quarta-feira, 21 de setembro de 2022

4865) Jean-Luc Godard, o incompreendido (21.9.2022)



Parece que coube a Cacá Diegues esta frase emblemáticas e definitiva: “Para nós, a palavra Cinema é abreviatura de Cinema Americano”. E não lembro agora quem afirmou (com igual precisão) que “os americanos descobriram o segredo do ritmo cinematográfico”.
 
Eu corrigiria apenas observando que eles não “descobriram o”, mas “inventaram um”. E as forças conjugadas do dólar, da política, do comércio e (não convém desprezar) do poder simbólico das mitologias norte-americanas impuseram esse ritmo como sendo o que todo brasileiro espera quando compra seu ingresso na bilheteria. Cinema virou sinônimo daquele cinema.
 
Jean-Luc Godard e outros diretores da nouvelle vague eram igualmente fascinados pelo cinema norte-americano. Só que a França, comparada ao Brasil, é outro patamar. Eles podem encarar os gringos de frente, no mesmo nível, olho no olho. Ou pensam que podem, o que em termos de Arte vem a dar na mesma coisa. Os nouvellevaguistas eram antropofágicos, ao seu modo. Digeriram da cultura dos EUA um monte de coisas que os próprios norte-americanos já tinham esquecido ou que menosprezavam: Samuel Fuller, Jerry Lewis, David Goodis, Nicholas Ray, Buster Keaton, o filme “noir”, a pulp fiction.


(Made in USA, 1966)

 
Dessa turma francesa, Godard era talvez o menos preocupado em “fazer sucesso”. Seu cinema é, na maior parte do tempo, um anti-cinema, no sentido de que é um anti-cinema-americano, não porque ele deteste o cinema dos EUA, mas porque quer espicaçá-lo, provocá-lo, canibalizá-lo, desconstruí-lo. No que faz muito bem.
 
A tríade em que repousa o cinema convencional é: Identificação, Empatia e Catarse. O público se identifica com alguns aspectos dos personagens – que tanto podem ser Carlitos quanto Hannibal Lecter – e se transporta mentalmente para a tela. Cria uma empatia e se projeta em seus dramas, suas ações, seus perigos, seus afetos. E através disso obtém a catarse, vivendo vicariamente (indiretamente, parasitariamente) o que o personagem vive: experimenta o amor, o ódio, o perigo, a excitação, a brutalidade, o riso.
 
Godard não quer nada disso, ele quer o distanciamento crítico, e neste aspecto é o mais brechtiano dos diretores do cinema. Godard parece dizer o tempo todo: “Pára, é um filme, não está acontecendo, é só uma encenação para que você se pergunte: Quem? O quê? Por quê?”.
 
Em La Chinoise, há uma cena (00:47:31) em que o personagem mostra um quadro negro cheio de nomes escritos, sob o letreiro “A História da Arte nos Últimos 100 Anos”. Ele vai eliminando de um em um. No final, “Brecht” é o único que sobra.



 
O filme convencional é um discurso de mão única (da tela para a sala) que visa emocionar o público. O filme de Godard é uma triangulação entre a tela, a sala, e uma presença invisível (o Diretor) que se interpõe o tempo inteiro entre as duas, interrompendo a catarse. Por isso Godard é tão odiado. Interromper a catarse de um espectador de cinema é ainda mais grave do que interromper um espirro ou um orgasmo.
 
Veja-se o caso de Bande à Part, um filme despretensioso e simpático, o único de Godard incluído na lista dos “100 Melhores Filmes” da revista Time. Acompanhamos dois rapazes e uma moça que planejam um assalto (“planejam” é exagero: eles ficam com vontade de fazer um assalto e acabam fazendo mesmo) e o tempo inteiro uma voz vem por trás da câmera, por trás do nosso ombro, segredando alguma coisa ao nosso ouvido. É o diabo do diretor.

Por volta dos 8 minutos de filme, essa voz anuncia, baixinho: “Para o espectador que chegou atrasado, vamos fornecer umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: Três semanas antes. Um monte de dinheiro. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica.”
 
Como a história é simples e os personagens têm um certo carisma (carisma e catarse têm o mesmo DNA), a gente aceita. E por que não? Um dos rapazes escreve mais adiante, num quadro negro: “Eliot: Tudo que é novo é automaticamente tradicional”.


Bande à Part é o filme com a famosa cena da “dancinha”, multiplicada em memes e em citações pelo mundo afora. Os dois rapazes e a moça (com chapéu de homem) dançam uma coreografiazinha meio ensaiada, meio lembrada na hora.
 
É uma cena hipnótica. O leve desencontro nos movimentos deles exige de nós uma atenção quase inconsciente, mas constante. Nosso cérebro fica “corrigindo” mentalmente a coreografia, e assim não mergulha no piloto-automático do mero deleite, do mero consumo. Uma dança com excesso de perfeição (os filmes de Busby Berkeley, os dançarinos de Bali) elimina esses solavancos – e produz um adormecimento, uma atenção apenas passiva.
 
E como se não bastasse, o diabo do diretor volta a cochichar. Ele interrompe três vezes o áudio (os jovens continuam dançando, sem som) para dizer que este é o momento de uma digressão sobre os sentimentos dos personagens. A música está tocando e de repente um corte do áudio. Voz: “Arthur segue olhando os pés; mas sua mente está na boca de Odile e seus beijos românticos.”  Volta música. Corte de novo. Voz: “Odile se pergunta se os garotos percebem seus seios movendo-se por baixo do suéter.”  Volta a música, terceiro corte, voz: “Franz pensa em tudo e em nada. Ele se pergunta se o mundo está virando um sonho ou se o sonho está virando o mundo.”
 
