quarta-feira, 27 de junho de 2018

4361) Sagarana: A hora e vez de Augusto Matraga (27.6.2018)






“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é o derradeiro (e para muitos o melhor) conto do livro Sagarana (1946), o primeiro e possivelmente o mais acessível dos livros do autor.

Tenho falado nestes meus comentários sobre Sagarana que um dos temas gerais do livro, expresso numa epígrafe na sua abertura, é o da “ida e volta”. Está na epígrafe que diz “for a walk and back again”. Que exprime, de certo modo, o retorno mental de Rosa ao seu sertão de origem, mesmo morando longe.

O conto “Matraga” conta a história da “morte” simbólica de um valentão e sua “ressurreição” como herói. É a história de um homem que é uma coisa, transforma-se em outra, e no fim volta a ser o que era, mas valorizado por essa transformação.

Se algum professor precisar de um exemplo literário para explicar o conceito de “tese / antítese / síntese”, este conto serve como um dedo numa luva.

Já na primeira fase do conto (tese), ficamos sabendo que Matraga (que na verdade chama-se “nhô” Augusto Esteves) é menino mimado, agroboy que cresceu mandando e desmandando, mas hoje tem a vida em pandarecos:

Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio. (...) Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.



Este balanço ocorre na mente de D. Dionóra, a esposa em vias de separação, por não aguentar mais as brutalidades dele. Ela vai morar com um pretendente, e no mesmo dia os capangas de Nhô Augusto se passam para o lado do Major Consilva, velho inimigo da família. E a quem cabe ordenar a surra homérica, e o castigo final:

“Arrastem pra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.”

Assim é feito, e Nhô Augusto, os ossos todos partidos a pauladas, recebe o ferro em brasa “...com a marca de gado do Major – que soía ser um triângulo dentro de uma circunferência – e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.

Dado por morto após rolar numa ribanceira, ele é recolhido por um casal de pretos num casebre ali perto.

Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca do ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso.

Começa então a convalescença física e a purificação moral. Depois de desmoralizado o valentão e derrotado o brabo, ficou somente o Nhô Augusto de dentro, fraco e infeliz. O processo dura “muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira.”

E essa reconstrução íntima, essa antítese, se dá após uma depressão profunda em que Nhô Augusto chora, lamenta, se abate, se envergonha de tudo que fez. E volta a rezar. Volta, porque, como dizia um tio velho de sua esposa, “quem criou Nhô Augusto foi  a avó... Queria o menino pra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha”.

Nhô Augusto, já sarado, resolve pegar o casal de pretos velhos e ir morar com eles num ranchozinho que tinha num lugar distante, onde ninguém o conhecia.

E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.
(...)
E, pois, foi por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e até hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.

Este trecho é outra virada-de-esquina decisiva no conto, e o autor a anuncia com a devida pompa. Porque nos parágrafos seguintes ele descreve como aquele vilarejozinho esquecido onde Nhô Augusto vivia encafuado chega de passagem um bando de jagunços armados, tendo à frente

...o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.

O encontro com esse chefe jagunço (que tem algo do encontro entre Riobaldo e Zé Bebelo no Grande Sertão) vai soprar na alma de Nhô Augusto as brasas dormidas do fogo guerreiro. Ele convida os jagunços à casa modesta onde vive com os pretos velhos, serve comida, obsequia, e entre uma conversa e outro Joãozinho Bem-Bem descobre só de olhar que quem está ali na frente é um dos seus.


É nesse trecho da história que surge a famosa “Cantiga Brava”, musicada por Geraldo Vandré:

O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre
bala de metralhadora...

Despedem-se, e partem.

E com isto começa a surgir das ruínas de Nhô Augusto Esteves o novo Augusto Matraga. Este sobrenome, aliás, abre e fecha o conto como um par de parênteses: só aparece na primeira frase do conto, e depois no final.

O nome matraga é geralmente comparado com o substantivo matraca, que é aquela peça de madeira ruidosa e sacolejante com que se faz barulho em certas procissões; é também um pássaro. Como pássaro, acaba me lembrando as maitacas, ave migratória e barulhenta que, revoando por cima da cabeça de Nhô Augusto numa manhã linda, anos depois de sua provação e ordálio, parecem dizer-lhe: “Isto aqui terminou, agora é preciso partir”.


É um momento de epifania do conto, um momento de anunciação e ruptura.

Mas afinal as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera ver.

Ele sente o chamado do mundo, despede-se do casal de velhos, prepara um jumentinho e se faz na estrada. Como em tantas histórias de Rosa, seguem-se encontros rápidos, passageiros, pitorescos. Até que Nhô Augusto chega ao arraial do Rala-Coco, e descobre que quem está arranchado ali é Joãozinho Bem-Bem com seu bando.

Acontece o reencontro, amistoso, respeitoso. E mais na frente, minutos depois, o confronto, quando Joãozinho Bem-Bem, para vingar a morte de um dos seus homens, autoriza morte e estupro contra uma família local. E Nhô Augusto:

 — Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...

Este conto é um dos grandes momentos épicos da obra de Guimarães Rosa, pela simplicidade de meios e pela vagarosa maturação do caráter do personagem principal. Um processo de superposição de camadas de experiências, de pensamentos, de situações, que somente o formato da noveleta proporciona. Não se conta uma história como esta no formato que o autor viria a usar depois em Tutaméia.



