caju.
 
Quando todo mundo crê
que o que importa é ser feliz
e entre todos só você
sabe que não, mas não diz..
Para a boca contraída
imaginar que está sorrindo
basta um copo de batida
de tamarindo.
 
Quando o último segredo
torna iguais o não e o sim
e a gente encara sem medo
a rocha escura do fim,
pra curar o mal da vida
quando não restar mais nada
basta um carro e uma batida
de madrugada...
Basta um carro e uma batida
de madrugada...
 
E aqui, eu mesmo gravando em Natal, no estúdio DoSol, sob os auspícios de Ana Morena Tavares e Anderson Foca:
 
https://www.youtube.com/watch?v=oiZ8n3NodAM
 





quarta-feira, 18 de maio de 2022

4824) Movimento Armorial 50 anos (18.5.2022)



(ilustração: Eduardo Azevedo)


O Movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna, está completando 50 anos de existência, e em sua homenagem o Centro Cultural Banco do Brasil produziu uma exposição que foi inaugurada em Belo Horizonte, está atualmente no Rio de Janeiro, e no segundo semestre deverá seguir para São Paulo e Brasília.
 
A exposição é vasta e cobre as áreas em que o Movimento Armorial atuou: teatro, música, literatura, artes plásticas, cinema, televisão... Falta alguma coisa? Talvez, porque foi uma estética que se espalhou por todos esses lados, a partir da visão que o próprio Ariano tinha da arte e especialmente da chamada arte popular.
 
Ariano Suassuna via no folheto de cordel a síntese dessa estética. O folheto é visto tradicionalmente como uma espécie de “besouro que não podia voar, mas voa”, um livrinho que não parece livro, não parece nada, mas acaba cumprindo sua função. Começou a ser produzido em massa no Nordeste a partir da década de 1890, e vendeu muitos milhões de poemas impressos nas décadas seguintes.
 
Vendeu (isto é o mais importante) para milhões de pessoas que não tinham acesso a livrarias nem dinheiro para comprar livros, mas que gostavam de histórias, gostavam de versos, gostavam de cantigas, de piadas, de comédias e tragédias.
 
Criou-se assim a Literatura de Cordel nordestina, que Ariano preferia chamar Romanceiro Popular Nordestino, destacando o fato de que o mais importante ali eram os poemas, e não os livrinhos onde eles vinham impressos.
 
Sem que isto, é claro, desmerecesse os livrinhos, uma tradição que já era européia e portuguesa, mas que aqui no Brasil ganhou fisionomia própria.



Ariano via nesses folhetos a convergência de várias artes. A poesia, porque o folheto de cordel é sempre em verso, composto em estrofes de forma fixa, geralmente a sextilha, a septilha e a décima (com 6, 7, ou 10 linhas).
 
Além da poesia havia a música, porque o folheto é cantado na feira para chamar a atenção dos compradores. Existem centenas de toadas melódicas que coincidem exatamente com o formato das estrofes dos folhetos, de modo que cada folheteiro é capaz de pegar um folheto que nunca viu e encaixar nele uma melodia perfeita e pre-existente.
 
E havia também a literatura, no sentido da arte milenar de contar histórias. Grande parte do cordel consiste em narrativas, historinhas, aventuras, tragédias, comédias... Isto se soma aos folhetos descritivos, retóricos, propagandísticos; soma-se às reconstituições das “pelejas” dos cantadores ou das “discussões” de personagens do povo. Mas o cordel é maciçamente um universo onde se contam histórias de entretenimento.
 
Sem esquecer as artes plásticas, porque a partir de certa altura o folheto nordestino começou a ser ilustrado com xilogravuras na capa. Gravuras toscas, mas que com o passar do tempo foram se aprimorando e revelando grandes artistas da goiva e da madeira: J. Borges, Marcelo Soares, Stênio Diniz, Abraão Batista, Dila e tantos outros.
 
