terça-feira, 3 de junho de 2025

5182) A Conspiração e o Absurdo (4.6.2025)



 
Uma das minhas frases preferidas é a de Philip K. Dick quando disse que a mente humana precisa de significado tanto quanto o corpo humano precisa de água. Sem isso, definham, ressecam, morrem. 
 
Um dos elementos desse “significado” é o que chamamos de relação causa-efeito: “Isto acontece por causa daquilo, e vai por sua vez ser causa daquilo-outro”. Ou então: vemos meia dúzia de objetos ou elementos soltos, isolados, e precisamos produzir um conceito capaz de uni-los todos, alguma coisa que todos eles têm em comum. E assim por diante. 
 
As famosas “teorias da conspiração”, tão em moda nas redes sociais, não são uma coisa nova na história do mundo. São um segmento de uma tendência maior, a de observar fenômenos inexplicáveis (ou ainda não explicados satisfatoriamente) e conceber uma teoria onde todos eles se encaixem. 
 
Curiosamente, é exatamente isto que um paranóico faz: inventar explicações fantasiosas para fatos banais. Mesmo fantasiosas são impecavelmente lógicas e bem argumentadas. Um paranóico tira da cartola uma teoria impecável demonstrando que está sendo perseguido pela KGB e pela Sociedade Internacional dos Observadores de Pássaros, cujo objetivo conjunto é impedir que ele assuma o trono da Turquia, do qual é o legítimo herdeiro. 
 
As sociedades – ou pelo menos faixas enormes das populações – procedem do mesmo jeito. Percebem fatos isolados e tentam explicá-los através de uma “teoria unificada”. Reduzir o desconhecido ao conhecido. Por mais sem pé nem cabeça que esse “conhecido” possa ser. 
 
E é aí que entram muitas dessas Teorias da Conspiração. As explicações são bizarras? Sim, mas são articuladas com aparente lógica. Vale tudo – menos o Absurdo do não haver explicação. 
 
Andei lendo em revistas já meio antigas umas resenhas do livro The Man From Mars: Ray Palmer’s Amazing Pulp Journey (Penguin, 2013), de Fred Nadis. 



 
Raymond A. Palmer, cujo nome só é lembrado hoje por leitores de ficção científica, é um dos responsáveis pela mentalidade teórico-conspiratória que hoje fervilha nas redes sociais. Foi ele um dos deflagradores principais, de dois cultos que marcaram a segunda metade do século 20: a lenda dos discos voadores e a lenda da Lemúria. 
 
Ray Palmer (1910-1977) foi uma daquelas figuras excêntricas que floresceram na estufa caótica da pulp fiction norte-americana. Foi um garoto doente, confinado à cama e à leitura voraz de revistas populares. Um acidente de carro ainda na infância danificou sua coluna vertebral e afetou sua saúde pelo resto da vida. Palmer, adulto, nunca cresceu acima de 1 metro e 20. Isto não o impediu de ser extrovertido, falastrão, ousado, contestador. 



(Ray Palmer)

 
Era o típíco fã de FC da sua época, publicando histórias e cartas nas revistas, até que foi contratado para editar a revista-fundadora do gênero, Amazing Stories, que andava mal das pernas sob a direção meio sisuda de T. O’Connor Sloane. A circulação da revista tinha caído de 100 mil em 1926 para 40 mil em 1938. 
 
Diz Richard A. Lupoff (Locus 629, junho 2013, p. 23): 
 
Sob a orientação de Palmer e com o apoio da editora Ziff-Davis, Amazing Stories experimentou uma completa renovação, tornando-se uma revista mais colorida e pitoresca. Palmer deixou para trás o tom mais formal e professoral da revista e adotou uma postura mais coloquial e descontraída. Os leitores aceitaram de imediato. Ele substituiu as histórias mais lentas e carregadas de ciência, que eram as preferidas do ex-editor Sloane, por histórias mais excitantes, baseadas em ação e aventura. (trad. BT) 
 
O objetivo de Palmer era, por um lado, atingir um público de adolescentes para quem a principal revista concorrente, Astounding Science Fiction, era demasiado séria. Mesmo assim, coube a Palmer publicar o conto de estréia de Isaac Asimov (“Marooned off Vesta”, março de 1939). 
 
E nessa euforia editorial cai nas mãos de Palmer um conto excêntrico de um desconhecido, Richard Shaver, sobre uma civilização subterrânea que influencia a mente humana através de raios projetados à distância. Palmer viu o potencial da história e a publicou no número de março de 1945, sob o título “I Remember Lemuria”. 



 
A revista saltou para 200 mil exemplares por mês; Palmer percebeu o filão inesgotável que havia ali, e passou a publicar um material cada vez mais  voltado para o cultismo e o ocultismo, afastando-se da ficção científica. 
 