(As imagens são do filme A hora e vez de Augusto Matraga, Roberto Santos, 1966)



  









domingo, 24 de junho de 2018

4360) O conto e o romance (24.6.2018)



(ilustração: pintura de Mike Stilkey)

Uma discussão recente da Internet trouxe à baila (eu estava ansioso para usar esta expressão) a questão da diferença entre o conto e o romance.

Muita gente pensa que a diferença entre conto e romance é uma diferença de tamanho, como a diferença entre duas matrioskas.

(Para efeito dos comentários abaixo, é bom deixar logo clara uma distinção: cada obra literária tem seu próprio formato, seja conto ou romance. Somente por aproximação estatística podemos dizer que, p. ex., dois contos de Sherlock Holmes se baseiam na mesma estrutura, ou que dois romances de José de Alencar se baseiam na mesma estrutura.)

A diferença entre o conto e o romance é uma diferença que só num certo sentido tem a ver com tamanho.

É como, por exemplo, a diferença entre um apartamento e um castelo medieval. O apartamento tem sala, dois quartos, cozinha, banheiro, área de serviço, e está cercado (lateralmente, e em cima, e embaixo) por estruturas idênticas.

Um castelo medieval não é isso aí “só que em tamanho maior”. É um conjunto de outras estruturas que são só suas; semi-independentes, interligadas, funcionando mais ou menos em conjunto.

Um poeta simbolista com laivos científicos diria talvez que a diferença entre o romance e o conto é a diferença entre o carvão e o diamante. O elemento é o mesmo, mas a estrutura é diferente.

Edgar Allan Poe, um dos criadores do conto moderno, propôs duas regras: 1) o conto deveria ser medido pela intensidade do efeito que produz, e tudo que há nele deve contribuir para esse efeito; 2) sua leitura deve ser ininterrupta, e para isso sua extensão ideal deve proporcionar uma leitura contínua de meia hora a duas horas de duração.

Um conto, por essa teoria, deve ser um mergulho. O leitor mergulha na primeira frase, e emerge ao final da última frase.

Um romance, é claro, não pode ser assim. Se o conto vale pela intensidade do efeito, o romance deve valer pela amplitude e profundidade dos efeitos que produz. Efeitos em níveis simultâneos, que o leitor percebe, depois se assenhoreia deles, e vai curtindo ao longo da leitura: linguagem, enredo, personagens, ambiente, etc.

Um conto é como um concerto de piano: há apenas um instrumento nos dizendo alguma coisa, nossa atenção se concentra dele, num único canal, e o segue do começo ao fim. Um romance é como uma peça orquestral, onde (idealmente) percebemos os efeitos produzidos pelo naipe de metais, pelo naipe de cordas, pelas percussões, pelo pianista que sola, pelo coral, etc.  Ou seja: acontecem muitas coisas simultaneamente, em “canais” paralelos, e temos que acompanhar todas elas.

A relação do leitor com o conto (esse conto sonhado por Poe) é uma espécie de investida, assalto, mergulho.  Já a sua relação com o romance é o de uma convivência, uma escavação vagarosa num sítio arqueológico onde a enormidade do monumento que se exuma não nos deixa cegos ao lavor de cada detalhe.

Se precisamos de uma relação visual entre o conto e o romance, mais do que a diferença de tamanhos eu diria que há uma diferença de espessura, onde o conto só tem uma camada e o romance tem várias, superpostas.

Ou melhor: uma camada é meio sem sentido, porque o conto tem sua partiturazinha orquestral, tem personagem, linguagem, atmosfera, voz narrativa. São coisas muito próximas, mas são independentes. Tem autor (entre os grandes, os mestres) que é excelente para ação e descrição, mas o vocabulário é meio descolorido. Ou então o diálogo é brilhante, mas os personagens parecem ecos de histórias relidas muitas vezes, ou descrições de personalidades não concebidas por inteiro.

Melhor dizer que quanto menos “camadas” nesse sentido houver num texto, “mais conto” vai ter ali. Ele se aproxima do polimento milenar das lendas, das fábulas, dos mitos e das anedotas de mesa de bar. A história em si, mola retesada, no mais aerodinâmico de sua energia, personalizada, única. A história valendo por tudo.

E quanto mais camadas houvesse, oscilaríamos para “mais romance”: personagens às dezenas, cada qual trazendo sua afinação ou sua dissonância ao conjunto. Enredo, no sentido de história pura. Muitas camadas.

É possível um autor acertar totalmente em algumas camadas e errar em outras. Todo gênio tem limitações. Borges recuava diante do romance (e podemos imaginar que ele criou toda uma estética em torno disso). Garcia Márquez não gostava de escrever diálogos. Kafka não acabava coisa nenhuma.

Voltando ao conto: com seu minimalismo de mola comprimida, o conto é algo que quer disparar dentro da mente do leitor. São assim os contos admirados e praticados por Borges, Poe, Cortázar, etc.: “A Pata do Macaco”, “August Heat”, “A Profecia”, “Casa Tomada”, “O Jardim das Veredas Que Se Bifurcam”, “O Gato Preto”...

O romance quer levar o leitor numa viagem, literalmente, por ambientes diferenciados, núcleos mais ou menos autônomos de personagens com sua própria narrativa interna. Diferentes tempos, diferentes ambientes, cada um deles requerendo uma partitura própria. O romance é uma convivência. Suas histórias envolvem dezenas de personagens. A prosa deve ser clara, fluida, energética, mas o que prende muito leitor-de-romance é essa descortinação vagarosa de uma tapeçaria vasta e plural.

É claro que a cada geração aparecem autores querendo questionar a regra, desmentir a regra.  Curiosos com a possibilidade de produzir um romance com 200 páginas e uma só camada, ou um conto de três folhas com mais camadas do que Tróia.