E a arte do folheto incorpora também o teatro, porque o folheteiro, no ato de cantar o folheto na calçada da feira, vira um teatro de um homem só, enunciando a narração distanciada, depois assumindo o papel e a voz do dragão ameaçador, da mocinha ameaçada, do cavaleiro valente, do rei magnânimo, do vizir astucioso... Cada personagem é cantado ou recitado com voz diferente, dando aos espectadores, em cada dez ou quinze minutos em que o folheteiro faz amostra de um livrinho, um pequeno esquete teatral onde o ator único se torna quase brechtiano em seu controle narrativo e percepção atenta do que ocorre ao redor.


A Exposição “Movimento Armorial 50 Anos” tem curadoria de Denise Mattar, produção de Regina Godoy, expografia e arquitetura de Guilherme Isnard, identidade visual de Ricardo Gouveia de Melo.
 
A consultoria geral da exposição é de dois amigos meus que são além de tudo as minhas fontes para quando eu preciso saber de alguma coisa relacionada à obra de Ariano Suassuna e dos artistas armoriais. Manuel Dantas Suassuna é filho de Ariano e depois da morte do pai passou a gerir as atividades relativas à sua obra. Carlos Newton Júnior trabalhou durante muitos anos com Ariano, tem o que é certamente o maior arquivo de documentos, manuscritos e referências da obra do dramaturgo, e (esperançosamente) encontrará tempo para escrever a primeira grande biografia do autor da Compadecida.
 
Há algumas coisas que eu gostaria de destacar na exposição.
 
Uma delas é a presença do Ariano pintor, o Ariano desenhista, ou artista plástico, tema que Carlos Newton já destacou numerosas vezes em artigos e palestras. Ariano não apenas escrevia, como inventou de sua cabeça uma nova forma de arte que ele denominou de “iluminogravura”, uma mistura das “iluminuras” dos manuscritos medievais com as “gravuras” em geral, principalmente as xilogravuras nordestinas.


Ele produziu então essa série de trabalhos, aqui expostos, em que ele copiava um soneto seu com caligrafia cursiva (a letra de Ariano é inconfundível), e criava em torno dele uma floresta de símbolos, desenhados e pintados: monstros, estrelas, formas extraídas da “Pedra do Ingá” e outros sítios de inscrições rupestres, símbolos alquímicos (penso eu), astrológicos...
 
São trabalhos realizados principalmente (se não me engano) na década de 1980, e é possível, ao acompanhar uma parede cheia desses quadros, perceber o começo tateante e depois a firmeza gradual que o artista foi adquirindo na composição e execução de sua figuras hieráticas, emblemas estáticos que aos nossos olhos podem lembrar as figuras de um mural egípcio. Ou os elementos heráldicos de um brasão. Ou o arranjo descontínuo e meio enigmático das imagens de um “rébus” charadístico...
 
Também é importante ressaltar as presenças dos artistas mais variados que produziram obras dentro da estética armorial: Gilvan Samico, Zélia Suassuna, Romero de Andrade Lima, Aluísio Braga, Francisco Brennand... Cada um deles com uma história pessoal e uma estética bem sua, mas incorporando-se mesmo que brevemente ao movimento, como é o caso de Brennand, grande amigo de Ariano, e autor dos figurinos da primeira versão cinematográfica do Auto da Compadecida (1970).
 
A exposição não esgota o movimento armorial, nem poderia, por tantas ramificações e influências que ele produziu. Embora centrada na obra do criador do movimento, tem espaço suficiente para ilustrar, principalmente para os que não conhecem bem o ambiente cultural da Paraíba e Pernambuco, fontes primárias da inspiração de Ariano Suassuna, um pequeno repertório das influências que moldaram a sua arte. Assim é que temos salas dedicadas aos folhetos de cordel, ao maracatu urbano e rural, ao cavalo marinho...

Num texto em que explicava as origens e as características do Movimento Armorial, Ariano Suassuna fez a seguinte comparação:

 ...(a)os esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. (...)  (Armorial era aquilo que) brilhava em esmaltes puros, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim. (...) Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados, como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa música barroca do século XVIII.

