sábado, 30 de julho de 2022

4848) Primeiras Estórias: "Partida do Audaz Navegante" (30.7.2022)

 

As crianças e os doidos, diz Paulo Rónai, são dois temas que Guimarães Rosa gosta de explorar em seus contos de Primeiras Estórias (1962; 3ª. edição, 1967). Sempre com conhecimento de causa. Ele dá ao leitor a sensação de que está mesmo vendo aquilo acontecer, porque as crianças pensam e falam do jeito que ele está descrevendo, e os doidos também.
 
É bom lembrar que na rubrica de “doidos” o prof. Rónai inclui todos os maníacos mansos, os obcecados, os “pertubados”, os levemente delirantes...
 
A “Partida do Audaz Navegante” é um conto sobre um grupo de crianças, com foco em uma delas. O conto inteiro transcorre numas poucas horas, num dia chuvoso, numa casa da zona rural. Chove e as crianças têm que brincar dentro de casa. Estiou, e saem elas correndo para a beira do rio, para avaliar as mudanças. As brincadeiras prosseguem, até que o trovão ribomba e a mãe vem recolher a tropa de volta pra dentro.
 
É um conto simples, um desses famosos contos onde nada acontece e de frase em frase um milagre desabrocha.  
 
As crianças são três: Ciganinha, a mais velha, já se botando com interesses de quase-moça; Pele, a do meio; e Brejeirinha, a mais nova e a mais importante da história. Aliás, são quatro, porque tem o primo Zito, que está passando uns dias na casa e mantém com Ciganinha uma tumultuosa amizade, um tateante rascunho de namoro. E tem as figurantes de fundo: a Mãe, “a mais bela, a melhor”; Maria Eva, que pelos diálogos interpretamos como uma criada da casa; e Nurka, a cadela.
 
Rosa conta essa historinha doméstica com um ponto de vista infantil, um olhar de menina que ele consegue reproduzir. Jagunço, matador e cruel quando necessário, seu olhar pode se ameninar dessa forma, e o mundinho daquele sítio vai sendo revelado através de pequenas delicadezas verbais:
 
“Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas.” (p. 115)
 
“Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se.” (p. 116)
 
“Eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade” (p. 120)
 
Quando a gente estabelece, didático, aquela milenar separação entre “literatura de enredo” e “literatura de estilo”, muita gente entende “ter estilo” como escrever bnito, escrever de um jeito enfeitado; uma concepção de “estilo” que contaminou muitas literaturas, principalmente a nossa. Escrever com palavras bonitas. Escrever com frases bombásticas. Escrever com citações dos clássicos. Escrever em estruturas sintáticas difíceis de acompanhar, mas tecnicamente inatacáveis. Tudo isso constituía um estilo, por mais desnecessário ou deslocado que fosse.
 
O estilo de Guimarães Rosa é geralmente compreendido num conjunto de efeitos quase sempre presentes em quase todo texto seu:
 
--- sintaxe meio truncada, cheia de solavancos;
--- abundância de neologismos (palavras inventadas pelo autor) e arcaísmos (palavras que já existiam na língua e o autor foi buscar no fundo do baú);
--- riqueza de símiles (comparações) visuais e sonoros;
--- facilidade para adotar o tom simbólico-declaratório que se vê nos provérbios, nos ditos folclóricos, nas profecias religiosas;
--- convivência pacífica entre a norma cultíssima e o linguajar solto, barbárico, bravio, da vida real;
--- originalidade na criação de nomes próprios (pessoas, lugares)
... e mais alguns que não me ocorrem agora.
 
As frases que citei acima, no entanto, mostram Rosa em pleno domínio de um recurso de estilo que não é dele, é da Literatura em si – o recurso de criar um “clima mental” através do uso de palavras e frases que pertencem mais ao universo mental do Personagem do que ao do Autor (embora este, obviamente, tenha acesso a ambos).


(ilustração: Luís Jardim)
 
Num conto sobre crianças, ele sabe reconstituir esse mundinho infantil de ingenuidades e de sutilezas percebidas, de linguagem ora infantilmente afetiva ora pomposamente semi-adulta. Estamos aqui de volta ao mundo de ingenuidades geniais da Nhinhinha de “A Menina de Lá”, dos achados de linguagem infantil – que no caso de Nhinhinha divergem para a “santidade”, e no de Brejeirinha para a literatura...
 
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4580-menina-de-la-2152020.html
 
Essa pomposidade no bom sentido é que constitui o núcleo do conto, que é a história do “Audaz Navegante” que Brejeirinha vai inventando em voz alta, como uma novela de rádio criada de improviso, e até interativamente porque as irmãs e os primos dão palpite o tempo todo.
 
E o estilo de Brejeirinha (uma menina que fala “não detendo em si o jato de contar” é um esboço de prosa adulta concebida meio às cegas, meio na inocência, por quem está começando a domar o cavalo brabo do idioma:
 
O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. (p. 117)
 
E nessas pequenas amostras a gente já percebe a existência de estilo. Brejeirinha é uma menina esperta, domina a leitura (“Pois eu li as 35 palavras no rótulo de caixa de fósforos...”) e um dos seus cacoetes estilísticos é essa frase que termina com uma palavra bombástica de encerramento antes do ponto final, subitâneo.


(ilustração: Poty)

O estilo é sempre o resultado da soma entre o que a gente sabe fazer e o que não consegue.
 
Note-se que ela usa o termo aldaz, com L, e isto, embora não esteja bem claro no texto de Rosa, nos permite inferir que Brejeirinha já andou rabiscando seus folhetinzinhos, com sua própria ortografia e letra cursiva. Quando ela diz a palavra em voz alta, mesmo que a pronúncia seja a mesma, o que ela tem na memória visual é sua própria palavrinha manuscrita.
 