Não importa o que seja a literatura, coexistirão os escritores que como Truman Burbank querem tocar com a mão no limite do universo conhecido. E existem os que querem apenas contar uma história e ter a platéia na mão.

Os manuais de roteiro de linha meio hollywoodiana falam muito que “história é conflito”.

Digamos que seja. Se o romancista lida com décadas e multidões, ocasiões plausíveis para conflito não lhe faltam. No conto, o conflito é nesse formato de mola comprimida e disparada: a projeção de um elemento de encontro a um outro, e o choque resultante. Ou então disparado com a intenção de cumprir uma trajetória prevista, mesmo sem compreendê-la. Ou (como nos contos citados acima) aquela sensação de uma instauração inevitável de uma simetria ameaçadora e a impossibilidade de furtar-se a ela, mesmo sem compreendê-la.

Um conto (esse conto sonhado por Edgar Poe, e que ele soube exemplificar tão bem na prática) é como um salto de bungee-jump. O romance é a longo prazo, é um jardim cheio de canteiros cujo crescimento a gente acompanha, é um painel imenso que surge saindo de dentro de si mesmo.













quinta-feira, 21 de junho de 2018

4359) Oito ilusões (21.6.2018)




(ilustração: Ahnet Richard)

1
Betinho Vilaverde, 21 anos, estudante, menino-prodígio musical, meio nerd, meio tímido, na noite do seu aniversário de maioridade foi convidado por um grupo de colegas do curso de Direito para um jantar comemorativo no melhor restaurante da cidade, onde depois de vinhos e discursos elogiosos ele, ainda eufórico diante daquela primeira incursão na vida noturna, acabou se vendo, madrugada adentro, num terraço discreto onde batia o luar, numa mesa com quatro casais atracados aos beijos enquanto ele, de violão em punho, desfiava seu repertório, desde “Samba em Prelúdio” até “Here, there and everywhere”.

2
Lindaura Dias da Costa, 41 anos, dona de casa em Uberlândia (MG), tem uma tia idosa que mora em Belo Horizonte numa casa com dez cachorros e quatro criadas. A tia vive de uma pensão de montepio que data da Era Vargas, e mal se mantém, mas Lindaura crê firmemente que quando Dona Eulália (pois este é o seu nome) passar desta para melhor deixará para ela, Lindaura, a casa, a mobília, e todo o dinheiro que hipoteticamente está entesourado em algum colchão ou cofre-forte. Esse dinheiro inexiste; a velha mal sustenta o próprio canil, mas esse sonho dá a Lindaura forças para persistir na batalha, ainda mais num tempo como o de hoje.

3
Valtemir Ferreira dos Santos, 28 anos, auxiliar de escritório, voltava para casa num domingo à noite, no Grajaú, quando ao pegar uma rua lateral viu dois caras empurrando um carro enguiçado, ia até passar direto, mas um deles disse, “ajuda aí, campeão!”, e ele que estava há dois meses numa academia, julgou ser este o momento adequado para demonstrar seus recentes superpoderes, e aplicou os bíceps à traseira do veículo, para daí a menos de um minuto ver uma viatura da PM dobrar a esquina cantando pneu, parar junto com uma freiada e com o grito “todo mundo encostado no muro!” e ele abrir seu sorriso mais amarelo para dizer: “olha, eu tava só empurrando, viu?”.

4
José Carlos Belarmino Padilha, 61 anos, dono da cadeia de lojas Girassol, presidente da Associação Comercial do município, um belo dia (uma bela noite), numa mesa discreta na boate Feelings, tomou coragem depois do quinto uísque e segredou, à beldade de bustiê, minissaia e botinhas que pousara na cadeira ao lado, alguma ânsia secreta que lhe palpitava no peito desde a adolescência, e experimentou a epifania de vê-la afastar a orelha do seu bigode grisalho, sorrir, passar de leve pelo rosto dele as unhas cobertas de esmalte fúcsia, e dizer com sorriso maternal: “Não tem problema, bem, eu também adoro.”

5
Vivi da Cunha Silveira, 9 anos, estudante, recebeu da mãe uma nota de 50 reais e a incumbência de trazer da farmácia algo anotado num papel, mas logo depois da esquina viu um belo rapaz de olhos azuis chorando e aproximou-se compadecida, sabendo então que era um príncipe europeu cujo trono fora invadido por um cruel país beligerante, e agora estava precisando de dinheiro para comprar a passagem de ônibus de volta à capital onde tentaria recuperar a Presidência da República, uma história que a deixou de lágrimas nos olhos e a mãe de olhos fuzilantes e mãos nos quadris dizendo: “diga logo que perdeu, você acha mesmo que eu sou assim tão besta?!”.

6
Paulo Roberto Barbosa Lemos, 61 anos, professor no curso de Letras da USP, certa vez fez uma viagem na ponte aérea SP-Rio ao lado do escritor Rubem Fonseca, tendo os dois conversado sobre assuntos gerais, entre eles o uso de armas brancas para a prática de assassinatos; um ano depois deu-se a publicação do romance “A Grande Arte”, cuja leitura proporcionou a Paulo o deslumbramento revelatório, que dura até hoje, de ter dado ao grande ficcionista o tema de sua obra-prima, mal sabendo ele que na época daquele voo o livro já estava praticamente concluído.