(Ariano Suassuna, O movimento armorial








domingo, 15 de maio de 2022

4823) Improvisando trilhas sonoras (15.5.2022)

 


A música é uma forma de arte total, que só diz o que está dizendo. Não precisa se reportar a nenhuma realidade externa a si mesma. A pintura abstrata chega perto disso: são formas que valem por si, pelas cores, pelo movimento que sugerem, pelas associações inconscientes que provocam.
 
Isso faz com que, por uma espécie de paradoxo, a música instrumental possa ser “pregada” a qualquer imagem e assim constituir, de modo aleatório, um comentário a essa imagem. O cinema faz isso o tempo todo.
 
Podemos fazer o tempo todo também. Juntar uma música e uma imagem que não têm relação entre si. Quando entrei na era do computador (que facilitou esse processo, do ponto de vista meramente físico, de botar-e-tirar as músicas), cansei de rodar no monitor as imagens (sem som) de um filme qualquer, e ao mesmo tempo tocar um CD qualquer, fazendo de conta que aquela era a trilha sonora do filme.
 
Em geral, não resulta em nada mais do que uma cacofonia desconchavada. Mas às vezes produz certos sincronismos que arrepiam a gente.
 
Há umas experiências curiosas por aí – se bem me lembro, assistir O Mágico de Oz tendo como fundo musical um disco de Pink Floyd. “As possibilidades, como sempre, são infinitas.”
 
Vai daí que muitos cineastas encomendam trilhas sonoras improvisadas aos seus parceiros de música. Ao invés do cara ver o filme, compor, orquestrar, escrever e gravar uma trilha inteira, e depois essa trilha ser pregada no filme, o compositor vai ao estúdio com seu instrumento, as imagens são projetadas numa tela, e ele vai vendo aquilo e improvisando.


Neste clipezinho do YouTube, vemos Neil Young tocando e gravando a trilha sonora que ele fez para
Dead Man (1995) de Jim Jarmusch. É um faroeste meio surrealista, um dos melhores filmes do diretor, e ele escolheu para trilha sonora a guitarra de Young, aquela guitarra tão fanhosa quanto o dono, distorcida, rasgada, com notas longas arranhando-se interminavelmente e depois cedendo lugar a punhaladas curtas, agudas, lancinantes.
 
Neil Young & Jim Jarmusch
“Dead Man”
 
Outro tipo de utilização da guitarra é o que Werner Herzog propôs a Richard Thompson. Herzog é um repentista a médio prazo, gosta de fazer um certo planejamento e na hora de rodar joga tudo pra cima pra ver de que jeito cai. O improviso faz parte, e para isso ele dispõe de uma estrutura previamente pensada e “provisoriamente definitiva”, dentro da qual ele vai engastando os repentes dos atores, os erros que acrescentam, os imprevistos caídos do céu para esquentar uma cena que se arrastava morna.


Grizzly Man (2005) é um documentário dele sobre Timothy Treadwell, um cineasta e ambientalista que foi morto por um urso quando o filmava. Imprevistos assim parecem ferrar a fogo uma espécie de sinete sobre uma obra a quem isso acontece. Para a música, Herzog chamou o guitarrista Thompson, e combinou com ele o seguinte: ele não veria o filme todo. Veria 30 segundos de cada sequência, para ter uma idéia do que se tratava, e depois improvisaria tudo no estúdio.
 
Talvez isso servisse para evitar que o músico, tocando com o olho pregado na tela, acabasse executando riffs instrumentais muito servis, muito obedientes à imagem: música ligeirinha para uma corrida, música nostálgica para uma lua cheia sobre os montes... Podemos apenas supor.
 
Aqui está o resultado, naquele timbre sofrido e metálico de blues instrumental, parecido com a paleta sonora de Ry Cooder para o Paris, Texas de Wim Wenders.
 
