sexta-feira, 20 de março de 2015

3767) "Feitiço do Tempo" (21.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso de hoje.) Comentarei aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

Hoje será exibido Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”) de Harold Ramis (1993). A premissa fantástica (há uma só) do filme é que o personagem de Bill Murray fica preso num único dia, o Dia da Marmota (“groundhog”), quando nos EUA se costuma deduzir a duração do inverno em função do comportamento de uma marmota em sua toca. Murray é Phil, um repórter de TV meio cafajeste que vai cobrir essa data folclórica numa cidadezinha, acompanhado da produtora Rita (Andie MacDowell) e sua equipe. Phil quer comer Rita, e ela não o suporta. Uma nevasca os deixa presos na cidade, sem poder sair. E quando Phil acorda no hotel, na manhã seguinte, descobre que o Dia da Marmota está se repetindo, tintim por tintim: mesmos diálogos, mesmos gestos, mesmos pequenos acidentes.

O choque inicial o desorienta, mas quando dorme de novo tudo se repete.  Phil leva algum tempo para perceber que está preso num “loop” temporal, como um disco enganchado. A premissa do roteiro de Danny Rubin não é explicada, mas, como fica clara desde logo, o espectador se concentra em ver de que maneira Phil irá reagir diante das dezenas de pequenos episódios daquele dia eternamente reprisado, que aos poucos ele começa a saber de cor.


Groundhog Day se baseia numa única premissa fantástica para desenvolver complexos padrões de repetições e variantes; uma técnica de seriados como Twilight Zone e outros. O filme tem um elenco simpático e uma narrativa bem editada (quanto mais o espectador vai se familiarizando com os fatos mais rápida ela se torna). Talvez sua virtude principal seja algo que filmes fantásticos deste tipo nem sempre fazem: ele examina todas (em termos, claro) as consequências possíveis da premissa principal, todas as possibilidades do que poderia acontecer a um personagem numa situação como aquela. Como acontece com tantos bons romances de ficção científica, os roteiristas (Ramis e Rubin) se divertem em imaginar e em sugerir ao espectador uma infinita ramificação de vidas possíveis para aquele personagem, naquele mundo em que ele é o único que já sabe o que vai acontecer mas está mais prisioneiro do que todos os outros.




3766) Coco cheio de sangue (20.3.2015)



Uma história irreal com uma base realista parece ser uma espécie de “default” do fantástico contemporâneo, de Julio Cortázar a Stephen King, e de Italo Calvino a Ray Bradbury. O chamado realismo mágico latino-americano tinha essa base realista muito forte. O problema é que para os leitores norte-americanos ou europeus a própria base realista soava exótica, era surreal, era surpreendente – o que dava ao gênero uma aura difusa e onipresente de fantasia. Mas não era essa a intenção de autores como Garcia Márquez ou Juan Rulfo, para quem era tão importante mostrar a panela de sopa fumegando no fogão quanto o fantasma do antigo dono da casa.

Inventar avalistas para autenticar a procedência de fatos fantásticos é uma tática antiga.  É como se dá com as lendas urbanas.  Ninguém diz: “Um papa-figo está sendo visto na cidade”. Diz: “Uma amiga de minha irmã viu um papa-figo na rua dela”. É preciso, num esforço de verossimilhança, atribuir a visão do fato fantástico a uma pessoa real, de existência inquestionável.

Mia Couto começa seu conto “Pranto de coqueiro” (1994) assim: “Foi evento que saiu no jornal da Nação, oficial e autenticado. O alvoroço dos coqueirais de Inhambane mereceu título e honrosas colunas. Tudo começou quando, sentado na marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibraímo partiu a casca de um coco. Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo: sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos.”

Logo nas primeiras linhas nos deparamos com um fato fantástico (o coco cheio de sangue, e de vozes), mas para preparar essa intromissão do fantástico temos uma narração informativa, citando pessoas e lugares, além de referências insistentes à imprensa, ao fato de que tudo aquilo é “oficial e autenticado”, de que o fato é “certificado e indiscutível”.  Mesmo exibindo as costumeiras invenções verbais de Mia Couto (“exatamesmo”), é um texto propositalmente convencional, que narra a ação por via indireta.

Esta é uma pequena variante de um dos artifícios mais antigos do gênero, a “história contada”, tão querida dos narradores de Henry James, Machado, Conan Doyle. Na história-moldura, um grupo de homens está reunido e um deles conta uma história inacreditável. O narrador da história-moldura, dentro da qual a história inverossímil é contada, se exime de qualquer responsabilidade, pois está apenas reproduzindo o que ouviu. Hoje, usa-se citar jornais, TV, websaites, tudo o que, sob a aparência de confiabilidade, pode servir de aval a qualquer história impossível.