7
Maura dos Santos Villarim, 61 anos, professora aposentada em Blumenau, grande leitora de Agatha Christie e de Jane Austen, escreve há décadas um volumoso diário íntimo com reflexões e revelações que jamais teria coragem de publicar em vida, mas imagina que após sua morte os filhos descobrirão tudo aquilo, maravilhar-se-ão, e providenciarão o lançamento que irá catapultar para a fama póstuma a tímida professora; mal sabe ela que quando morrer, em 6 de novembro de 2027, os herdeiros jogarão aquela tralha toda na lixeira, e a Natureza se encarregará do resto.

8
Suyung N-Kat-48, habitante de Bgront-bg, planeta arquipélago no sistema das Plêiades, passou mais de doze wytungs à espera de que aparecesse algum randomjob capaz de assegurar sua sobrevivência e a de quatro garynths, dois markumbellis, três e meio sempawqs e uma vrimbuliana que eram seus dependentes; coube-lhe, contudo, a dúbia honra de ser o único de sua categoria numérica a morrer de fome nos últimos trinta e três foltaimes desde a Revolução do Prego Envenenado.











segunda-feira, 18 de junho de 2018

4358) Ariano Suassuna e os cossacos de Kuban (18.6.2018)




Ariano Suassuna era muito escrupuloso em suas declarações, por mais mirabolantes que fossem. E tinha com a mentira uma relação muito curiosa. Dizia: “É um erro muito grave mentir para prejudicar outras pessoas ou para ganhar benefícios para si mesmo. A gente só deve mentir por amor à arte”.

Ele gostava de contar uma recordação de seu tempo de menino, em Taperoá. Estava ele andando por um descampado quando ouviu um tropel de cavalos se aproximando. Quando o grupo de cavaleiros chegou, levantando poeira, e entrou na rua principal, ele não acreditou no que estava vendo.

Era um bando de cavaleiros cossacos, vestindo aquelas roupas tradicionais dos cossacos russos. Ele pensou a princípio que fossem atores fantasiados. Os cavaleiros pararam, e foram cercados pela população. Ele correu pra perto pra ver o que era.

Eram russos de verdade!  Falavam uma mistura de russo e português, e Ariano ficou sabendo que era um grupo chamado “Os Cossacos de Kúban”, ex-soldados russos fugidos da Guerra Civil que varreu o país depois da Revolução Soviética. (Não dou muito tempo para que apareça na Internet alguma versão de que Ariano dizia ter conhecido “cossacos cubanos” em Taperoá.)

Tendo fugido pela Europa e depois pelo mundo, acabaram chegando ao Brasil. Apresentavam-se fazendo aqueles números de acrobacias equestres em que os cavaleiros, em pleno galope, saltam da sela sem largar as rédeas, batem com os pés no chão, pulam de volta para a sela, depois pulam para o lado oposto e assim por diante.

Ariano lembra que o chefe do grupo chamava-se General Ormanov e mancava de uma perna, porque na Guerra Civil fora ferido numa batalha do Exército Branco (contra-revolucionário) contra o Exército Vermelho, comandado por Leon Trotsky.

Esse encontro marcou Ariano para sempre, e é um exemplo daqueles casos em que a realidade é mais estranha do que a ficção, porque a ficção tem uma certa obrigação de ser plausível, e a realidade não, a realidade apenas acontece.

Se alguém escrevesse um romance regional paraibano dizendo que encontrou na rua um grupo de cossacos russos, seria acusado de “falta de autenticidade”. Como o encontro aconteceu de fato, Ariano anos depois o usou para evocar a Estranha Cavalgada do Rapaz do Cavalo Branco, o episódio de abertura da primeira parte do Romance da Pedra do Reino.

Eu passei muitos anos tendo conhecimento dessa história, e não tenho motivos para pensar que fosse invenção dele. Recentemente, encontrei por vias indiretas uma confirmação.

O livro Em Memória de João Guimarães Rosa (Rio: José Olympio, 1968, 256 págs.) é uma publicação organizada logo após a morte do escritor mineiro. Contém seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, uma porção de depoimentos e textos em sua homenagem (Graciliano Ramos, Carlos Drummond, Gulherme de Almeida, etc.) e os discursos da “Sessão da Saudade” com que a ABL o homenageou em 23 de novembro de 1967, poucos dias após seu falecimento.



É um livro precioso, com muitas fotos, fac-símiles de textos e manuscritos, ilustrações de Poty e Aldemir Martins.  A Academia bem poderia promover uma reedição.

Nele, Renard Perez contribui com um “Perfil” do autor mineiro, reconstituindo em traços gerais sua biografia.

Em 1934, Rosa presta concurso para a Força Pública, e fica estacionado em Barbacena (MG), como oficial médico do 9º. Batalhão de Infantaria. Pratica a medicina, e lê muito. E ali se dedica a aprender idiomas estrangeiros, um dos seus estudos preferidos.

Diz Renard Perez:

E através de um russo branco que se encontrava meio perdido por aquelas bandas, como soldado da polícia militar de Minas, pôde confrontar pela primeira vez a sua pronúncia. Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do exército czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. (pág. 29)

Ora, em 1934 Ariano tinha 7 anos de idade, e sua família tinha se fixado em Taperoá em 1933. Foi justamente essa a época em que teria acontecido seu encontro em Taperoá com o grupo de Cossacos, que viajava pelo país como uma “trupe andarilha”.

De “Juban” para “Kuban” a diferença reside apenas num detalhe de alfabeto e pronúncia. O Coro dos Cossacos de Kuban foi criado em 1811, e sobre o povo propriamente dito (uma das etnias absorvidas pelo Império Russo e depois pela URSS) há esse descritivo verbete da Wikipedia:


E aqui uma apresentação contemporânea do Coro:


São muitos os laços pessoais e literários entre Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, e este episódio ensolarado e cavalariano não é o menor deles.