Richard Thompson & Werner Herzog:
“The Grizzly Man”
 
Retroagindo no tempo, podemos lembrar um dos melhores resultados desse sistema de colaboração. O francês Louis Malle, um dos melhores diretores de sua geração, estava ultimando Ascenseur pour l’échafaud (1958). É um filme policial noir, história de um crime cuidadosamente planejado que acaba não dando certo por causa de um imprevisto. É uma das melhores interpretações de Jeanne Moreau, principalmente na longa sequência em que ela, desorientada por não ter notícias do seu amante (o tal criminoso), vagueia desesperada por entre a treva luminosa de uma Paris em preto-e-branco.


Um duendezinho irreverente me sugere jogar como trilha sonora Maria Bethania cantando Paulo Vanzolini (“À noite eu rondo a cidade, a te procurar, sem encontrar...”). Louis Malle fez melhor: chamou Miles Davis e seu grupo para improvisar os temas musicais, olhando o filme rolar mudo na tela e tocando em cima.
 
Um breve aperitivo do resultado:
 
Miles Davis & Louis Malle
“Ascensor para o Cadafalso”
 
O filme é excelente, o resultado musical idem.
 
A música, por ser abstrata, é capaz de envolver uma sequência de imagens concretas sem modificá-las por dentro, mas imprimindo nuances emocionais no espectador, que tem a experiência simultânea da imagem e do som.
 
Muitas outras melodias poderiam ser superpostas, com bons resultados, às belas imagens do filme de Malle, fotografadas por Henri Decae. E os improvisos de Miles Davis poderiam servir de comentário emotivo a inúmeras cenas de inúmeros outros filmes.
 
É um vale-tudo? Qualquer música se encaixa em qualquer imagem? De jeito nenhum. O mais provável é que se tenha de fazer dezenas de combinações até achar uma que sirva. Mas para mim existe uma fascinação nessa cena de um estúdio à meia-luz, uma tela repassando cenas mudas de um filme que ainda não existe, e um músico de olho na tela, mãos no instrumento, procurando às cegas, e com a clarividência dos cegos, a alma daquele filme.
 








quinta-feira, 12 de maio de 2022

4822) "Não sou especialista, mas..." (12.5.2022)



A gente está vivendo um momento curioso na História da Opinião.
 
De um lado, todo mundo quer emitir uma opinião sobre qualquer assunto. Desde o preço do café até o filme do Batman, desde a guerra da Europa até a corrida espacial. E vai logo dizendo:
 
– Não sou especialista nisso, mas...
 
Ela pede desculpas por, não sendo especialista, ter a ousadia de emitir uma opinião sobre aquilo.  Mas, por quê? Será que só especialistas podem comentar sobre um assunto? Será que para comentar sobre a invasão da Ucrânia eu tenho que ser especialista em guerra, ou em geopolítica da Europa Oriental?...
 
Para comentar um prato culinário, é preciso ser chef? Para dar palpite sobre um romance recém-publicado é preciso ter Mestrado em Literatura da PUC ou na USP?
 
Eu tenho um certo número de assuntos em que dou palpites, teorizo, defendo idéias, questiono opiniões. Sou especialista em qualquer um deles? De jeito nenhum. E não sou justamente porque há dúzias de assuntos que me interessam. Como poderia me especializar em dúzias de assuntos?
 
Meus interesses flutuam. Às vezes eu passo anos sem ler um romance policial sequer, sem ouvir baião, sem ver um “filme cabeça”. Depois, tenho uma recaída braba. Por que? Não sei. São interesses pessoais, emotivos. Minha vida intelectual é afetiva. A faceta profissional é mera consequência.
 
Meu conhecimento é cheio de lacunas, de falhas estruturais, de coisas lidas às pressas na juventude e não revisitadas depois... Tenho consciência disso. Por isso já me vi constrangido mil vezes quando fui apresentado “E agora, vamos ouvir o especialista em Cantoria de Viola, Braulio Tavares...” Se eu pego o microfone e confesso que não o sou, as pessoas vão comentar: “Gente, como ele é modesto...” e outros vão dizer: “Que sujeito hipócrita.”
 