A sutileza de Rosa está justamente em escolher um “erro” que, mesmo apresentado na fala oral, só poderia existir na forma escrita. Me lembrou um conto policial de Melville Davisson Post, em que o crime é esclarecido quando o detetive vê, num bilhete atribuído a um homem surdo, um equivoco de pronúncia que um surdo, totalmente dependente da palavra escrita, não cometeria.
 
E quando as crianças saem por fim para brincar lá fora, o que encontram na beira do rio? Um enorme cagalhão bovino, depositado. E passam a enfeitá-lo de flores, gravetos, como cravando velinhas em bolo de chocolate natalício. Brota nelas a convenção instantânea de que é aquele o Aldaz Navegante, até porque o rio está engrossando com a chuva nas cabeceiras, e as águas pouco a pouco se aproximam daquela “coisa vacum”, daquela “obra pastoril”, daquela “trampa seca de vaca”, prometendo arrastá-la pelos oceanos da aventura.
 
As vagarosas travessuras desse grupinho de crianças reproduzem a infância de Rosa em Cordisburgo, seus boizinhos-de-chuchu e outros brinquedos rurícolas. E ao mesmo tempo o conto é uma reflexão bem-humorada sobre o ato de criar e de contar histórias, sobre a Literatura enfim, sobre o mundo onde Brejeirinha começa a se aventurar.
 
Quando alguém lhe questiona por que inventa histórias (o nosso sonoro mantra existencial-adulto: Por Que Fazer Literatura?), Ciganinha mata a charada:
 
Porque depois pode ficar bonito, ué! (pág. 117)
 
No campo do real e do fantástico, ela se sai com uma ótima ilustração (por intuição infantil) do problema científico da Ausência de Prova Negativa. (Em resumo: se encontrarmos uma espécie alienígena, isso prova que existe vida extra-terrestre, é a prova-positiva; mas se nunca a encontrarmos, isso não prova que não existe; é impossível produzir, pela mera experiência, essa prova-negativa).
 
Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. “ – Você já viu jacaré lá?”, caçoava Pele. “ – Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” (pág. 119)
 
Ficção requer essa capacidade de pensar como o personagem, usar a linguagem do personagem, nas limitações do personagem, dando a ele (a ela, no caso) as limitações de ser quem é, e ao mesmo tempo a necessária chama de inteligência, esperteza, sensibilidade, expressão, que a transforme num personagem interessante, o que já é outra coisa.
 
Brejeirinha, como todo autor de folhetim, tira da cartola o coelho que for necessário para amarrar as pontas da narrativa, e o público não é bobo.
 
“(...) O Aldaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...
– Sim. E agora? E daí? – Pele intimava-a.
– Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol. Pronto. E...
– Na-ão!  Não vale.  Não pode inventar personagem novo, no fim da história, fu!
 
Qualquer lente de Escrita Criativa faria a mesma prescrição, é ou não é?
 
E Brejeirinha, já meio afobada, pressionada pela ansiedade do editor, a expectativa do público o cenho franzido da crítica especializada, resolve encerrar sua história de maneira hollywoodiana, orquestral:
 
“Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se. Arres! O Aldaz Navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi: Fim!”  (pág. 121)
 

(ilustração: Poty)
 
 
 
 



quarta-feira, 27 de julho de 2022

4847) A arte de esculpir o tempo (27.7.2022)



“Esculpir o tempo” é o título de um livro do cineasta Andrei Tarkovsky, um livro onde se misturam memórias pessoais, reflexões sobre a arte, episódios da carreira profissional, etc.  Um livro bonito, e útil para quem gosta do tipo de cinema feito pelo diretor russo – eu, por exemplo.
 
Sempre que digo que gosto de Tarkovsky, as pessoas me dizem que não simpatizam muito com o cinema dele – um cinema “lento, arrastado, sem diálogos, sem ação, filmes onde nada acontece”. E um ou outro se sai com: “Eu gosto do outro tipo de cinema: Spielberg, Tarantino, Woody Allen.” Isso sempre me diverte, porque eu gosto de todos estes... e consigo gostar de Tarkovsky. É como se eu dissesse que gosto de sushi, e a pessoa respondesse: “Eu detesto sushi, gosto mesmo é carne-de-sol.”
 
Eu acho que sou um excentricão, um agnóstico sem devoções setorizadas. Eu gosto de sushi e de carne-de-sol.
 
Um dos cineastas tarkovskyanos do cinema atual é o húngaro Béla Tarr, famoso por seus planos de oito ou dez minutos “onde nada acontece”.  Que é, como sempre, um engano.



A sequência inicial de O Homem de Londres (2007, baseado num romance de Georges Simenon) mostra como um vigia num cais do porto percebe uma movimentação estranha entre indivíduos num barco, depois no cais... Percebe como um crime é cometido; e como uma maleta que provavelmente contém algo valioso esteve a ponto de se perder – mas ele vai lá e a recolhe.
 
Tudo acontece de madrugada, sem ninguém ver. É uma cena longuíssima, que parece cinema mudo. Ele nos obriga a ver o que o vigia está vendo, deduzir o que ele está pensando, e entender o motivo de suas ações subsequentes.
 
A ação física no interior desses planos é mínima, ou uma só com mínimas variações, mas existe uma ação interior que não é visível, é projetada pelo espectador.
 
Lembra a famosa cena do Blow-Up (1966) de Antonioni, em que o fotógrafo passa uns dez minutos de filme revelando e ampliando as fotos que tirou de tarde, pendurando na parede, examinando com uma lupa... até descobrir que um crime foi cometido. Ele não diz uma palavra. Cabe a nós perceber o que ele está pensando.