Quando nós estivermos na guerra
voarei ao encontro das balas no meu cavalo preto;
mas aparentemente a morte não é para mim,
e de novo o meu cavalo preto me traz de volta do fogo.
(Coro dos Cossacos de Kuban)


(Os Cossacos de Kuban, em foto de 1937)








quinta-feira, 14 de junho de 2018

4357) Meus planos para a Copa do Mundo (14.6.2018)



(ilustração: Alison Mees)

Vieram me perguntar se eu ia torcer pela Seleção Brasileira nesta Copa do Mundo. Eu respondi: “Vou torcer para que Salah fique bom da contusão, jogue, o Egito enfrente a Espanha e ele faça o gol da vitória”.

Para quem não sabe: Salah é o jogador egípcio que foi deslealmente machucado por um jogador espanhol, no jogo decisivo da Liga dos Campeões.

Quanto à Seleção Brasileira, desejo-lhe boa sorte, pelas inocentes alegrias que suas prováveis vitórias darão aos que encontram, nessas vitórias, uma razão para festejar.

Li dias atrás uma coluna de Luiz Antonio Simas, no Globo, onde ele cita o folclórico sambista Beto Sem Braço: “O que espanta a miséria é festa”. É uma grande verdade; e é uma frase que só vale na boca de quem sabe o que é a miséria. Nós, do lado de fora, podemos usá-la apenas entre aspas.

Vou acompanhar a Copa, sim. Vou ver os jogos no bar da esquina ou na casa dos amigos. (Não tenho mais televisão em casa.)

Quem se der o trabalho de vasculhar meu blog verá o quanto já me deixei arrastar pelo entusiasmo futebolístico. Tanto em função dos meus times de coração (Treze, Flamengo, Sport, Atlético Mineiro) quanto pela Seleção.

Continuo gostando de futebol. Gosto de ver “the beautiful game”, que nós brasileiros estamos praticando cada vez menos. O futebol bem jogado é uma mistura de balé e xadrez: o balé dos jogadores e o xadrez dos técnicos. Mas existe uma versão contemporânea que é um misto de arruaça e burocracia, respectivamente.

Gosto de ver as grandes decisões, as situações-limite em que pessoas de talento fora do comum dão tudo de si para conquistar um título numa disputa leal.

E gosto de ver quando um daqueles joguinhos chinfrins de meio de semana, noite chuvosa, dois times da série C, se transforma – por circunstâncias do momento – numa batalha épica de emoções fortes, de heroísmo, de façanhas impossíveis.

O bom do futebol é que mesmo no jogo mais medíocre entre os times mais fuleiros pode surgir a qualquer instante um lance perfeito, inesquecível, tão extraordinário quanto o gol de bicicleta de Gareth Bale naquela mesma final da Liga dos Campeões. É como na poesia: no meio de um livro totalmente banal pode brotar a qualquer instante um verso de gênio. Por isso a gente não desiste.

O futebol está cada vez mais se transformando em “Big Business” – um Business que só interessa a quem é Big. Não é o meu caso. Gosto do lado plebeu do futebol, porque sou de origem plebéia. Pra ser sincero, futebol só presta com laranja chupada ou bola de meia. Esse negócio de chuteira e bola de couro estragou o jogo. (Tou brincando.)

Futebol está no sangue da gente lá em casa. Fui jornalista esportivo com 16 anos, fui membro dos Esporões do Galo (a torcida (des)organizada do Treze), fui secretário do Treze (era eu quem datilografava os contratos e pagava o bicho dos jogadores, na gestão Zé Agra). Ainda hoje sou capaz de me interessar por um videoteipe de Ituano x Bragantino às 3 da manhã.

A Copa de 2014 contribuiu para arrefecer esse meu entusiasmo, sem extingui-lo. Não por causa do 7x1, que pra mim foi uma derrota previsível (apenas o placar foi “um tanto elástico”, como dizem os coleguinhas da crônica). Mas naquela vez parece que tudo que tem de ruim no futebol se juntou.

Foi a rapinagem deslavada, as propinas, os conchavos políticos, a repressão aos protestos, os elefantes brancos e inúteis que estão aí até hoje dando prejuízo dos Estados que caíram no conto do vigário das “coisas de Primeiro Mundo”. Millôr Fernandes dizia que transformar sua cidade em atração turística é o mesmo que botar a mãe na zona.

E agora a polícia e a imprensa descobriram, finalmente, que havia corrupção na CBF.  Engraçado, eu sabia disso desde que era a CBD de João A-Ver-Longe.

O futebol se igualou ao rock, ao cinema blockbuster. É big business. A arte é um efeito colateral, que eles incluem como isca e ainda não descobriram como descartar, mas o farão, quando descobrirem um modo de ganhar mais grana com isso.

Minha primeira Copa como torcedor foi a de 1962, que ouvi pelo rádio. E nem sempre torci pelo Brasil. Em 1974, por exemplo, torci pela Holanda, e comemorei na casa de Jakson e Marcos Agra a vitória da Laranja Mecânica sobre o Escrete Canarinho por 2x0. Por causa da ditadura? Em parte. Mas porque a Holanda era o futebol, e eu gosto mais do futebol do que dos meus times.

