domingo, 12 de dezembro de 2010

2425) Vou ali comprar cigarro (12.12.2010)



Eram 18:43 de uma noite de verão quando o dr. Amadeu Felinto, dobrando o jornal que lia, ergueu-se da poltrona, vestiu de novo o paletó, caminhou pelo corredor e, chegando à sala onde sua esposa, D. Marilena, estava pondo a mesa do jantar, anunciou: “Vou ali comprar cigarro e já volto”. Ela assentiu com um gesto, continuou a distribuir talheres e pratos no leiaute costumeiro, mas, ao ouvir a porta da frente se fechando, estremeceu.

Toda mulher sabe. Está gravado nos seus neurônios com o mesmo dedo de fogo com que os Dez Mandamentos estão gravados nas Tábuas de Moisés. Se um dia, antes do jantar, um marido sair dizendo que vai comprar cigarros, ele nunca mais volta. Dobrará aquela esquina pela última vez e nunca mais será visto. Sumirá na multidão, perderá o nome e o rosto, as impressões digitais, o código genético. Virará uma sombra sem substância, como o Wakefield do conto de Hawthorne. Um espectro que uma maldição milenar e enigmática proíbe de retornar ao lar.

D. Marilena puxou uma cadeira e sentou-se, pois percebeu que a vertigem a faria desabar. As crianças brincavam no quarto; a TV estava ligada baixinho na sala; o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de D. Marilena. Só não estava tranquilo seu coração, corroído pelo mais sulfúrico dos ácidos: o pavor diante do Estava Escrito. Naqueles minutos cruciais que determinaram toda sua vida futura, ela equacionou bens contra despesas, a poupança contra as mensalidades escolares dos filhos, as prestações e seu minguado salário de enfermeira. Traçou um plano de resistência às ironias e falsa piedade das vizinhas. Localizou com presteza uma dúzia de conhecidos que em breve começariam a ligar: “A sra. precisa sair, espairecer, a vida continua...”, e para cada um rascunhou uma desculpa convincente. Não, não amaria mais ninguém depois de Amadeu. Mesmo sendo abandonada de forma tão humilhante. Até o momento daquela derradeira e fatídica frase, ele tinha sido um marido ideal. Mesmo tendo sumido para sempre, era o marido ideal.

Ergueu-se. Foi à cozinha verificar se água do café já fervera. Passou o café numa mistura de piloto automático e sonambulismo, calculando quando pediria pelo carro, pois não sabia dirigir. Descartou de início quaisquer proventos da seguradora, pois sabia que seguradoras só pagam diante de cadáveres, não de homens que saem para comprar cigarros e se transformam em ectoplasma.

Pôs o café na garrafa térmica, arrolhou-a. Foi à porta do quarto. Clarice e Amadeuzinho brincavam, nos últimos momentos felizes que teriam. Não deram pela sua presença; como reagiriam à ausência do pai? D. Marilena foi até a sala, e teve a sensação de estar vendo aqueles móveis e paredes pela primeira ou pela última vez. A porta se abriu. Dr. Amadeu entrou tranquilo, cigarro aceso nos dedos, olhou-a: “Que cara é essa?” Ela arrancou um suspiro, foi até ele, retirou um fiapo de sua lapela e disse apenas: “Demorou...”