Filmes assim me fazem pensar às vezes numa expressão que existe em inglês. Quando se quer dizer que os exemplos ou os casos de alguma coisa são raros, diz-se: “few and far between”. “My visits to my parents are few and far between” = minha visitas aos meus pais são poucas, e “com muito espaço entre elas”.
 
É o que se dá com os momentos de ação intensa em filmes muito “parados” como Stalker de Andrei Tarkovsky, ou os filmes de Béla Tarr.
 
Os momentos de ação que há nesses filmes não teriam o mesmo peso se fossem numerosos, ou muito próximos uns dos outros. A distância entre eles é importante. É como uma constelação que vemos no céu noturno, seja Órion, a Ursa Maior ou o Cruzeiro do Sul. A constelação não é formada apenas pelas estrelas, mas também pela posição relativa delas entre si, pela distância relativa (do nosso ponto de vista) entre elas.


(Béla Tarr, em Um filme de cinema)
 
Num depoimento ao documentário de Walter Carvalho Um Filme de Cinema, Béla Tarr diz que desdenha o modo habitual de montagem do cinema: “ação, corte; ação, corte; ação, corte”. Para ele, os filmes em geral procuram excluir a presença do tempo, e se concentram apenas no ato de contar a história.
 
Parece um contra-senso, pois uma história é justamente uma sucessão de eventos no tempo. Mas Tarr está dizendo que (como na comparação acima, da constelação) o tempo não consiste apenas na sequência dos eventos, mas nos espaços vazios entre eles.
 
Que na verdade não são tão vazios assim. Como dizia Guimarães Rosa, quando não acontece nada, há um milagre que não enxergamos. Alguma coisa acontece, o tempo inteiro. Do ponto de vista da Natureza, o fato de um vulcão estar em plena erupção equivale ao fato de o sangue no corpo de um coelho estar circulando. Um deles não é maior ou mais importante do que o outro, porque a Natureza na verdade não tem “ponto de vista”, ela é apenas uma superposição e justaposição de fenômenos independentes entre si, e que às vezes se relacionam.
 
Ou, como dizia Mário Quintana, referindo-se ao espaço, em vez do tempo:
 
O homem acha o Cosmos infinitamente grande
e o micróbio infinitamente pequeno.
E ele, naturalmente,
julga-se do tamanho natural...
Mas, para Deus, é diferente:
cada ser, para Ele, é um universo próprio.
E, a Seus olhos, o bacilo de Koch,
a estrela Sírius e o Prefeito de Três Vassouras
são todos infinitamente do mesmo tamanho...
(em Velório sem Defunto, 1990)
 
O cinema pode nos fazer comparar uma hora, um minuto e um segundo. Raramente faz isso. A preocupação maior é contar a história e evitar que o público boceje. (E, mais modernamente, evitar que pegue o controle remoto e mude de canal.)


No filme de Ingmar Bergman A Hora do Lobo há uma cena em que durante uma madrugada de insônia o personagem de Max von Sydow comenta o quanto um minuto é longo. Pega o relógio, fica olhando para ele, ouvimos o tique-taque do relógio de parede e sentimos o minuto inteiro escorrendo diante dos nossos olhos.
 
O filme está aqui, e a cena começa por volta do minuto 12:05. https://www.youtube.com/watch?v=AZD99vmgdmA
 
É preciso uma certa arte para dar ao público o poder de sentir o transcorrer de alguns segundos ou minutos, porque o cinema existe justamente para abarrotar esses segundos e minutos de acontecimentos que nos façam esquecer a passagem do tempo. Não é este o comentário feliz que ouvimos depois de um filme bom? “Gente, nem senti o tempo passar!”
 
O cinema serve para isso, sim; mas não só para isso.






domingo, 24 de julho de 2022

4846) "Na Torre da Lua Cheia" (24.7.2022)

 

Um editor meu já disse, com afabilidade, que eu sou um grande sabotador dos meus próprios livros, porque não me entusiasmo muito para divulgá-los. Não é verdade. Eu faço o que posso, tanto no cara-a-cara quanto nas redes sociais. Essa avaliação dele se deve à sua ansiedade, porque tinha expectativa de vender 40 mil exemplares do meu livro e agora segurava nas mãos uma planilha indicando cerca de 350.
 
Na verdade eu divulgo, mas não divulgo diariamente, como deveria fazer para me fazer ouvir no meio da inevitável balbúrdia. Todo dia tem gente lançando disco, montando peça, autografando livro, compartilhando podcast, estreando filme, abrindo vernissage. Divulgar é um trabalho de Sísifo.
 
Repórter de TV:
– Sísifo, fala pra gente como é essa emoção de todo dia conseguir enviar uma pedra para o vale. Como explicar tanto sucesso?... 
 
A revista pernambucana Continente Multicultural lançou, neste número do mês de julho, um encarte com um poema meu ilustrado por Cavani Rosas, Na Torre da Lua Cheia. Acho que a esta altura todo mundo no Brasil conhece essa excelente revista, na qual já colaborei várias vezes, e onde já fui entrevistado. Pode ser adquirida diretamente no saite, em várias bancas e livrarias nas Capitais; aqui no Rio de Janeiro, onde moro, vende nas livrarias Blooks e Travessa.
 
Na Torre da Lua Cheia
eu estava adormecido
quando acordei de repente
talvez ouvindo um ruído.
Levantei da minha enxerga
fui tateando a parede
até achar a janela
no meio da escuridão;
localizei o ferrolho
puxei pra cima com força
e a janela abriu-se toda
para a noite do Sertão.
 
