segunda-feira, 20 de maio de 2019

4468) "Juntos e Shallow Now" (20.5.2019)



Tem sido muito comentada uma canção recente, regravada no Brasil por Paula Fernandes e Luan Santana: “Juntos e Shallow Now”. A canção original, que concorreu ao Oscar deste ano, é “Shallow”, gravada por Lady Gaga e Bradley Cooper para o filme Nasce Uma Estrela.

A versão brasileira foi ridicularizada nas redes sociais. Mostra um lado arriscado e difícil da arte de fazer a versão para uma canção em outra língua. 

Vivo dizendo aqui neste blog que fazer letra de música é mil vezes mais difícil do que fazer um poema. Me parece óbvio. No poema, o poeta determina as regras, e tem 100% de controle sobre o produto final. Quem não gostaria de trabalhar num regime tão livre? Eu pelo menos gosto, e muito.

O poeta é o dono do poema. Se ele quiser usar métrica usa, se não, não. Se quiser fazer versos rimados ou brancos, ele é quem decide. Pode empilhar palavras, pode escrever tudo em caixa alta ou tudo em caixa-baixa, pode citar trechos em latim ou grego, pode usar gíria, pode escrever as palavras de cabeça para baixo (Carlos Drummond já o fez).

Já o letrista trabalha sabendo que seu texto não é o produto final: é um elemento a mais que precisa se encaixar num processo mais longo, onde surgirá uma melodia, um conjunto de progressões harmônicas, um ritmo, a voz do(a)(s) cantore(a)(s), o timbre dos instrumentos...

Um poema é 100% de si mesmo. Uma letra de música é uma fatia bem menor da obra de arte (ou de entretenimento) que ajuda a construir.

O que dizer, então, de uma versão? Muito mais difícil. É preciso dizer em português o que foi dito (no caso) em inglês, com palavras de extensão e de sonoridade totalmente distinta, com vogais e consoantes diferentes.

E repito aqui o que repito sempre: na poesia, e mais do que na poesia, na letra de música, a sonoridade é crucial. O sentido, o significado das palavras, corre em paralelo – e digo isto com plena consciência de que a maior parte da humanidade só enxerga nas palavras o significado, e não presta atenção na sonoridade delas.

As pessoas podem até ter ouvido musical quando ouvem um instrumento tocando, mas perdem esse talento quando escutam palavras. Ficam musicalmente daltônicas. Por que? Porque ninguém lhes disse que as palavras que ouvimos são feitas primeiro de som, e só depois de sentido.


O filme Nasce Uma Estrela é, se não me engano, a terceira ou quarta refilmagem da mesma história: já assisti duas delas, uma com James Mason e Judy Garland, e outra com Kris Kristofferson e Barbra Streisand.

É aquela história (que já foi muitas vezes à lavanderia, mas ainda tem muitas refilmagens pela frente) do cantor famoso, encanecido e problemático que se apaixona por uma cantora jovem, anônima, brilhante e cheia de amor pra dar. Ajuda-a a fazer sucesso, e depois se desestrutura quando se vê eclipsado por ela.

A canção (pelo que se diz – não vi o filme) surge no momento em que os dois decolam na relação, tanto amorosa quanto profissional. É aquela canção que faz avançar a narrativa, algo que os norte-americanos sabem fazer tão bem (quando querem).

Aquele momento da relação em que duas pessoas se olham pra valer e perguntam: Tá a fim mesmo? Quer ir até onde der? Tá sabendo o que vem pela frente? Tá disposta a encarar a responsabilidade? Então bora.

A parte mais interessante de toda a letra é justamente a teia de significados que eu, pelo menos, enxergo em torno da palavra-título, “shallow”, que significa basicamente “raso; a parte rasa de alguma coisa” (água, por exemplo).

A letra diz:

I'm off the deep end, watch as I dive in 
I'll never meet the ground. 
Crash through the surface, where they can't hurt us 
We're far from the shallow now.


O que ao pé da letra daria, mais ou menos:

Já passei dos limites, veja como eu mergulho
nunca vou tocar o chão.
Rompendo a superfície, onde eles não podem nos machucar,
estamos longe do raso agora.

Posso estar me confundindo, mas vejo uma série de ambiguidades interessantes nesse trecho (o resto da letra é banal). Estar “off the deep end” significa algo como chutar o pau da barraca, mas o uso da expressão “deep end” (literalmente, “a parte mais funda”) faz a letra derivar para metáforas de água, mergulho, etc.