Passa? Parece que passa, porque o corte não é tão intruso assim, e de certa forma contribui para a nossa identificação e a empatia. Depois, Godard usaria o mesmo artifício para fazer comentários marxistas-leninistas.
 
De certo modo essa cena equivale às entrevistas que ele faz com os atores de A Chinesa (1967), jovens maoístas trancados no enorme umbigo do apartamento dos pais de um deles (uma situação retomada anos depois, em outros termos, pelo filme Os Sonhadores, 2003, de Bernardo Bertolucci). A câmera enquadra em close o ator-personagem, que responde perguntas vindas lá de trás, quase inaudíveis (o que me lembrou o saudoso programa musical Ensaio, de Fernando Faro na TV-Cultura, um programa godardiano em mais de um aspecto).



Essas cenas reproduzem de certa forma as entrevistas de um diretor que escolhe atores. Godard está, por cima de nosso ombro, “entrevistando os personagens”, para checar se o ator/atriz já o incorporou devidamente. (Ele chega a mostrar Raoul Coutard e sua câmera.) Mas eu já vi diretor de teatro fazer isso e, diabolicamente, misturar perguntas pessoais, especificamente dirigidas ao ator/atriz. Como interrogatório de espião nas mãos da CIA, do Mossad, da KGB. Quem é você? Gosta do quê? Vive como? Veio de onde? O que anda fazendo?
 
E nessa triangulação (tela/sala/diretor) o filme, que teoricamente é de ficção, ganha uma leveza e uma soltura de documentário, de coisa não decorada, não encenada, de coisa espontânea, ou ficticiamente espontânea. E mesmo quando o texto da resposta é do personagem, sentimos por baixo dele uma dosezinha da atriz; e vice-versa.
 
Falo aqui de vez em quando que a música no cinema e na TV é um “indutor emocional”, um efeito subliminar nos explicando (e nos impondo) o que devemos sentir. São os violinos açucarados que mesmo um cara talentoso como Steven Spielberg empurra em toda cena de amor. São os rumores tectônicos, ultra-graves, que mexem com nossos intestinos nos filmes de horror em cinema com som Dolby. São as novelas da Globo, onde nas cenas cômicas é preciso botar no áudio um cavaquinho moleque, como quem diz: “Riam! Essa cena foi engraçada!”.



(Made in Usa, 1966)

Godard é um subversivo do som, mais do que da política. Ruídos súbitos explodem, estridentes, sem propósito, a qualquer instante, fazendo a gente pôr as mãos nos ouvidos. Música dissonante, trechos de peças de vanguarda concretista, falas em desacordo com os movimentos labiais do elenco, barulhos irritantes e contínuos, silêncios inexplicáveis...
 
Godard sabe que o som é mais visceral e mais animal do que a imagem, e assalta o tempo inteiro esse flanco desprotegido.
 
E quando precisa, ele sabe usar o som de outra forma. Em A Chinesa¸ Jean-Pierre Léaud e Anne Wiazemsky discutem a relação quanto estudam sentados à mesa, com uma vitrola ao lado. O rapaz se queixa de que na luta revolucionária é impossível batalhar em duas frentes. Ela põe um disco, e faz uma pseudo-confissão de que não o ama mais, para mostrar-lhe que ele é capaz, sim, de assimilar música e linguagem simultaneamente.
 
O que ouvimos comenta o que vemos. Em Bande à Part, Anna Karina e Claude Brasseur viajam de metrô e comentam ficticiamente os sentimentos das pessoas que veem: “Olha para aquele... por que aquela expressão? É qualquer coisa que imagines. Sua aparência mudará dependendo da sua estória. Digamos que ele está levando um ursinho de pelúcia para sua filha doente.  E ele parecerá bem. Mas ele parecerá cruel se você imaginar que ele está levando dinamite para explodir o país.”
 
Godard ganhou muitas antipatias por fazer um cinema destinado à inteligência, e não à emoção. É uma forma de fazer cinema – entre muitas. Eu não quereria viver num mundo onde todo mundo filmasse igual a Godard. Ou a Buñuel. Ou a Walt Disney. E quando quero me emocionar, vou assistir Truffaut ou Fellini ou Billy Wilder, que me emocionam sempre.


 
Vistos em retrospecto, já devidamente domesticados, alguns filmes seus me emocionam hoje, principalmente os seus retratos da mulher dos anos 1960 na França: os casamentos complicados (Uma Mulher Casada), a ilusão pop (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Masculino Feminino), a prostituição (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Viver a Vida), a violência doméstica e social (Week End)... Os anos 1960 não foram nenhum paraíso.
 
Entre 1959 e 1967, Godard dirigiu quinze longas-metragens, todos eles muito bons, pelo meu gosto. Filmes em geral feitos com pouco dinheiro, feitos meio às pressas, misturando roteiro e improvisação, captando fatos do momento (os inevitáveis rádios ligados, TVs ligadas, jornais lidos em voz alta), captando o espírito do tempo – e pulando nos anos seguintes para um tipo de cinema completamente diferente.
 
Por trás dos óculos-escuros indevassáveis e do cigarro desdenhoso, era um rapaz pilhado, insone, desgastado por pensar o tempo inteiro, capaz de transformar uma atriz em musa de uma geração, casar com ela e tratá-la como se fosse uma criada. Tinha as qualidades e os defeitos dos intelectuais do seu tempo. Ele e sua obra são uma Pedra de Roseta para entender o mundo em que ele viveu (em que eu vivi), um mundo incompreensível para os olhos de hoje.