Na Torre da Lua Cheia provavelmente vai ser referido como “um romance de cordel”, o que dá uma idéia, mas não uma idéia exata. Eu não acho que toda história em versos é “um cordel”. O cordel (o Romanceiro Popular Nordestino) tem formatos consagrados, tradicionais, que devem ser respeitados justamente por serem tradicionais. Foram cristalizados pela prática secular de milhares de poetas e milhões de leitores. Não foi um colegiado de teóricos que baixou uma lei dizendo “Tem Que Ser Assim”.
 
É um romance no sentido cordelesco do termo – uma história fantasiosa contada em versos. No caso, numa estrofe que não se usa no cordel (estrofe de 12 sílabas), e usando rimas toantes (que o cordel tradicional não admite).
 

Algum tempo atrás, comentei aqui neste blog o quanto é rara a Poesia Fantástica em nossa literatura. É possível achar numerosos exemplos do Fantástico em verso no Brasil, é possível até montar uma boa antologia, mas mesmo assim ninguém pode dizer que há aqui uma corrente contínua de poemas fantásticos dialogando e influenciando-se ao longo dos séculos. É como se cada autor começasse do zero.
 
A exceção, como sempre, é o cordel – que no seu sistema tradicional de sextilhas e décimas, e rimas consoantes, tem um impressionante repertório de histórias fantásticas, mesmo que aparentemente diluídas na tradição “folclórica” e anônima.

Na Torre da Lua Cheia tem algo de ficção científica, e é um poema que dormia na gaveta há muitos anos quando, numa conversa minha com Cavani Rosas, ele perguntou: “Você não tem nenhum texto falando de monstros, de assombrações?...”
 
Tinha, sim, tinha estas visagens adormecidas. Repassei uma cópia dos versos e ele passou pelo menos uns quatro ou cinco anos produzindo bem devagar – nos intervalos do seu trabalho costumeiro – as ilustrações que transformaram o poema em projeto de livro, em obra publicável. Coube a seu filho Edson Rosas dar o visual definitivo à obra.


Que sai agora, encartada num exemplar muito interessante da Continente, dedicado à música brega e à música soul. Para mostrar (talvez) que tudo coexiste, que tudo respira o mesmo ar e bebe a mesma água.
 
Uma pergunta que alguém pode vir a fazer: por que não publicar em forma de cordel tradicional? A resposta mais óbvia é que as ilustrações foram feitas em tamanho grande e precisam de um mínimo de espaço para serem reproduzidas à altura. Cavani desenha geralmente em nanquim e bico-de-pena, naquele pontilhado minúsculo de quarks escuros que se aglomeram sugerindo matéria, relevo, sombreados.
 
Para ficar à altura dessas minúcias, a primeira idéia, depois de descartado o cordel, foi fazer um álbum mais chique, tamanho revista, papel cuchê ou algum outro de ótima qualidade de reprodução, talvez até capa dura. Uma publicação semelhante às graphic novels que tanto eu quanto ele gostamos de ler.
 
Esse formato não está descartado, mas pode ficar para depois, porque vai ser um item de produção mais cara. Ficamos deliberando – e somos dois procrastinadores compulsivos, deliberar essas coisas leva anos – e nesse ínterim surgiu a idéia, lá no Recife, de fazer um formato intermediário – tamanho graphic novel, mas num papel mediano, e a edição seria encartada na Continente.
 
A revista da CEPE (Companhia Editora de Pernambuco) tem uma ótima circulação, é lida em muitos Estados, vende em banca e em livraria (inclusive Blooks, Martins Fontes, Travessa...), tem muitos assinantes... Encartar nosso “folheto” numa edição da revista seria um modo de fazê-lo chegar a leitores que normalmente jamais tomariam conhecimento de uma produção independente.
 
E assim... vualá!  Eis o nosso narrador da Torre alçando seu voo e contemplando lá de cima o Brasil do segundo semestre de 2022, Brasil que entrará para a História. Depois não digam que nós não avisamos.



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quinta-feira, 21 de julho de 2022

4845) O quadro (e o disco) mais caros do mundo (21.7.2022)




Se isto aqui fosse um artigo acadêmico, eu o intitularia "A Obra de Arte na Era de sua Não-Fungibilidade Comercial". 

Pelo que entendo, produto não-fungível é o produto único, que não pode ser substituído por um similar. Isso lhe dá uma condição de raridade, de individualidade. Inversamente, o produto fungível é o que pode ser trocado por algo igual ou equivalente.
 
Walter Benjamin tem um ensaio famoso, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1935), em que entre outras coisas ele compara os tradicionais quadros pintados a óleo e as obras das modernas artes gráficas. Um quadro pintado por Van Gogh é único, é não-fungível; uma gravura feita por Dürer pode ter 100 ou 500 cópias praticamente idênticas, e isto coloca a questão: essas gravuras caríssimas são fungíveis? Por um lado, têm gêmeas idênticas; por outro, a “família” inteira é rara e preciosa.
 
A possibilidade de reproduzir algo em grande quantidade (a imprensa, a fotografia, as gráficas, etc.) tira a “aura de unicidade” de uma obra, aquele charme do exemplar único e insubstituível, que faz a fortuna de artistas, colecionadores e marchands. Quando alguém diz “Eu tenho o quadro tal de Picasso” ele se refere ao quadro original feito pelo pintor. Pode haver até um certo número de cópias circulando – faz parte da tradição do estudo das artes copiar obras famosas. Mas o original é um só, e vale um milhão de vezes mais.
 
Um filme recente questionou tudo isso de maneira brilhante. The Lost Leonardo (André Koefoed, 2021) documenta o percurso de uma das pinturas mais polêmicas dos últimos tempos, o “Salvator Mundi” atribuído a Leonardo da Vinci. “Descoberto” por negociantes de artes em Nova Orleans, o quadro foi comprado por eles a um preço de 1.175 dólares.