Nem uma coisa nem outra. Meu conhecimento é alternadamente empírico e teórico. Eu vejo algo interessante, passo vinte anos lendo aqui e acolá, até que um dia meto os pés e penso: “Peraí. Esse negócio é muito mais sério do que eu pensava. Preciso estudar esse troço pra valer.” Aí passo alguns anos estudando, depois volto à “fruição sem compromisso”, lendo só como leitor, sem categorizar, sem questionar... Vinte anos depois, estudo de novo... E la nave va.
 
O que me faz aceitar convites para dar palestras ou cursos, inclusive recebendo cachê, é o fato de que eu convivo com esses assuntos há muitos anos. Mas convivo pensando. Mesmo não tendo descoberto nenhum teorema-de-pitágoras que possa classificar como de minha autoria, não me importo. Se algum ouvinte estiver interessado no tema, eu posso indicar alguns caminhos-das-pedras. E sou (imagino ser) um bom popularizador de idéias complexas. E não sou nem um pouco modesto; pelo contrário.
 
Meu objetivo é ser capaz de explicar um assunto a quem entende dele menos do que eu, e ser capaz de fazer perguntas pertinentes a quem entende mais.
 
Minha mentalidade é aquilo que na discussões acadêmicas se classifica às vezes como “mentalidade jornalística”: capaz de falar superficialmente sobre 257 assuntos, sem poder se aprofundar em nenhum. Acho isso ótimo. A sociedade precisa de pessoas assim. Desde que elas saibam que são assim, e para que servem.
 
O problema (acho) é quando a pessoa diz:
 
– Não sou especialista nesse assunto, mas vocês todos estão errados e quem sabe o que está acontecendo sou eu.
 
Hoje, depois das profundas mudanças estruturais nas nossas linhas de comunicação coletiva (internet, redes sociais, smartphones, aplicativos de grupos, etc.) estamos oscilando entre dois polos.
 
De um lado, o Império dos Especialistas, uma tecnoburocracia regida, a golpes de bibliografia e sarcasmo, por acumuladores de títulos e de portfólios. Ali, um cidadão comum hesita antes de abrir a boca e dar um mero palpite, pelo receio de ser humilhado em público, além de esmagado por toneladas de currículo.
 
Do outro lado, a Babel dos Opiniosos, uma arena cheia de pessoas de microfone em punho, todas falando ao mesmo tempo, e cada uma delas imbuída não apenas do direito democrático de ter opinião sobre o que quer que seja, mas também do dever de bradar essa opinião cem vezes por dia, e não admitir que alguém a conteste.
 
 
 
 




segunda-feira, 9 de maio de 2022

4821) "Severance": o Eu dividido (9.5.2022)



Tempos atrás, Philip K. Dick concebeu a história de um policial do departamento de narcóticos a quem cabe vigiar a casa de um usuário de drogas. O policial vigia a casa com toda aplicação. O que ele não sabe é que ele é o próprio usuário, que sofre de dupla personalidade e na verdade está vigiando sua própria casa, sua própria turma de amigos.
 
O usuário sai de casa todo dia de manhã para o trabalho, e no trabalho passa por um processo que o obriga a ir vigiar a casa “daquele sujeito suspeito” – que é ele próprio.
 
A Scanner Darkly (1977) foi publicado no Brasil com o título “O Homem Duplo”, mesmo título da adaptação cinematográfica de 2006, dirigida por Richard Linklater em forma de animação.
 
É o grau máximo das histórias de FC sobre personalidades divididas, um subgênero ilustremente inaugurado por Robert Louis Stevenson com Strange Case of Dr. Jekyll and Mr Hyde (1886). Este livro pode ser considerado FC, pois se trata de uma transformação de personalidade provocada pelo uso de uma droga fabricada em laboratório.
 
