segunda-feira, 15 de julho de 2019

4484) A mecânica e os adornos (15.7.2019)




Por que motivo certas histórias funcionam?  Em grande parte é por uma mecânica interna, por um conjunto de agentes e de funções que por si só envolve e surpreende o leitor, e que pode ser repetido muitas vezes, variando-se os “adornos”: personagens, época, ambiente, etc.  

Livros tão distintos quando o Dom Quixote e Madame Bovary seguem a mesma mecânica: uma pessoa se deslumbra com o mundo dos romances, tenta viver de acordo com eles, e só encontra decepções.

Inúmeras outras histórias poderiam ser escritas tendo esta situação como ponto de partida. Seriam plágio?  Não, se trouxessem uma dose suficiente de novas informações, novas variantes, outra verdade humana, outra força literária.  

Plagiar é imitar sem introduzir informação nova.

Um conto como “Missa do Galo” de Machado de Assis repousa principalmente numa situação de não-entendimento.  Seu enredo: um adolescente fica a sós durante a noite com a dona da casa onde se hospeda, uma mulher de 30 anos que é traída pelo marido. 

A conversa entre os dois é uma conversa que não ata nem desata.  O leitor é induzido a pensar que a mulher tem vontade de trair também o esposo mas prefere que o rapaz tome a iniciativa.  Ele, que é interiorano e um pouco ingênuo, não entende, e o conto se encerra sem que nada aconteça.  Numa história assim, a época, o meio social, o perfil psicológico dos personagens, tudo é adorno.  A mecânica nua e crua é: A assume certas atitudes, B não as entende, e C (o leitor) percebe tudo.

Podemos usar essa mecânica transpondo-a para outra situação.  Em vez de um rapaz inexperiente e uma mulher adulta, podemos pensar num homem maduro e uma garota esperta; em vez de 1890 no Rio, a história se passa em 2019 em Salvador.  

Ele é metido a bonitão, mas é meio conservador. A garota tem 20 anos, é liberada, faz o que quer; é sua aluna, ou amiga de sua filha. Os dois passam algumas horas a sós, conversando, e somente o leitor percebe que a menina dá todas as pistas de que quer alguma coisa com ele, chega a ser irônica, e só ele não percebe.  Não por inexperiência (como em Machado), mas porque a linguagem e os códigos de sedução das duas gerações são incompatíveis.

E no fim do conto ele se queixa de que ninguém sabe o que querem os jovens de hoje.

Alguém pode questionar: isso é plágio?  De um modo geral, não, principalmente se os novos adornos (as partes exteriores, descartáveis da história) tiverem riqueza bastante para se imporem sobre a mecânica antiga. 

Percebemos um plágio justamente quando, ao invés da mecânica, são os adornos que são imitados.  Alguém pode escrever uma história que se passa em 1890, entre um rapaz e uma mulher casada, na noite da Missa do Galo, enquanto o rapaz espera amigos que irão com ele à missa.  Não há qualquer clima de sedução entre os dois: a mulher e o rapaz ficam discutindo, sei lá, a situação política do Segundo Reinado.  E no entanto inúmeros leitores iriam imaginar que esta história é um “plágio” da história de Machado, quando na verdade é o primeiro exemplo acima que mais se parece com ela.

Muitos escritores têm facilidade para esvaziar todos os adornos de uma história alheia, perceber qual é sua mecânica, e utilizá-la numa história completamente diferente.  Se a mecânica for a mesma, então, isto é plágio?  Depende.  Muitas histórias têm uma mecânica interna muito simples, nada fora do comum, e se trocarmos os adornos há uma grande possibilidade de que os novos adornos (outra época, outra situação profissional, personagens com outra idade, outro perfil, outras características) tenham peso bastante para que a nova história possa ser considerada original. 

Na verdade, é nessas características (e na riqueza estilística) que autores como Machado de Assis baseiam suas histórias, e não na mecânica simples do enredo.  É possível que Machado tenha escrito “Missa do Galo” tendo em mente um episódio qualquer que leu de passagem no romance de alguém e que resolveu pegar emprestado para explorar a seu modo. Todo autor “original” faz isto.

Uma grande parte das obras literárias usa a mecânica de uma história já existente, mudando os adornos; ou prefere usar os adornos e dar-lhes uma mecânica completamente diversa. 

James Joyce, em Ulisses, utilizou as aventuras do herói homérico como mecânica básica, mas ao ambientá-las em Dublin e carregá-las de experiências linguísticas obscureceu essa mecânica a tal ponto que se tivesse intitulado o livro Um dia em Dublin pouca gente iria perceber a alusão ao clássico de Homero.

Quando a mecânica de uma história chama demais a atenção, é perigoso reutilizá-la, porque isto seria percebido de imediato. 

Os leitores de romances policiais sabem que há um livro de Agatha Christie em que o criminoso é justamente o personagem que narra a história, e que durante toda a narrativa finge ser inocente. Foi uma reviravolta que causou comoção e polêmicas na época de lançamento do livro, e já se disse que era um recurso que só poderia ser utilizado uma vez e nunca mais. 

No entanto, Jorge Luís Borges tem pelo menos dois contos que usam o mesmo recurso, mas em circunstâncias tão diferenciadas que a revelação final não se torna o objetivo do conto, e sim uma pequena surpresa que lança uma luz diferente sobre coisas mais importantes.  (Não direi aqui os títulos das obras; não quero privar o leitor do prazer dessa pesquisa.)


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (Editora Segmento, SP), número 74, dezembro de 2011)