(Leonardo da Vinci (?), Salvator Mundi, c1500)
 
Era considerado obra de algum aluno de Leonardo da Vinci, mas os compradores mobilizaram uma série de especialistas – restauradores, marchands, curadores – para saber se aquilo poderia, ou não, ser um Leonardo autêntico. Através de avaliações diversas, umas mais cautelosas, outras mais otimistas, eles conseguiram chamar a atenção do mundo para o quadro. Daí a pouco a pintura estava sendo noticiada e exibida como “Atribuída a Leonardo da Vinci”, e foi vendido por 127 milhões de dólares.
 
Bastou isso para mobilizar o mundo dos bilionários russos ou sauditas, gente com coceira no bolso. Em 2017, o quadro (cuja origem DaVinciana ainda está sob disputa) tornava-se “a Mona Lisa masculina”, e era vendido na Sotheby’s por 450 milhões.
 
Parece que a reprodutibilidade técnica das obras expandiu-se a ponto de empurrar para um recanto apertadinho do mundo as pinturas únicas, e isso, paradoxalmente, acabou ajudando a valorizá-las ainda mais. 

Sem esquecer que valor artístico é, SEMPRE, subjetivo. E autoria artística na pintura é, muitas vezes, difícil de estabelecer com 100% de certeza. O mercado de pinturas falsas é tão aquecido quanto o de pinturas verdadeiras. Orson Welles abordou isso de maneira tipicamente irônica no filme F For Fake (1973).
 
Aconselho uma olhada no filme de Koefoed, um mergulho cheio de curiosidade nesse mundo de “especialistas” que fazem um quadro religioso passar de 1 mil dólares para 400 milhões, no espaço de poucos anos. Um milagre-dos-peixes bem de nossa época.
 
Outra notícia recente diz respeito não à pintura, mas à música popular, e tem no epicentro o inefável Bob Dylan.


(Bob Dylan, por Milton Glaser)
 
Discos de música popular são frutos notórios da “reprodutibilidade técnica”, pois em tese são todos iguais, a não ser quando se trata de formatos essencialmente distintos de reprodução dos mesmos fonogramas – LP, CD, fita cassete, arquivo mp3...  Também temos que considerar que discos antigos, aqueles velhos vinis dos anos 1920 ou 1930, podem valer fortunas, pois apesar de serem objetos fabricados em massa tornam-se escassos (e por isto valiosos) com o passar do tempo.
 
Jeff Rosen é o empresário de Bob Dylan há vários anos, e devemos a ele (nós, os ouvintes e admiradores) uma série de iniciativas para trazer para o público produtos associados a Dylan. O lançamento regular da série Bootlegs, por exemplo, tem nos mostrado verdadeiros tesouros que Dylan (cuja cabeça ninguém até hoje sabe como funciona) preferiu deixar de fora dos álbuns, em detrimento de canções medíocres.
 
Rosen produziu a ótima caixa Biograph, o famoso show de trigésimo aniversário da carreira do cantor (em 1992), incrementou o saite www.bobdylan.com e produziu o documentário de Martin Scorsese, No Direction Home (2005) – a longa e resmungante entrevista de Dylan no filme foi concedida ao próprio Rosen.
 
Vai daí, deve ser ele que está por trás do lançamento recente de um disco único de Dylan, uma regravação em estúdio do clássico “Blowin’ in the Wind” em uma nova tecnologia de gravação (“Ionic Original”). O disco é de acetato, coberto com uma camada protetora, e pode ser tocado numa vitrola comum. É um disco único, sem cópia, atestado como “one of one”, exemplar único de uma tiragem total de apenas um.



Guardado numa caixa de madeira, o disco traz as assinaturas de Dylan, do produtor musical T-Bone Burnett e do engenheiro de masterização Jeff Powell.
 
O disco foi a leilão na Christie’s, em Londres, e foi arrematado pela merreca de 1,2 milhão de libras esterlinas, ou 1,44 milhão de dólares.
 
Um disco pop, que já foi um dos produtos mais fungíveis (=mais substituíveis) da indústria, chega agora a um status de sofisticada valorização como produto insubstituível.
 
O produtor musical, T-Bone Burnett, é um excelente músico e figura conhecida no mundo do rock e pop. É dele (por exemplo) a trilha sonora do filme dos Irmãos Coen, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?.  É claro que num produto dessas dimensões não se espera do produtor menos do que entusiasmo, e ele manda ver, na Rolling Stone:
 
https://www.rollingstone.com/music/music-news/bob-dylan-auction-blowin-in-the-wind-1-8-million-dollars-1379474/
 
É uma rebelião contra o consumo massificado. Não é que eu não queira que as pessoas o escutem. Acho que é a melhor gravação que fiz na minha vida, então eu quero que todo mundo ouça. Para o meu ego e o meu senso de “eu queria que todos fossem como eu”, é um sacrifício. Bem, vocês ouviram. [O disco foi tocado em audições especiais para a imprensa e para possíveis concorrentes no leilão da Christie’s.] Bob está soando bem. A banda está soando bem. A canção é extraordinária. E vou dizer uma coisa, acho que é a melhor coisa com que já me envolvi. O melhor cantor, a melhor canção, grandes músicos, o som é matador. Vou lhes dizer: nunca fiz nada melhor do que isto, com certeza.
 
Claro que T-Bone deve ter embolsado bons caraminguás num projeto com o sarrafo tão alto, e claro que ele deve ter feito o possível para estar à altura.
 
Ainda não vi na imprensa quem terá comprado o disco, e se versões piratas dele (trata-se de uma gravação nova, feita em 2021) já surgiram. Alguém duvida?...
 
