sexta-feira, 9 de setembro de 2022

4861) Baladas, terror e fantasia (9.9.2022)




No dia 4 de setembro passado foram entregues os Prêmios Hugo de Ficção Científica e Fantasia, numa cerimônia-e-festa realizada em Chicago.
 
Aqui, um link a respeito:
https://locusmag.com/2022/09/2022-hugo-astounding-and-lodestar-awards-winners/
 
De vez em quando, após uma premiação desse tipo, eu vasculho a web em busca de algum dos textos premiados, principalmente as noveletas e os contos curtos. Conto premiado é conto que já foi publicado, já rendeu uma graninha. Após uma premiação assim, muitos autores liberam a versão online do texto, para aumentar sua popularidade. Isso aumenta também a possibilidade de que ele seja incluído em alguma antologia (ou revista em outro país), trazendo mais alguns caraminguás para a conta do autor ou da autora.
 
Fui conferir o prêmio de “Best Short Story”, concedido ao conto “Where Oaken Hearts Do Gather” (Uncanny Magazine, online, #39), de uma autora que eu desconhecia, Sarah Pinsker.
 
Aqui o texto completo (em inglês):
https://www.uncannymagazine.com/article/where-oaken-hearts-do-gather/
 
O conto é excelente, por várias razões. Duas são principais. Primeiro: trata-se do exame minucioso e interpretativo de uma antiga balada inglesa. Segundo: isto acontece numa espécie de forum online, onde diferentes pessoas dão suas opiniões e aos poucos vão sugerindo e revelando um mistério meio tenebroso por trás daquilo tudo.
 
Os participantes do forum se identificam, claro, por “nicks” como Dynamum, BonnieLass67, BarrowBoy, HolyGreil, etc. Ou seja – não sabemos o gênero, a idade ou a origem social de nenhum deles. Parte da habilidade da autora está em fazer surgir a personalidade de cada um através de suas intervenções, questionamentos, críticas. E das ocasionais provocações mútuas entre um e outro.
 
Há um diálogo real nesses comentários que se sucedem, se superpõem. Isto tem sido um lado muito explorado na literatura atual: reproduzir na página impressa a dinâmica visual e temporal da página eletrônica.
 
Dois contos desse tipo de que gostei especialmente, nos últimos tempos, foram o conto de Jennifer Egan "Great Rock and Roll Pauses by Alison Blake" (no livro A Visit From The Goon Squad, 2010), em forma de apresentação de PowerPoint, e o de A. M. Homes “The National Cage Bird Show” (no livro Days of Awe, 2018), um forum de pessoas bem diferentes entre si que começam a trocar confidências.
 
Ou seja – se eu já vi esses todos, já deve haver milhares circulando por aí.
 
No conto de Sarah Pinsker, essa “balada inglesa tradicional” é estudada num forum  onde algumas pessoas, ao longo de meses, vão postando suas perguntas e respostas, comparando diferentes versões da letra, etc. 


A letra conta a história de um casal de jovens, Ellen e William. Eles marcam um encontro à noite, embaixo da ponte, no meio do bosque. E ali – a linguagem dessas baladas é meio elíptica, cheia de lacunas e de subentendidos – ela arranca o coração de William, oculta-o no oco de um carvalho, e põe dentro do peito dele uma “bolota” (semente) de carvalho. Depois, William se ergue e volta para o povoado, aparentemente semi-vivo. E ali as pessoas do vilarejo o enforcam, vão até o bosque e cortam todos os carvalhos. Daí surge uma tradição local de cortar árvores.
 
O Professor Mark Rydell, um estudioso das baladas tradicionais, viajou para a Inglaterra para pesquisar as possíveis origens históricas, factuais, dessa lenda poética. E ali desapareceu, ninguém mais teve informação dele. Um dos participantes do forum, HenryMartyn, decide fazer um documentário a respeito. Viaja, também. Desaparece, também.


Isto dá ao conto um clima parecido com o de A Bruxa de Blair (1999) – a história de jovens estudantes entusiasmados com uma lenda folclórica arrepiante, que decidem investigar por conta própria.
 
