segunda-feira, 21 de agosto de 2023

4974) Eu já fui cineasta (21.8.2023)



(Lydia Tár)


Em certos momentos tenho a impressão de que fui a única pessoa a gostar do fime Tár, estreado por Cate Blanchett e dirigido (com brilhantismo) por Todd Field, aquele rapaz que faz o pianista amigo de Tom Cruise no filme kubrickiano Eyes Wide Shut (“De Olhos Fechados”, 1999).
 
Sei que não sou o único, claro, e nas redes sociais vi inúmeros elogios. Mas vi também rejeições bruscas, irritadas: ao filme, ao enredo, à personagem principal, à narrativa, à verossimilhança da história contada.
 
Tar se passa num mundo que eu só aceito como real porque sei que o é. É o mundo das pessoas riquíssimas, sofisticadas, cosmopolitas, poderosas. Não é um mundo de executivos bilionários, de banqueiros, de políticos. Curiosamente, é o mundo da Cultura e da Arte, ou seja, em princípio este mesmo mundinho de fundilhos rasgados e mão-em-concha onde vivo e bulo há mais de meio século.  
 
Só que, no caso dela, é o mundo da alta cultura, da música orquestral, das grandes temporadas líricas... Alguém já afirmou que a música sinfônica e a física teórica são as maiores contribuições da Europa ao pensamento humano. Uma constatação que pode ser ampliada, é claro (eu incluiria o romance dos séculos 18-19), mas nunca reduzida. Estes dois monumentos ninguém discute. 
 
Lydia Tár é uma maestra talentosa, culta, articulada, articuladora, ambiciosa, sagaz, olimpicamente certa do próprio poder no mundo da música. Não é um papel difícil para Cate Blanchett. Ela já interpretou Bob Dylan, o Dylan elétrico do Royal Albert Hall Concert, o Dylan de 1966. E tira Lydia Tár de letra.
 
A maestra é do tipo capaz de passar o trator por cima de tudo, quando precisa alcançar um objetivo: namorar uma musicista jovem, demitir um funcionário, proteger a filhinha que sofre bullying na escola, acabar um namoro que perdeu o encanto. Tudo isto a ajudou na subida à Fama – e, como nos romances-para-costureirinhas, tudo isto vai provocar seu desmoronamento final. (Que, ao contrário da maioria dos espectadores, achei adequado, dramaturgicamente plausível, e narrado com desconcertante simplicidade.)
 
Gosto de fazer aproximações inesperadas, meio randômicas, entre coisas não-relacionadas. O nome da personagem de Cate Blanchett me foi trazido à memória quando assisti agora há pouco tempo o documentário Béla Tarr: I Used to be a Filmmaker (2013) de Jean-Marc Lamoure, sobre o cineasta húngaro conhecido por seus filmes austeros, enigmáticos, arrastados, filosóficos, tarkovskyanos. 

(Béla Tarr)


O documentário acompanha as filmagens de O Cavalo de Turim (2011) o último filme dirigido por Tarr, nascido em 1955, autor de Satantango, O Homem de Londres  e outros.
 
É um filme feito na borda do fim dos tempos, por assim dizer: uma campina semi-desértica, açoitada por uma ventania que parece obstinar-se em varrer dali a presença humana para que o mundo se acabe sem que haja testemunhas.
 
Numa casa de pedra vivem um homem de um braço só e uma mulher jovem, aparentemente sua filha. Ele tem uma carroça e um cavalo, e de vez em quando vai vender coisas num vilarejo. E só.
 
O filme é preto-e-branco, e tem uma música que parece uma ventania repetida em loop misturada a uivos de banshees carpindo a morte do sol.
 
No doc, vemos Béla Tarr dirigindo cenas deste filme impressionante, e conversando com membros da equipe, que dão breves entrevistas comentando seu trabalho. São artistas que criam juntos com o diretor há muitos anos: a montadora (e esposa) Agnes Hranitzky, o escritor Lazslo Krasznahorkai, o fotógrafo Fred Kelemen, o compositor Mihaly Vig, a atriz Erika Bok.
 
É o mundo da Arte e da Cultura, também. E ao ver as filmagens de O Cavalo de Turim tenho a sensação de que o diretor e sua equipe estão mais próximos, social e historicamente, daqueles personagens miseráveis cuja vida estão filmando do que do mundo glitzy, o mundo blasé, o mundo highbrow da maestra Lydia Tár. 
 
Tudo isso é cultura, por certo, e não estou aqui contrapondo maestras que vestem (o quê, Deus do céu? Eu só estudei até Dior e Givenchy) a cineastas intelectuais que trajam capote e botas. É um mundo só, e Béla Tarr não é propriamente um tresmundista rodando filme vencido e largando papagaios no comércio do vilarejo onde filmou. Seus filmes são produções internacionais, e aparecem nos grandes festivais de cinema. Ele não é um pobretão.
 
Mesmo assim, há um contraste tão desconcertante entre o mundo de Lydia Tár e o mundo de Béla Tarr que o primeiro impulso é achar que são polos opostos, e que os dois nada têm em comum. Eu vejo, contudo, no olhar de Cate Blanchett (quando “recebe” a maestra) e no olhar do diretor húngaro a mesma concentração, a mesma fixidez, a mesma imperturbabilidade das pessoas capazes de criar com grande intensidade e em alto nível. O olhar impiedoso do artista nos momentos em que deixa de ser gente como a gente e passa a ser o que é.
 
A maestra deixa que a vida pessoal lhe arruíne a carreira; o cineasta pára de filmar em 2011 e vai fazer outra coisa. Rica ou modesta, fashion ou ascética, a Arte de verdade cobra um preço alto. Feliz de quem tem uma vida com que pagá-lo.