Dylan já aceitara participar de um projeto com esse perfil “Para Pessoas Diferenciadas”, fazendo um show na Suécia para UM ESPECTADOR.
 
Veja aqui meu texto a respeito:
 
E aqui um clip explicativo, com momentos do show:
 
O fato é que o mundo está cada vez mais cheio de pessoas capazes de dar 400 milhões de dólares por um quadro de procedência duvidosa, mas atrelado ao nome de uma celebridade renascentista; e de pessoas capazes de dar 1 milhão e meio por um disco que não tem similar, atrelado ao nome do único artista que tem um Grammy, um Oscar e um Nobel.
 
Ecclesiastes 11: 1
Cast your bread upon the waters, for after many days you will find it again. 
 


(“Jokerman” videoclip / "Self Portrait", Albrecht Durer, 1500)














segunda-feira, 18 de julho de 2022

4844) O livro como mercadoria (18.7.2022)



Comentei anos atrás, aqui neste blog-coluna, o livro de André Schiffrin O Negócio dos Livros – Como as Grandes Corporações Decidem o que Você Lê (Rio: Casa da Palavra, 2006, trad. Alexandre Martins).
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/02/2485-o-fim-do-livro-2022011.html
 
É basicamente um estudo de como as grandes editoras da Europa e dos EUA estão sendo gradualmente adquiridas e controladas por grupos que não estão nem ai para literatura ou para as artes, e querem usar o livro para alavancar a venda de outros produtos e a difusão de outras idéias.
 
(A situação atual do mundo é esta, gostemos ou não.)
 
Schiffrin nasceu na França, mudou-se para os EUA em 1941. Seu pai Jacques foi o criador da famosa Bibliothèque de la Pléiade, linha editorial francesa que publica aquelas edições chic de obras-completas em papel bíblia. (É uma forma rastaqüera de descrevê-la, diria Julio Silveira.) Nos EUA, André foi diretor da Pantheon Books e depois da The New Press, experiências que ele comenta em seu livro.
 
Aqui no Brasil, muitas grandes editoras surgiram como empreendimentos ao mesmo tempo comerciais (para ganhar dinheiro) e culturais (para debater idéias, fazer circular informações, dar acesso à vida cultural de outros povos, etc.). Muitas dessas editoras eram ligadas a grupos familiares: a família Machado na Editora Record, a família Prado na Ed. Brasilense, a família Lacerda na Ed. Nova Fronteira, a família Zahar na Ed. Zahar, e assim por diante.
 
Ou seja: as pessoas que tomavam as decisões moravam na cidade e estavam mergulhadas na vida social de sua cidade e seu país. Não eram executivos que moravam a 20 mil km da editora e muitas vezes sequer pisavam no país onde elas imprimiam seus livros.






Schiffrin diz que a tendência dessas editoras “familiares”, depois de adquiridas pelos grandes grupos internacionais, é mudar gradualmente sua linha editorial. Em vez de publicar (por exemplo) romances, contos, poesia, teatro, estudos históricos, estudos sociais, psicologia, etc., a ênfase se desloca gradualmente para livros de culinária, livros de turismo e viagens, biografias de celebridades, memórias de políticos, livros de moda, livros de auto-ajuda, livros de administração/negócios/vendas.
 
Publicam literatura? Sim. Basta um autor vender 1 milhão de cópias por outra editora e eles lhe caem em cima prometendo mundos e fundos. É como no futebol. É mais emocionante arrebatar a-peso-de-ouro o ídolo da empresa rival do que manter uma “escolinha” de autores para serem trabalhados a longo prazo.
 
Discutir isto me parece tão importante (do ponto de vista de quem escreve profissionalmente) quanto discutir a questão (também importantíssima, reconheço) “livro de papel X livro eletrônico”.
 
Porque se eu sou leitor de Fernando Pessoa, tanto se me faz lê-lo num volume impresso quanto no celular. Qual é o problema? Aqui no meu modesto Samsung eu tenho Kafka, Leminski, Virginia Woolf, Darcy Ribeiro. O problema começa quando não houver Pessoa em nenhum dos dois formatos. E isso periga acontecer um dia – talvez não com a obra de Fernando Pessoa, mas com a obra de peixes-miúdos como eu e tantos outros.
 
Algum tempo atrás compartilhei nas redes sociais uma postagem onde Octavio Aragão reproduzia um depoimento do editor Rogério de Campos (transcrevo a postagem, não sei indicar a fonte original do texto):
 
Rogério de Campos: "Por outro lado, abundam nos postos de direção do mercado editorial pessoas que não têm qualquer interesse em livros. Donos de editoras que preferiam ser donos de construtoras, diretores de marketing que trabalham em grandes editoras porque não conseguiram uma vaga na Coca Cola, livreiros que gostariam de ser executivos em empresas de tecnologia, CEOs que dariam ótimos mecânicos (mas infelizmente não sabem disso). Gente que não lê livro algum além dos manuais técnicos de seus notebooks. Nas reuniões exibem seus novos smart clocks, falam com entusiasmo das novas empilhadeiras do estoque e da nova funcionária do RH, riem dos nerds da redação e reclamam com impaciência do mimimi dos autores. Porque não têm paciência com gente que escreve livro, que edita livro, que vende livro, que compra livro e que lê livro. São chefes infelizes de gente que se sente infeliz por tê-los como chefes."
 
Os comentários na minha postagem eram todos de confirmação, e muita gente dizia: “Na música também é assim”, “no meu trabalho também é assim”. E eu acredito que seja.
 
André Schiffrin usa o conceito de “censura do Mercado” para definir esta situação, um problema crescente a cada década que passa.
 