Uma nova versão deste tema, e mais apropriada a nossa época corporativa, é a série Ruptura (“Severance”), da Apple TV, projeto dirigido pelo comediante Ben Stiller. Não há muitos momentos de humor: a série é séria. É um pesadelo corporativo comparável a O Show de Truman (1998) de Peter Weir. A fábula de como os seres humanos se transformam em bonecos para atender às conveniências das empresas que os sustentam.
 
Uma grande corporação, a Lumon, oferece aos seus empregados a opção de fazer uma “ruptura” (“severance”) em suas mentes através do implante de um chip. Com isso, cada pessoa passa a ter duas mentes, uma para sua vida pessoal, outra para as horas de trabalho. E cada uma desconhece o que se passa na vida da outra, pois as respectivas memórias não são compartilhadas.
 
Quem já trabalhou em grandes empresas vai sentir um calafrio de terror quando assistir isto. Quem trabalha nesse regime precisa de fato, na hora do trabalho, esquecer por completo quem é, como vive, o que pensa; esquecer que é contra isto ou a favor daquilo; esquecer sua própria pessoa, em troca de bons salários, segurança, plano de saúde, e bônus, muitos bônus quando as metas forem atingidas.
 
Tudo isto é acidamente ridicularizado em Severance.
 
E quando o sujeito chega em casa, no aconchego de seus móveis, seus discos, a esposa, as crianças, os amigos, a última coisa que ele deseja é pensar no trabalho. Ele não quer, aqui fora, ficar pensando: Que empresa é esta? O que ela faz?: Como se comporta? Para que serve isto que passo o dia fazendo? Qual a utilidade desse trabalho que sei fazer mas não sei o que significa?


Mark (Adam Scott) é o recém-promovido líder de uma equipe de quatro pessoas, que tem mais Irving (John Turturro), Dylan (Zach Cherry) e a novata Helly (Britt Lower). Os primeiros episódios mostram Mark ensinando a Helly como se adaptar ao choque de não lembrar “quem é”, de como executar o trabalho, etc. Com isso, é resolvido de forma simples o problema de explicar todos esses detalhes ao espectador.
 
Acompanhamos a vida de Mark dentro do trabalho (chamemos de “Mark 2”) e fora (“Mark 1”). Sabemos quem é ele, entendemos os problemas por que passa; a cidadezinha onde ele vive existe praticamente em função da Lumon, o que não impede que os jovens, principalmente, façam manifestações de rua pedindo o fim da empresa.
 
Uma das grandes vantagens da ficção científica é poder radicalizar situações da vida real. A dupla personalidade é uma patologia mental, digamos – mas na FC essa patologia mental pode se tornar uma prática médica regulamentada e acessível a quem tem muito dinheiro. E para grandes empresas, principalmente empresas que detêm segredos corporativos, seria uma-mão-na-roda essa possibilidade de isolamento mental dos funcionários.
 
Afinal, “A Primeira regra do Clube da Luta é: Você não conversa sobre o Clube da Luta”. O que acontece aqui dentro, fica aqui dentro.
 
Severance lida com essa superposição de realidades na mente dos personagens, e de certa forma as projeta no espectador – porque embora vejamos tudo de fora, e saibamos coisas que Mark não sabe, tudo aquilo é também um mistério para nós, mistério que começa a se acelerar nos capítulos finais desta primeira temporada, à medida que novas revelações vão gerando novos enigmas. 
 
A premissa não é tão fantasiosa assim – os cientistas de hoje lidam até mesmo com a possibilidade de “recortar” memórias e implantá-las num cérebro, e não é absurdo supor que possa ser criado algum “filtro” que divida o cérebro em dois sistemas paralelos de memória, assim como podemos dividir um HD em dois.
 
O que seria, aliás, apenas a concretização física de um processo que, psicologicamente, todo trabalhador se esforça para produzir em si mesmo. Não pensar na família nem no lazer, quando está trabalhando. Não pensar no trabalho, quando está em casa. Muitos de nós achariam isso um paraíso.