Dizem que numa versão anterior do roteiro o personagem de Bradley Cooper morria afogado, e talvez a lembrança desse detalhe, mesmo descartado depois, tenha arrastado a letra para essa área semântica.

A autora (imagino que seja Lady Gaga a principal autora da letra) fala em mergulhar sem tocar o chão (ou seja, um mergulho na parte funda, na parte segura), mas ao mesmo tempo lembra que agora eles (os amantes) estão longe do raso. Nadar no fundo é tão perigoso quanto mergulhar no raso e bater com a cabeça no chão.

Ainda na mesma área semântica é bom lembrar uma expressão muito usada no inglês quando a pessoa quer dizer que está numa situação desconfortável, insegura, perigosa: “I am out of my depth”. Estou fora da minha profundidade (adequada). Estou num lugar fundo demais, num lugar onde não dá pé. Corro o risco de me afogar.

Pra mim, essas linhas são a parte mais interessante da letra original. E é justamente para essa parte que a versão (que imagino ter sido feita por Paula Fernandes) não conseguiu achar um equivalente satisfatório.



Deveria ter sido este o primeiro desafio. Se me pedissem uma versão, seria essa palavra, “shallow”, que eu tentaria transpor, porque sem ela, não existe letra. Mas a sonoridade de “shallow” é meio rara em português. “Achá-lo”? Não. “Falo, calo?” Acho que não. E principalmente com esse “now” logo em seguida. Onde achar alguma coisa que cubra esse “xalonáu”, e que abra as mesmas possibilidades de múltiplo sentido?

Como é difícil, a versão em português decidiu deixar como estava, mesmo ao preço de, na balança entre o som e o sentido, dar 100% ao primeiro e zero para o segundo. Uma solução pouco adequada.

Aconteceu com o(a) autor(a) dessa versão aquela situação para a qual o inglês também tem uma expressão muito saborosa, quando diz: “He painted himself into a corner”. Ou seja: “Ele pintou o piso e se encurralou num recanto”. É quando a pessoa entra numa situação sem saber como vai sair, ou começa a resolver um problema e deixa a parte mais difícil para encarar no fim (e não consegue).

Tem mais uma coisa – e aí voltamos àquele papo de que na música popular o Som é tão importante quanto o Sentido.

A palavra escolhida na letra original, “shallow”, acaba induzindo o compositor (pelo que li, a música foi feita por Lady Gaga ao piano e três parceiros ao violão, todos dando idéias ao mesmo tempo) àquele efeito vocal que todo mundo conhece, o famigerado “sha-la-la-la-la”.

O “sha-la-la-la-la” está para a música pop dos EUA assim como o “olelê, olalá” está para a música popular brasileira.

É uma figura-de-linguagem musical, e a canção acaba inevitavelmente derivando rumo a ela, atraída pela força gravitacional de um refrão que todo mundo conhece desde a infância e que convida a cantar junto.

De cara eu me lembrei de “Baby, it’s you”, um sucesso de 1961 de The Shirelles, que os Beatles regravaram logo depois:

Na década de 1970 houve o enorme sucesso de B. J. Thomas com “Rock and Roll Lullaby” (1972):

Pra mim a utilização mais comovente é a de Tom Waits no clássico “Jersey Girl”, de 1980:

Ora, se eu, que sou eu, lembrei logo de três exemplos, imagine Lady Gaga. “Shallow” conduz inevitavelmente ao “sha-la-la-la-la” tão norte-americano quando a torta de maçã. E foi esse x-do-problema linguístico que a versão brasileira não conseguiu reproduzir. Recortou e colou o original: “juntos e shallow now”.

Isso é um crime, um escândalo, uma coisa condenável? De jeito nenhum. É um problema de ordem estética que o autor não resolveu satisfatoriamente. A prova de que a “solução” encontrada não é satisfatória foi a grita imediata de inúmeras pessoas que não fazem a menor idéia dos problemas envolvidos numa tradução, mas são capazes de reconhecer um remendo mal feito quando se deparam com um.

Devemos por isso apedrejar o(a) versionista? De jeito nenhum. Eu boto essas coisas na mesma caderneta dos pênaltis perdidos e dos cacófatos involuntários. E a verdade é que a gente aprende tanto com os erros quanto com os acertos. Principalmente quando são os outros que erram.