sexta-feira, 18 de março de 2022

4804) Minhas canções: "A Viagem Maravilhosa" (18.3.2022)




Canções que misturam música e teatro têm que ser, por um lado, canções independentes, autônomas. E, por outro lado, precisam ser fragmentos de uma obra maior.
 
Quem conhece bem o musical clássico, os grandes musicais do teatro e do cinema, escritos por gente como Cole Porter, Irving Berlin, George & Ira Gershwin, Richard Rodgers e Oscar Hammerstein – e tantos outros, sabe que essa forma é uma espécie de popularização do formato da ópera. E que as canções nunca são desvinculadas da história que se conta.
 
O trabalho de Antonio Nóbrega, meu parceiro há tantos anos, vem de uma tradição diferente, a tradição ibérica que no Brasil se popularizou através de espetáculos de rua como o teatro de mamulengos, os entremezes cômicos, etc. E o trabalho artístico de Nóbrega, que até certa altura era uma espécie de “teatro com música” (peças teatrais contendo canções, como as nossas Brincante e Segundas Estórias) acabou evoluindo para uma “música com teatro”, shows basicamente de canções, entremeadas por pequenos esquetes.
 
No ano de 2000, Nóbrega montou o espetáculo O Marco do Meio-Dia, e uma de suas idéias era fazer a certa altura o personagem Tonheta viajar pelo Brasil, mostrando diferentes paisagens e vivendo diferentes aventuras. Tudo muito resumido e compactado, é claro, para caber no espaço de uma canção.
 
E ao mesmo tempo não podia ser apenas um roteiro turístico mostrando uns lugares bonitos que todo mundo já sabe quais são. Seria uma viagem geográfica, mas mais do que isso seria uma viagem pela História do Brasil. Com brincadeiras, com poesia, com dança, com cavalo marinho... E (sugeriu Nóbrega) o nosso costumeiro interlúdio rabelaisiano, em que o insaciável Tonheta se dedica a devorar banquetes pantagruélicos e ceias gargantuescas.
 
Foi mais uma parceria a três, porque Wilson Freire (nosso habitual comparsa) mandava versos do Recife, eu mandava versos daqui do Rio, e por fim Nóbrega arrematava tudo lá em São Paulo, enquanto preparava o arranjo junto com a banda.
 
A Viagem Maravilhosa é um dos números mais divertidos daquele espetáculo, e é a nossa viagem sentimental por um Brasil cada vez mais distante e cada vez maior.
 
 
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YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=jKcNp5n8sbk
 
 
A VIAGEM MARAVILHOSA
(Wilson Freire / Antonio Nóbrega / BT)
 
I
Nosso Brasil
(acompanhe a minha idéia)
foi Atlântida e Pangéia
um Sertão que já foi mar.
Já foi Rodínia
foi Panótia e Gonduana, 
era belo e bacana
antes de Cabral chegar.
 
Também foi ilha
do Brasil, de São Brandão,
Vera Cruz, nome cristão
trazido de além-mar.
Foi Pindorama
foi Terra de Santa Cruz
Papagális, meu Jesus,
depois de Cabral chegar.
 
Nosso país
tem tesouros, tem arcanos,
tem mais de 30 mil anos    
de histórias pra contar...
São trinta mil
em que o índio teve vez,
500 que o português
e o negro chegaram cá...  
 
Aí um dia,
eu sentado na cadeira
um estalo-de-Vieira
clareou a minha mente!
Eu percebi
que tinha de procurar,
descobrir e encarar
minha terra a minha gente.
 
E sem demora
minha burra eu selei
pus um cabresto e montei
pus espelho e um radar.
Pus uma bússola
astrolábio e luneta
diário, mapa e caneta
e falei: "Vou viajar!"
 
E mesmo antes
do sol, do cantar do galo
do sino bater badalo
eu saí pelo caminho...
Os cascos dela
velozes matraqueavam,
pareciam que estavam
tocando "Brasileirinho".  
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
II
No meu galope
mais veloz que um corisco 
eu cruzei o São Francisco
mergulhei no Iguaçu.
Fui despertar
no sol da Zona da Mata  
vestido de ouro e prata
sambando maracatu.
 
Passei por todas
as ladeiras de Olinda,
e muita morena linda
inda se lembra de mim...
Cantei seresta,
tirei verso na ciranda,
toquei tuba numa banda,
na outra toquei flautim.
 
No meu caminho
enchi o Brasil de pernas
até chegar nas cavernas
da Gruta de Maquiné.
Voltei de lá
com um papiro na mão
trazendo a decifração
dos segredos de Sumé.
 
Eu vi xamãs
dominando tempestades,
cavando Sete Cidades,
separando Marajó...
Vi o profeta
puxando com sua cruz
cada órfão de Jesus
que cruzou Cocorobó...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
 
III
Fiz um almoço
lá no "Buraco da Jia"
começou ao meio-dia
terminou pela manhã;
cuscus com fava,
bode assado, dobradinha,
macaxeira com farinha,
codorniz e ribaçã.
 
Bolo de milho
marisco no vinagrete
feijoada com croquete
kitut e baião-de-dois...
Comi de tudo
sem pressa, sem me cansar,
só para me preparar
para o que vinha depois...
 
Arroz de polvo
risoto de camarão
maionese e macarrão
salpicão, frutos-do-mar.
Feijão macaça
galinha de cabidela
e um bife de panela
bem leve, pra descansar...
 
Um ensopado
de carne com batatinha,
feijão verde e farofinha,
sanduíche de peru.
Pra terminar
um conhaque, um cafezinho,
mais um cálice de vinho
e três doses de Pitu...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
 
IV
Porém um dia
eu cruzei em meu caminho
com um cavalo-marinho
que era gêmeo com o meu!
Puxei a rédea
fiquei olhando pra ele:
ele achou que eu era ele,
eu achei que ele era eu!
 
Nesse momento
mais um galope se ouviu
outro cavalo surgiu
passando perto da gente.  
Uma figura
semelhante e parecida
mas como tudo na vida
tinha algo diferente.
 
E mais dois outros
chegaram no mesmo instante
mas logo mais adiante
outro ainda apareceu!   
Eu que pensava
que era único no mundo
encontrei num só segundo
muitos outros como eu!
 
Saí puxando
a Cavalhada Marinha:
parecia idéia minha
parecia carnaval...
Fomos dançando
na ponte do arco-íris
e quando eu rodei o pires
apurei quase um real...
 
Eu virei noite
galopando esse país
de metrópoles febris
e esquecida imensidão.
Vi a coragem
de quem enfrentou a morte,
vi um vento lá do Norte,
vi a vela em minha mão...
 
Vi uma luz
branca, azul, aparecida
e uma mulher parecida
com aquela lá do céu...
Vi tantas luzes
que lembrá-las é revê-las,
tantas luas e estrelas
entre as rendas do seu véu...
 
E da mão dela
uma luz se projetava
e essa luz me apontava
uma Tróia no sertão...
Uma muralha,
dentro dela uma cidade
fora dela a crueldade,
a morte, a escravidão.
 
Era o Quilombo
lá na Serra dos Palmares
erguendo alto nos ares
a bandeira de Zumbi...
Saltei da burra
devagar fui caminhando
me cheguei, fui escutando
o que acontecia ali...
 
Refrão (2x):
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.