A Copa me irrita porque grande parte da imprensa aproveita para se lambuzar de ufanismo ilusório, de servilismo diante dos ricos e mandões. Na Copa, muito jornalista tenta compensar nosso “complexo de vira-lata” afirmando que não somos vira-latas, somos lulu de madame.

É uma época que deveria nos ensinar alguma coisa, mas acaba revolvendo camadas profundas do nosso inconsciente coletivo e revelando o lixão de História mal resolvida sobre o qual estamos edificando nossos shoppings e nossas arenas.












segunda-feira, 11 de junho de 2018

4356) Dicionário Aldebarã XVI (11.6.2018)




(Marc Chagall)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.



“Anstrik”: o momento em que, antes de adormecer, repassando todo o dia que acabou de ser vivido, um pessoa é capaz de contar cinco coisas-que-deram-certo e pegar no sono em paz.

“Calhières”: certas gentilezas supérfluas, certas poses de etiqueta perfunctórias, que as pessoas fazem fingindo que desejam agradar alguém – que por sua vez, se pudesse, acabava com tantos rapapés na vida real.

“Náujebe”: o lendário Tapete Rastejador do condado de Nikhoury, um tapete comum capaz de voar, mas somente a uma altura de 5 cm da superfície, e à velocidade de um homem indo para uma reunião e sem a menor vontade de que a reunião comece.

“Hiltinskórious”: casas de peep-show para tatuadores, onde pessoas fazem sexo e depois se tatuam um emoji uma na outra, dando sua nota.

“Parkont”: a sensação de ser algum animal, sensação que nos acontece nos momentos de raiva, de relaxamento, de fome, etc.

“Sconus”: meias duplas para se andar “descalço” dentro de casa, sujando apenas a meia de fora.

 “Temique”: a impaciência para se envolver com uma ocupação qualquer, enquanto outro dever mais urgente não está sendo atendido.

 “Tiezza”: a sensação de dano irreparável quando um objeto se quebra ou se estraga de repente.

“Azissin”: pessoa que reencontramos depois de muito tempo e temos a sensação (que sabemos impossível) de que se trata de um sósia ou um impostor.

“Ximão”: indivíduo que tem apenas um talento ou habilidade, mas consegue viver às custas disto.

“Plandotes”: uma família cujos horários não coincidem, e a qualquer hora do dia ou da noite há na casa alguém acordando, comendo, chegando da rua, etc.

“Teeper”: homenagem que se faz às pessoas falecidas, deixando um lugar posto à mesa durante as festas.

“Assiel”: a sensação de que acaba de acontecer algo ruim que poderia ter sido facilmente evitado.

“Lamenoq”: sistema de proteção que consiste em pequenos barrotes de madeira que deslizam no interior de um móvel qualquer com gavetas; servem de tranca e bloqueio caso as gavetas não estejam sendo abertas numa sequência específica que só o dono conhece.

“Capérlus”: nuvens pesadas chovendo sobre uma área pequena, vistas a muitos quilômetros, como uma cortina escura vedando o horizonte.

“Zindul”: frutinha meio salgada que se usa como tiragosto; ao ser aberta tem que ser comida de imediato, porque um minuto depois começa a apodrecer; usada com frequência em comparações políticas ou filosóficas.

“Triporex”: pequenas distrações que podem causar grandes prejuízos, como esquecer um fogo aceso, uma porta destrancada, um animal sem comida, uma janela aberta, etc.

 “Laghorst”: testes escolares em que são fornecidas aos alunos uma série de respostas aparentemente absurdas, para que eles formulem as perguntas correspondentes.











sexta-feira, 8 de junho de 2018

4355) O amor, o cinema e a revolução (8.6.2018)




Nem tudo que diz respeito aos anos 1960 pode ser carimbado com a fórmula “sexo, drogas e rock-and-roll”.

O livro de memórias de Anne Wiazemsky, Um Ano Depois (Ed. Todavia, 2018, trad. Julia de Rosa Simões) poderia se chamar O amor, o cinema e a revolução, porque era mais ou menos este o lema em vigor na época que ela viveu tão de perto e descreve tão bem.

Anne foi casada com Jean-Luc Godard e aparece nos seus filmes A Chinesa, Week End, One Plus One, além do Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini e A Grande Testemunha (1966) de Robert Bresson. Era uma atriz discreta, mas muito fotogênica, e correspondia (tal como Anna Karina, a esposa-musa anterior de Godard) ao tipo mediano das garotas daquele tempo.

Alguém dirá que nem todas as garotas daquele tempo eram tão bonitas; mas atrizes como estas duas reproduzem modos de andar, de vestir, de sentar, de discutir, de dançar, de cantar, nos quais rapazes e moças se reconheciam sem esforço. Essas atrizes de cinema que a gente chama de “musas de uma geração” nem sempre são bonitas. Elas são  um conjunto de atitudes, inflexões de voz, movimentos, olhares, que dão a sensação imediata de uma verdade de dentro para fora.

Anna Wiazemsky relata as agitações de 1968 com o olho de quem, quando deu fé, estava no centro do furacão, coitada. E ao lado de Godard, no ano crucial da vida do diretor – quando este parou de fazer filmes sobre garotas como ela e começou a fazer filmes de esquerdismo militante e radical. Com quase 40 anos, Godard estava se fascinando cada vez mais com o ardor combativo dos jovens radicais do movimento estudantil.

