segunda-feira, 20 de junho de 2016

4126) T. S. Eliot, a poesia e a música (20.6.2016)



A imprensa literária tem comentado uma edição recente, em dois volumes, da poesia completa de T. S. Eliot, fartamente comentada. Eliot, mesmo incluído entre os Modernos, representa pra mim um lado conservador da poesia do seu tempo, no que isto tem de elogioso. Temática à parte, filosofia pessoal à parte, erudição à parte, o poeta Eliot é um poeta de musicalidade à flor do verbo.

Não é a musicalidade relativamente fácil de Poe, a quem chamavam de “the jingle-jangle poet”, ou “o poeta do retintim”, segundo Jorge Luis Borges. A melodia dos versos de Poe se organiza em geral numa mandala, num bordado simétrico onde não falta um ponto sequer. Já a melodia de Eliot é variável, é uma melodia irmã-gêmea do verso livre. O verso não é “livre” no sentido de que é um verso onde vale tudo, um verso que faz o que lhe dá na telha. É um verso de metro variável, que é livre porque parece estar metrificando a si mesmo enquanto nasce. Propondo (e cumprindo) novas regras de ritmo em cada palavra que vai articulando.

Isto porque Eliot, apesar das variações naturais ao longo da vida longa de um poeta, parece ter tido sempre em mente alguns juízos que emitiu em 1942, numa conferência intitulada “The Music of Poetry”. Ele diz, entre outras coisas;


Existe uma lei da natureza mais poderosa do que qualquer uma dessas várias correntes poéticas, do que as influências do estrangeiro ou do nosso passado: a lei de que a poesia não deve se afastar muito da linguagem comum e cotidiana que nós usamos e ouvimos. Seja a poética acentual, seja silábica, rimada ou sem rimas, de forma-fixa ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com a linguagem sempre mutante da nossa fala comum.

Existe na melhor poesia dos séculos uma gravitação recorrente rumo à musicalidade da fala. Sempre haverá, é claro, o oposto disto, sempre haverá uma fascinação paralela pela poesia feita para os olhos: caligramas, concretismos, poema-processo. Nada disso, contudo, consegue invalidar (nem precisa) a poesia que pende para o lado auditivo, a percepção sensorial da melodia e do ritmo produzindo sentido através da fala poética.

Num artigo examinando esta compilação recente (feita por Christopher Ricks and Jim McCue, aqui: http://tinyurl.com/hgyawrs), Marjorie Perloff comenta alguns detalhes interessantes e obscuros sobre as grandes obras de Eliot. Ela cita um comentário do poeta sobre a origem do título de um dos seus poemas mais famosos, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”:

Estou convencido de que esse poema nunca teria a expressão “canção de amor” em seu título se não fosse pelo título de um poema de Kipling, “The Love Song of Har Dyal”, que se grudou teimosamente à minha memória.

A poesia de Eliot é muito diferente da de Kipling, a qual, neste sentido, era uma poesia quadradona, como a de Poe: formas fixas, rígidas, obedecidas fanaticamente até a derradeira rima e a derradeira sílaba. É uma poesia que tem muito de canção, porque Kipling não apenas metrifica perfeitamente, mas manipula os acentos internos de cada verso de maneira tão cadenciada que cada poema seu parece estar pedindo para receber uma melodia. Toda vez que leio os poemas de Kipling tenho vontade de pegar o violão.

Num texto antigo aqui neste blog, escrevi:

Diz-se que Rudyard Kipling costumava compor seus poemas de cabeça, enquanto cuidava do jardim. Ficava solfejando hinos protestantes, baixinho, mas as pessoas da família sabiam que ele estava de certa forma “botando letra” nesses hinos – estava compondo um poema valendo-se da estrutura mnemônica do hino. Fico pensando que curiosa tese de doutorado isto poderia render, se alguém de cultura inglesa-protestante se desse o trabalho de comparar os poemas do mestre aos hinos em voga durante o seu tempo de vida. Como dizia o poeta – ‘de la musique, avant toute chose!’
(http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/02/1635-com-musica-nos-ouvidos-862008.html)

“The Love Song of Har Dyal”, de Kipling, na voz de uma mulher que espera o retorno do guerreiro que ama, é uma canção de amor mesmo, um lamento em nome de uma personagem, como as canções de amor dos personagens das peças de Brecht. É um gênero milenar, que toma a forma da cultura que deve conter dentro de si.

