quarta-feira, 11 de setembro de 2013

3288) Você é o escritor? (11.9.2013)


(Dashiell Hammett)

Quando Dashiell Hammett, o autor de O Falcão Maltês, passou alguns meses preso, ficou amigo do funcionário que cuidava da biblioteca da cadeia. Hammett foi preso em 1951 por se recusar a testemunhar contra seus amigos comunistas (ele próprio era membro do Partido) durante a famosa “caça às bruxas” em Hollywood. Ele aproveitou para botar a leitura em dia, e leu obras como Jane Eyre de Charlotte Bronte, Almas Mortas de Gogol, Tess of the d’Urbervilles e Judas o Obscuro de Thomas Hardy, além de obras de Dostoiévski e Victor Hugo.

O rapaz da biblioteca tinha uma perplexidade: o fato de que os livros de Hammett estavam ali na estante, e o autor estava preso na própria cadeia! Alguma coisa não batia. Era o escritor que não podia ser preso, ou o preso que não podia ser escritor? Hammett achava graça: “Já ouviu falar em André Gide? Ele disse que eu sou um escritor comparável a Balzac”.

Jorge Luís Borges trabalhou durante nove anos numa biblioteca municipal de Buenos Aires, um desses empregos públicos modestos e levemente humilhantes onde os escritores tantas vezes se refugiam. Procurava evitar a convivência muito estreita com os outros funcionários, cujas conversas só giravam em torno de “corridas de cavalos, partidas de futebol e estórias obscenas.” Diz ele que certa vez um colega, folheando uma enciclopédia, achou na seção de literatura o nome de um tal Jorge Luís Borges e chamou-lhe a atenção para a coincidência: “Olhe só!... Até a data de nascimento dele é igual à sua!”. Para o bibliotecário, uma coincidência naquele nível de detalhe era algo mais provável do que aquele sujeito tímido, meio apalermado, ser alguém importante.

O nome nas enciclopédias ou a obra nas estantes parecem não ter nada a ver com as pessoas a que pertencem. Não há muito em comum entre o best-seller adaptado em Hollywood e aquele homem magro, com dentadura postiça, de 57 anos, que passa os dias lendo e olhando os retratos da netinha. O nome na enciclopédia, é claro, não pode se referir àquele funcionário míope, distraído, que passa as intermináveis horas do expediente lendo a obra de Gibbon, de Faulkner, de Virginia Woolf. Existe uma lógica intuitiva nesse tipo de visão, no ato de distinguir entre o homem que escreveu os livros e o homem que está vivendo a vida. Mais do que se imagina, são dois homens diferentes. O homem que escreve é um acesso temporário de concentração, energia, lucidez, paciência e fúria que acomete aquele indivíduo manso. É o “daemon”, que o ser humano pode receber de vez em quando, mas não poderia hospedar 24 horas por dia, sob pena de arder de repente, consumir-se na fogueira da combustão espontânea.