Assim como um Estado totalitário proíbe (ou sabota) tudo que vai de encontro a sua ideologia, seja ela qual for, a censura do Mercado proíbe (ou sabota) tudo quanto for de encontro à sua, que é a Ideologia do Lucro.
 
Poderíamos chamar de capitalistalinismo essa pressão devastadora de cima para baixo em que o objetivo de um livro não é proporcionar uma experiência pessoal, mas dar lucro. No final das contas, é “a Mão Bruta do Mercado”, que espreme cérebros para fazer gotejar cifrões.


(Norman Spinrad)
 
Não é de hoje. Numa entrevista do autor de ficção científica Norman Spinrad (autor de O Sonho de Ferro, The Void Captain’s Tale, No Direction Home etc) à revista Locus (fevereiro de 1999, # 457), ele já se queixava:
 
O que há de errado com a FC, em última análise, é o que há de errado com o capitalismo dos conglomerados de corporações, em seu aspecto editorial, porque em termos de quantos livros bons estão sendo escritos todos os anos não há problema nenhum. Nos últimos dez anos temos tido todos os anos cerca de 20 a 30 livros entre bons e excelentes, e ninguém pode se queixar. O problema é que eles estão soterrados numa avalanche de porcaria cinicamente comercial. Existe uma disfunção no seio da indústria editorial, e isto acaba por afetar o que os escritores produzem.
 
Os escritores se desenvolvem sob intensa pressão editorial, de uma maneira que certamente não é a melhor para o seu amadurecimento literário. Você não escreve os livros que genuinamente queria escrever: escreve os livros que está obrigado a entregar sob contrato. É de causar medo. A indústria editorial está hoje comandada por gente com cabeça exclusivamente de negócios. O poder está nas mãos das pessoas do dinheiro, e isso não é só no mercado do livro. Em geral, o pessoal que está no comando é o pessoal que faz cálculos na ponta do lápis. Eles estão distanciados das qualidades inerentes ao produto, e não conseguem ver nele outra coisa senão um produto. É por isso que, mesmo quando eles seguem a cartilha da Harvard School of Economics, a indústria editorial não está indo nada bem. É possível, sim, ir à falência por ter subestimado a inteligência do leitor americano! Publicar significa dar ao povo o acesso às coisas que ele quer ler, e talvez ajudar a produzir coisas melhores. Esta é a sua função social. E a indústria editorial não apenas está deixando de atingir este objetivo, como está trabalhando contra ele. (trad. BT)
 
Vejam só, isto é de 23 anos atrás. Em seu livro, André Schiffrin insiste várias vezes em lembrar que muitas linhas editoriais “culturais”, “literárias” não dão prejuízo, pelo contrário: dão lucros modestos, mas constantes. O problema é que os executivos lá do topo analisam as planilhas e concluem que aquele selo, com a “capacidade instalada” que tem, poderia dar lucros 3 ou 4 vezes maiores, se publicasse outro tipo de livro. E é nisso que dão com os burros nágua.
 
Diz Schiffrin:
 
Durante muitos anos, os livros da Vintage, ainda em seu formato menor, custavam em média 1,95 dólar. Aumentando ligeiramente o tamanho dos livros, a Vintage elevou seus preços para dez dólares ou mais. Eu me lembro de, na época, argumentar que isso iria reduzir muito o número de pessoas dispostas a comprar os novos livros da Vintage. Disseram: “Você talvez esteja certo, mas os dólares continuarão os mesmos”. Essa frase me pareceu o marco da transição da velha ideologia para a nova. A idéia de que um livro devia ser barato para atingir o maior público possível estava sendo substituída por decisões contábeis, preocupadas apenas com o total recebido. Não era apenas uma questão de ganhar dinheiro ou evitar perdas – o catálogo da Vintage, composto pelos melhores títulos dos catálogos de Random House, Knopf e Pantheon, já garantia um substancial lucro anual. A regra passara a ser que o lucro por livro tinha de ser o maior possível.

 
É um processo lento mas constante. 

Diz Schiffrin que “na década de 1950 Londres tinha cerca de duzentas editoras significativas. Hoje [2000] há menos de trinta.” 

Um cálculo parecido com o de Samuel R. Delany em About Writing (Wesleyan University Press, 3005), numa entrevista concedida em 1998:
 
O fato é que em ’79 cerca de oitenta editoras independentes floresciam em New York City. Hoje, dependendo do critério que se adote para calcular, há somente nove. Algumas mudanças simplesmente catastróficas deram um novo formato à matriz do mercado da edição norte-americana em geral, nos últimos vinte anos. (trad. BT)
 
É um movimento lento, geológico, mas que não exclui o surgimento incessante daquilo que mantém a cultura viva e renovada: as muitas pequenas editoras, as muitas pequenas livrarias, os muitos pequenos autores.   
 
 
 
 
 





sexta-feira, 15 de julho de 2022

4843) A resposta na ponta da língua (15.7.2022)

 


Quando os Beatles desembarcaram pela primeira vez nos EUA, em 1964, deram mil coletivas de imprensa. Um jornalista perguntou:
 
– Por que a música de vocês deixa as pessoas tão excitadas?
 
Houve um segundo de hesitação no grupo, e John Lennon disse:
 
– Não sabemos. Quando descobrirmos, vamos criar um novo grupo e ser empresários deles.
 
Os Beatles tinham uma enorme capacidade de improvisar respostas ao vivo. Não eram as respostas espertas, ensaiadinhas, das coletivas de hoje em dia. Hoje, todo artista tem alguns publicitários criativos em sua equipe, que lhes entregam uma lista das prováveis perguntas e das respostas espirituosas que ele deverá decorar para “ter na manga”.
 