The Love Song of Har Dyal 

 

Alone upon the housetops to the North
I turn and watch the lightning in the sky—
The glamour of thy footsteps in the North.
Come back to me,
Beloved, or I die. 
Below my feet the still bazar is laid—
Far, far below the weary camels lie—
The camels and the captives of thy raid.
Come back to me,
Beloved, or I die! 
My father’s wife is old and harsh with years
And drudge of all my father’s house am I—
My bread is sorrow and my drink is tears.
Come back to me,
Beloved, or I die!

Já “Prufrock”, a canção de Eliot, embora tenha o amor como um horizonte inatingível, é tudo menos uma canção de amor. Prufrock é um personagem travado, reprimido, patético.  Até o nome sensaborão de J. Alfred Prufrock nos lembra o nome do anódino e vitorioso J. Pinto Fernandes usado por Carlos Drummond em “Quadrilha” (“Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha nada a ver com a história”). Talvez seja até uma alusão indireta por parte de Drummond, já que o poema de Eliot, de 1915, possivelmente lhe era familiar.

A canção de amor de Kipling é tradicional e formulaica: forma fixa, rima regular (ABAB), estribilho. Pede para ser cantada com uma melodia também quadrada (no bom sentido). Já a canção de amor de Eliot tem rimas entrelaçadas, cadências variáveis, um desenho rítmico imprevisível em que nenhuma regularidade nos autoriza a prever de que tamanho será a próxima linha, mas quando surge ela prolonga harmoniosamente o desenho principal.

No ensaio que citei, Eliot afirmava: “Nenhum verso é livre para um homem que pretende fazer direito o seu serviço. (...) Uma grande quantidade de má prosa já foi escrita sob o nome de verso livre.”  Esse reconhecimento da necessidade rítmica do verso livre é um traço de união entre a obra dele e a de Manuel Bandeira, seu contemporâneo. O Itinerário de Pasárgada (1957) pode ser lido lado a lado com o ensaio de Eliot, na mesma defesa do verso livre como uma região de equilíbrio entre as formas fixas da tradição, a espontaneidade e vigor da fala, e as lições da música.

Alguém pode achar que essa discussão sobre verso livre é uma discussão de cem anos atrás, mas a verdade é que gerações sucessivas de novos poetas tendem a pensar que verso livre é verso banda-voou, é verso qualquer-nota, e que basta estar dizendo algo importante ou original. Cada um escreve com o que tem, mas que isto não nos impeça de ver a forma superior quando ela aparece.

Comentando os simbolistas franceses (com os quais se identificava mais do que com a poesia inglesa), Eliot dizia: “O prazer que se extrai da irregularidade desses versos se deve à sombra ou à sugestão da existência, por baixo dele, do verso de métrica regular.” E ironizava certa produção poética de D. H. Lawrence dizendo que seus versos livres “pareciam mais anotações feitas aos poemas do que poemas propriamente ditos.”

Ezra Pound, o homem que copidescou “The Waste Land”, dizia que a grande poesia era composta de três elementos: idéia, imagem e música. (Na terminologia dele, Logopéia, Fanopéia e Melopéia.) Eu diria que na poesia de hoje, vista em plano geral, do alto da montanha, é a música o que mais falta. E é mais uma vez o autor de “Prufrock”, em seu ensaio de 1942, quem afirma:

Um poeta pode sair ganhando muito do estudo da música; quando conhecimento técnico da forma musical será desejável eu não sei, porque eu próprio não tenho tal conhecimento. Mas acredito que as propriedades em que a música toca de perto o poeta são o senso do ritmo e o senso de estrutura. (...)  Um poema, ou um trecho de poema, pode tender a se realizar primeiramente como um ritmo peculiar antes mesmo de encontrar sua expressão em palavras, e esse ritmo pode fazer nascer a idéia e a imagem.