Acho interessante o fato de que este conto (muito bem trançado e resolvido, mesmo não tendo grandes surpresas) tenha ganho os prêmios Nebula e Hugo, que são prêmios destinados à ficção científica e à fantasia. (Não digo isto por mim, que estou-me nas tintas para essas classificações de gênero; estou pensando nos puristas a subir pelas paredes.) Não há nada de FC e só um pouco de Fantasia no conto. Ele poderia perfeitamente concorrer ao Prêmio Edgar (de histórias policiais e de crime) e ao Stoker (de histórias de terror).
 
Basicamente, trata-se de uma história do que chamam de folk horror – narrativas fantásticas aterrorizantes baseadas em tradições orais, geralmente da área rural e de lugares remotos. Além da Bruxa de Blair, o conto me evocou o filme The Wicker Man (1973), com Christopher Lee, em que um policial viaja para uma ilha remota para investigar crimes relacionados a um ritual antigo de fertilidade agrária.


Para mim, que sou leitor e admirador das antigas baladas de língua inglesa, o ponto mais interessante é a permanência desses rituais antigos (que muitas vezes envolvem sacrifícios humanos) em culturas milenares, e os seus ecos em baladas anônimas.
 
Sarah Pinsker cita um texto de Wendy Lesser, na ótima antologia The Rose and the Briar (New York: Norton, 2005), de Sean Wilentz e Greil Marcus:
 
Quando uma balada tradicional mostra lacunas em sua narrativa, é porque se presume que o público já conhece a história, e pode se encarregar de preencher os claros por conta própria. (trad. BT)


É exatamente o que se dá, entre nós, com o chamado Romanceiro Ibérico. Em muitos aspectos (métrica, rimas, formato de estrofe) os romances portugueses e espanhóis trazidos para o Brasil (e preservados oralmente) são diferentíssimos das baladas inglesas. Mas em ambos vemos fatos históricos ou semi-históricos sendo condensados em 30 ou 40 linhas, com descrições resumidíssimas, diálogos sem indicação de quem os profere, repetição encantatória de sonoridades, alusão a lugares ou pessoas pouco identificáveis, lirismo exagerado, violência brutal. Além do fato de que cada versão documentada é diferente de todas as outras numa miríade de detalhes.


Duas antologias clássicas desse romanceiro são o Romanceiro Geral Português (1906; várias reedições) de Teófilo Braga, e Presença do Romanceiro (Civilização Brasileira, 1967) de Antonio Lopes. Sempre é bom lembrar que aqui no Brasil esse “romanceiro” não é a mesma coisa que a chamada “literatura de cordel” – são universos poéticos vizinhos, mas diferentes.
 
Sarah Pinsker faz uma série de alusões divertidas à permanência das baladas na cultura popular de língua inglesa. “Where Oaken Hearts Do Gather”, segundo ela, foi gravada por um grande número de artistas, desde os clássicos Kingston Trio e Joan Baez até a banda contemporânea The Decemberists (acho que é a primeira pessoa que eu vejo citar essa banda, que acho excelente).
 
Tudo ficção. A única versão gravada, claro, é a da própria autora (disfarçada sob o pseudônimo de “Moby K. Dick”):


(Sarah Pinsker)

A balada é bonita, o enredo é interessante, mas para mim a principal virtude do conto é o modo como ele superpõe a cultura oral de 500 anos atrás e a cultura digital da web contemporânea, e mostra como são parecidas. Perda de autoria individual, numa cachoeira incessante de produção anônima. Condensação factual a um ponto de distorção. Diálogos sem interlocutores claros. Repetição, paródia, pastiche, apropriação constante de formas alheias. Criação de um jargão próprio, quase indecifrável para quem é de fora. Citação abundante de lugares e pessoas reais e fictícios. Sentimentalismo exacerbado, misturado a uma chocante violência verbal.
 
Nada se parece tanto com a cultura oral de 500 anos atrás como a cultura digital de hoje em dia.
 
Há muitas coletâneas dessas baladas inglesas. Algumas delas já são baladas norte-americanas, porque os EUA fizeram com a cultura britânica o mesmo que fizemos nós com a lusitana. Alimentaram-se, e produziram uma síntese nova.
 
Dois dos melhores álbuns de Bob Dylan são inteiramente compostos de versões acústicas dessas baladas tradicionais: Good As I Been To You (1992) e World Gone Wrong (1993).