Era principalmente Jean-Jock quem falava, os silêncios de Jean-Luc me surpreendiam: ficar calado na presença de outra pessoa não era um dos seus hábitos, ele sempre precisava ter a última palavra. (p. 21)

Há um episódio pitoresco logo no início, quando Godard é convidado para dirigir o filme O Assassinato de Trotsky tendo John Lennon no papel-título. Ele e Anne viajam a Londres, se reúnem com os Beatles na Apple, mas os “santos” de Godard e Lennon não se harmonizam em momento algum (o que não é de admirar), e a reunião termina com Paul McCartney convidando Anne para tomar chá embaixo da mesa.

O projeto não foi à frente; mas como Godard já estava em Londres, com um pré-contrato assinado, acabou aceitando dirigir os Rolling Stones em One Plus One, que não passa de uma longa maratona de ensaios da canção “Sympathy for the Devil”, intercalado com discursos marxistas-leninistas.

No pinga-fogo das passeatas estudantis, com as ruas de Paris sendo desparalelepipedadas pelos estudantes para combater a polícia, a cidade parou. Diz Anne: “em pouco tempo os estoques de rádios de pilha pela primeira vez se esgotaram no país”. Godard vai para as passeatas cheio de perplexidade e entusiasmo, tropeça, quebra os óculos...

O bom de livros assim é trazer esses olimpianos (como os chamava Edgar Morin) ao plano banal e nada heróico de nós mesmos. É romântico, mas também dá um certo consolo financeiro, saber que de manhã Godard levava para Anne uma bandeja com “uma xícara de Nescafé e um pão com manteiga”. E lendo relatos do dia a dia de pessoas tão famosas (aparecem Bernardo Bertolucci, Gilles Deleuze, Pier Paolo Pasolini, etc.) a gente vê como o pessoal daquele tempo vivia modestamente. Comparados a eles, nós brasileiros de hoje somos uns xeiques sauditas.

Maio 1968 ficou de certa forma como um modelo de estudo para manifestações de rua por muito tempo. Não há como não reconhecer Junho 2013 em trechos como:

Às vezes, exaustos, parávamos num café para descansar ou beber alguma coisa. Todos os cafés estavam abertos, nenhuma porta fechada. Os comerciantes e moradores do bairro se diziam indignados com a violência policial e não deixavam de ajudar os jovens que buscavam abrigo. (p. 35)

Os confrontos tinham começado sem que ninguém soubesse por quem. Os estudantes acusavam as forças de segurança, que por sua vez acusavam os estudantes. Pela primeira vez, ouvimos falar em “elementos incontroláveis” que teriam se infiltrado na passeata para semear a discórdia. Estudantes entrevistados falavam em “provocadores manipulados pela polícia”. (p. 44)

Somente alguns estudantes, que ele julgava pertenceram à UNEF e que portavam megafones, pediam sem cessar: “Voltem para casa, não se deixem manipular... A manifestação de luto terminou há muito tempo... Voltem para suas casas.” (...)  Um grupo de uma centena de jovens, rostos cobertos por lenços, muitas vezes com capacetes e armados de coquetéis Molotov, lhe parecia particularmente perigoso porque estava visivelmente determinado a lutar. (p. 116)


Não é um livro de análises, é um livro de lembranças e comentários. Engana-se quem pensa que Jean-Luc Godard era diferente de qualquer um de nós no que diz respeito à comédia conjugal. Anne Wiazemsky tinha 21 anos então, Jean-Luc tinha 37 e além do mais era o que o pessoal chama “uma lenda viva”, “uma pessoa pública, um oráculo, uma estrela, uma espécie de deus” (p. 114)

O que não o impedia de, no dia seguinte a um bate-boca feroz com Anne, pedir desculpas nestes termos: “Lamento o que disse antes, falei sem pensar, e, se você acreditou, é uma imbecil.

Um livro de memórias é sempre um livro onde o autor demonstra que quem tinha razão era ele. O livro de Anne Wiazemsky é uma série de flashes breves na vida de uma garota que, por caminhos de família e de profissão, estava no epicentro da crise ideológica de sua época. Muita tinta filosófica e política já correu sobre Maio 1968, mas a tinta de Anne, se não traz nenhum “raio ordenador” sobre aquela balbúrdia, relata com clareza o que era estar no meio dela.


(A Grande Testemunha)




quarta-feira, 6 de junho de 2018

4354) Dez álbuns: 7 - Erik Satie (6.6.2018)




Há diferentes maneiras de ouvir discos. Pode ser numa sala cheia de amigos, todos conversando e bebendo, com o som em toda altura. Ou sozinho em casa, trancado no quarto de adolescente, com o som infelizmente baixo para não atrair a ira parental. Na casa dos amigos, em mudez reverente, absorvendo com avidez aquele vinil importado que talvez seja a única cópia existente no país. Na cama com a namorada, curtindo aquele som.

E outra: a música que a gente ouve enquanto escreve.

Romances contemporâneos trazem muitas vezes uma lista do tipo: “Este livro foi escrito ao som de New Order, Cocteau Twins, Electric Light Orchestra, Joe Zawinul e Nina Simone”. Tipo isso.

Escrever ao som de música é produzir artificialmente em si mesmo um estado de espírito previsível e controlável. Cada música injeta um sentimento diferente em nossa maneira de compor as frases, ajeitar as idéias, formular um ritmo. Ou então simplesmente fornece “um astral”, “um clima”, uma energia informe que ferve nos neurônios; é possível escutar Iron Maiden e usar essa energia para escrever haikais zen-budistas, desde que você tenha um transformador.

Uma coisa é escrever ouvindo Rolling Stones, outra coisa é ouvindo Tom Jobim.