E nos “encontros com a imprensa” de hoje, há, muitas vezes, um jornalista arraia-miúda a quem foi fornecida uma pergunta para ele fazer na hora H, servindo de “escada” ao artista, em troca de dois convites para o show. (Se eu fosse empresário de artista rico, subornaria jornalistas sem o menor remorso. Quem se vende é porque não vale nada.)
 
Os ingleses chamam de repartee a frase espirituosa dita num repente. Funciona tão bem que dá a impressão de que a pergunta (que era uma provocação) fica parecendo uma “deixa” para o cara exibir a resposta que trazia prontinha.
 
Não trazia. É improviso mesmo. Naquela mesma coletiva, alguém pergunta: “Quando vocês vão cortar o cabelo?” e George Harrison responde de bate-pronto: “O meu eu cortei ontem.”
 
É resposta decorada? Não. Provavelmente era verdade. Claro que os Beatles aparavam aquelas trunfas, principalmente antes de estrear uma turnê grande. E muitas vezes a verdade é a última coisa que se espera numa resposta assim.
 
O improviso espirituoso não é apenas uma resposta inteligente, é uma resposta que depende totalmente do modo como a pergunta foi feita. Muitas vezes a graça implica em distorcer o sentido de algum termo da pergunta. Nessa mesma coletiva (ou em outra) perguntaram aos Beatles: “Como vocês acharam a América?”. A pergunta, é claro, indagava sobre o estado de espírito dos fãs, à sua chegada. Lennon respondeu: “Virando à esquerda quando chegamos na Groenlândia”.



Bob Dylan, na sua fase sarcástica e sardônica de 1966 (aquilo que hoje está sendo chamado de “The Cate Blanchett Period”) era outro que não deixava por menos. Um pomposo entrevistador perguntou-lhe uma vez:
 
– Você tem idéia do alcance de suas canções?...
 
E ele disse:
 
– Olhe, tem as que alcançam três minutos, outras alcançam cinco, e outras, acredite se quiser, alcançam os dez ou doze minutos.
 
Muitos dos nossos melhores repentes, essas respostas instantâneas capazes de guilhotinar uma pergunta em um segundo, surgem assim porque já tínhamos pensado naquela pergunta e em nossa cabeça se formou, se não a resposta pronta e definitiva, pelo menos uma idéia de como essa resposta deveria ser.
 
Uma expressão francesa, “esprit d’escalier”, indica aquelas ocasiões melancólicas em que essas respostas arrasadoras, espirituosas, só nos ocorrem quando estamos na escada, indo embora da festa. Não importa. Perguntas embaraçosas ou provocativas costumam se repetir. A gente guarda a resposta boa. Eu já preparei uma resposta assim e guardei por mais de 25 anos; quando a pergunta veio, tirei-a do bolso sem pestanejar, e a mesa inteira aplaudiu.



G. K. Chesterton tem um ótimo livrinho de contos interligados, The Club of Queer Trades (1905), em que os personagens inventam profissões extravagantes, maneiras bizarras de ganhar a vida em Londres. A certa altura, menciona-se um cara que é “o Shakespeare do dito espirituoso”, a alma das festas, o cara que tem sempre uma frase engenhosa para desarmar o interlocutor.
 
Conto vai, conto vem, ficamos sabendo no final que esse cara espirituoso é apenas um dos clientes de um sujeito que prepara conjuntos de frases-e-respostas, e numa ocasião social qualquer, combinadamente, dá as “deixas” para que o cliente (qualquer um que pague bem) pronuncie sua frase de espírito e faça o maior sucesso. É a profissão dele: Facilitador de Respostas Espirituosas.
 
“Armações” à parte, a resposta de bate-pronto existe, e cada um de nós já presenciou inúmeros exemplos. Políticos mineiros são especialistas nisso: Tancredo Neves, Benedito Valadares, José Aparecido de Oliveira...


(busto de Antonio Marinho em S. José do Egito, foto BT)
 
Os cantadores nordestinos são, além de poetas, repentistas, ou seja, são capazes de raciocínio rápido e resposta perfeita. Conta-se que o mestre Antonio Marinho, de São José do Egito, tinha um compadre chamado Irineu. Um dia estava em casa e a esposa do compadre lhe surge à janela da rua, perguntando:
 
– Compadre Antonio, o senhor viu Irineu?...
 
E ele:
 
– Não. E fôro?...
 
É o tipo da coisa que só é engraçada na pronúncia dialetal sertaneja. “O senhor viu irem n’eu? (=irem em mim)?” – “Não!... E foram?!...”
 
O genro de Antonio, o famoso Lourival Batista, era um dos gatilhos-verbais mais rápidos do Nordeste. Lá vinha ele caminhando despreocupado pelas ruas de São José, quando um conhecido o saudou de longe, acenando da calçada oposta:
 
– Tudo bem, “Lourivarrr”?...
 
E ele, impassível:
 
“Regulal”...
 
São gracejos que ninguém poderia “trazer pronto” para responder no momento adequado; é algo concebido e executado no espaço de segundos. Nenhum de nós tem a verve repentística de Marinho ou de Louro, mas pode se dedicar à nobre arte de prever perguntas e preparar respostas.
 
E nesse aspecto lembro um caso contado pelo meu saudoso amigo Arievaldo Vianna, que vinha cruzando uma praça e dele se aproximou um doido que perambulava por ali pedindo dinheiro. O doido chegou e disse:
 
– Me dê uma grana pra provar que está com Deus. Se Deus estiver do seu lado, um bandido bota a arma na sua cabeça, aperta o gatilho, a arma encrenca e não dispara.
 
Arievaldo:
 
– Sim, mas e se a arma for novinha, e disparar?
 
O doido:
 
– Então é porque você estava pronto pra ir ao encontro de Deus!