E outra coisa é escutar Erik Satie, cujas peças curtas para piano estão entre as coisas mais “exquisitamente” agradáveis que conheço. Como essas peças têm centenas de interpretações pianísticas em centenas de coletâneas, fica difícil citar “um álbum” específico. Mas eu considero para o presente efeito qualquer álbum que contenha as Gymnopédies, as Gnossiennes, as Sarabandes, os Sports et Divertissements e por aí vai.

São a trilha sonora de muita coisa que escrevi de madrugada.

Gymnopédies:

Gnossiennes:



Meu primeiro contato com essa música foi através do “Blood, Sweat & Tears”, que no seu disco de 1968 gravou uma faixa das "Gymnopédies" de Satie. Depois, quando fui morar em Salvador, trabalhando no Clube de Cinema da Bahia, que funcionava nas instalações do ICBA, acompanhei a montagem de uma exposição de Bené Fonteles que tinha Satie na trilha sonora. Por força do expediente eu passava a tarde e a noite escutando aquilo, fragmentariamente, e pensando, armaria, que coisa linda.

Satie (1866-1925) é um miniaturista musical, criando pequenos bonsais de harmonia levemente dissonante que (dizem os estudiosos) influenciaram grandemente a geração de Debussy, com o qual ele teve uma amizade de idas e vindas. Satie era um excêntrico, um amalucado, um sujeito fora-de-esquadro cujas atitudes absurdistas e declarações inexplicáveis acabaram muitas vezes dificultando sua aceitação no pomposo e solene meio musical francês da virada do século.



Ele costumava acompanhar suas peças para piano com pequenos textos poéticos. No conjunto Sports et Divertissements (1914), cada faixa tem um poeminha:

O FOGO DE ARTIFÍCIO
Como está escuro!
Oh! Um rojão! Um rojão todo azul!
Todos se admiram.
Um velho enlouquece.
O buquê!

***

O POLVO
O polvo está dentro de sua toca.
Brinca com um caranguejo.
Engole-o e engasga.
Apavorado, pisoteia seus próprios pés.
Bebe um copo de água salgada.
Isso faz-lhe grande bem, e clareia suas idéias.

***

O BANHO DE MAR
O mar é imenso, senhora.
Em todo caso, é bem profundo.
Não sente no fundo. É muito úmido.
Eis que chegam minhas velhas amigas, as ondas. Estão cheia de água.
– A senhora está toda molhada!
Sim, senhor.

Há um vinil da pianista Cordélia Canabrava Arruda com estas peças (Fermata, 1981), além de La Piège de la Meduse (1913), Sonneries de la Rose+Croix (1892), com uma bela capa dupla trazendo todos estes poeminhas, ilustrados.



Não se pode compreender a obra musical de Satie sem pensar no contexto geral da Paris de sua época, onde a cada cinco anos uma revolução estética abalava o mundo: o impressionismo, o fauvismo, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo... Satie (segundo a boa biografia de Rollo Myers) foi um precursor disso tudo. Suas inovações musicais foram retomadas depois por compositores mais populares ou mais respeitados do que ele.



O filme Entr’Acte (1924) de René Clair mostra Satie (com seu obrigatório terno, chapéu coco e guarda-chuva) e o pintor Francis Picabia, na abertura, dando enormes saltos em câmera lenta e preparando um canhão para disparar sobre Paris.

Entr’Acte, abertura:

O tom anarco-surrealista deste clássico do cinema mudo (depois sonorizado com a música dele) tem tudo a ver com os pequenos happenings que o compositor apreciava. A noite de estréia de seu balé Folga (“Rêlache”) fez o público dar de cara com o teatro fechado e uma placa indicando que o teatro estava mesmo de folga.

Tristan Tzara, Jean Cocteau, Man Ray, Picabia e outros faziam parte do seu círculo de amizades, e para eles deviam parecer muito naturais textos como as Memórias de Um Amnésico, fragmentos meio surrealistas e satíricos que ele publicava de vez em quando nas revistas literárias.

Satie era maluco, era um autista, era um desorientado? Há um caso famoso em que propuseram a Stravinsky um trabalho remunerado, mas o compositor cobrou um preço muito  alto. O produtor pensou então em Satie, e fez-lhe a proposta, só que num valor bem menor. Satie ficou ofendidíssimo por alguém lhe oferecer tanto dinheiro para compor uma peça, e só aceitou o trabalho quando o pagamento foi reduzido a uma soma insignificante.


(Satie, por Santiago Rossignol)

Quando Satie morreu, seu amigo Darius Milhaud foi uma das primeiras pessoas a entrar no quarto onde ele vivia, num subúrbio distante. Encontraram ali dois pianos (um em cima do outro), sem molas e sem cordas; oito ternos não-usados, intactos, ainda na caixa; duzentos guarda-chuvas; o chão coberto de camisas que ele usava uma vez e jogava fora. Não havia água corrente nem aquecimento. Os lençóis da cama estavam enegrecidos porque não haviam sido trocados em vinte anos. Estavam costurados às cobertas num complicado arranjo cheio de garrafas vazias, que ele enchia de água quente à noite.

Não sei analisar musicalmente a obra de Satie, mas as palavras que associo a ela são delicadeza, miniatura, perfeição, dissonância, imprevisibilidade, distanciamento. Já ouvi um maestro dizer que Chopin é o “Roberto Carlos” da música para piano. Se for assim, então Satie é o Tom Zé.

“Quando eu era jovem, me diziam: Você vai ver, quando tiver cinquenta anos. Pois bem: estou com cinquenta anos, e não vi nada ainda.” (Satie)