Nesta mesma época, ele embarcou na onda de ufologia que teve início em junho de 1947, quando o aviador Kenneth Arnold avistou uma formação de nove objetos voadores, quando sobrevoava a região do Mount Rainier. Os dois tornaram-se amigos, e a revista Fate, que Palmer fundou em 1948, deu um enorme impulso à onda dos “discos voadores” que tomou conta da América. Outras revistas e livros se seguiram, sempre explorando o filão da mistura entre FC e ocultismo. 



 
O shaverismo e os discos voadores são sintomas típicos da Guerra Fria: “estamos sendo ameaçados por inimigos malignos que nos influenciam à distância e que mandam naves misteriosas para nos espionar e nos sequestrar”. O elemento novo que aparece nesse fenômeno é essa relativa promiscuidade entre a literatura de ficção e as invenções deliberadas da imprensa sensacionalista. 
 
Ficção Científica e Ufologia são duas áreas próximas, mas existe uma certa frcção entre as duas, uma certa tensão. Cada uma, curiosamente, sente-se ofendida quando é confundida ou comparada com a outra. 
 
Para o pessoal da ficção científica, a FC é uma literatura como qualquer outra. Uma literatura baseada na imaginação, mas onde existe um acordo tácito, entre autor e leitor, de que nada daquilo é verdade factual. E para muita gente da FC, os ufologistas são pessoas ingênuas: leem narrativas bizarras, mirabolantes, e acreditam que são verdadeiras. 
 
Para o pessoal da Ufologia, a FC é uma atividade irrelevante justamente por ser assumidamente imaginária; são histórias que não aconteceram e por isso de nada interessam, enquanto que a Ufologia investiga fatos reais, coisas que têm importância. 
 
Raymond Palmer teve um papel importante nesse processo de misturar as águas da ficção e do jornalismo; da história de ficção e da pseudo reportagem. Com isto, ele turbinou ainda mais essa tendência humana a perceber coisas bizarras e extraordinárias que não estão ali. Dizem que a beleza está no olho de quem observa (“beauty is in the eye of the beholder”), mas não é só a beleza, é qualquer coisa que mexa, perturbe, inquiete, fascine, atraia a atenção e desperte associações de idéias que o próprio observador não sabe direito de onde vêm. 



 
Em O Mundo Assombrado pelos Demônios (1995), Carl Sagan dizia, a respeito da febre de avistamentos de discos voadores: 
 
A maioria das pessoas informava honestamente o que via, mas o que elas viam eram fenômenos naturais, ainda que pouco familiares. Algumas visões de UFO eram na verdade aviões pouco convencionais, aviões convencionais com padrões de iluminação inusitados, balões de alta altitude, insetos luminescentes, planetas vistos em condições atmosféricas incomuns, miragens e aparições ópticas, nuvens lenticulares, fogos de santelmo, parélios, meteoros incluindo bolas de fogo verdes, satélites, ogivas e lançadores de foguetes reenctrando espetacularmente na atmosfera. 
(Companhia das Letras, p. 92, trad. Rosaura Eichenberg) 
 
Quando uma pessoa avista imagens extraordinárias e tenta dar-lhes uma explicação, há duas atitudes científicas possíveis. A primeira é tentar averiguar o que de fato foi visto, independentemente da interpretação do observador. A segunda é ignorar provisoriamente o que foi (ou pode ter sido) avistado e perguntar por que motivo o observador lhe deu aquela explicação, e não outra. 
 
C. G. Jung foi um dos cientistas sérios que se dedicou a entender o que a mente das pessoas e não os seus olhos) estava vendo. Ele dava sempre um descontos nos relatos recolhidos, e fazia esta divertida ressalva: 
 
O que é pior: a maioria destes relatos vem da América, a terra dos superlativos e da ficção científica. (...) Vistos sob essa luz, os avistamentos de Ovnis podem parecer a um observador cético uma história que é contada por todo o mundo, mas difere de um boato comum pelo fato de que é expressa em forma de visões, ou talvez deva sua existência a elas, e agora é mantida viva por elas. Eu chamaria a essa variação, comparativamente rara, um boato visionário. Algo bastante próximo das visões coletivas como, digamos, dos cruzados durante o cerco de Jerusalém, das tropas de Mons na Primeira Guerra Mundial, ou dos fiéis devotos do Papa em Fátima, Portugal. (...) O boato está ligado à psicologia do grande pânico que se alastrou nos Estados Unidos pouco antes da Segunda Guerra Mundial, quando uma transmissão de rádio baseada no romance de H. G. Wells, sobre marcianos invadindo Nova York, causou uma fuga generalizada e numerosos acidentes de carro. Esta transmissão, evidentemente, tocou a emoção latente em conexão com a iminência da guerra. 
(Flying Saucers: a Modern Myth of Things Seen in the Skies, Princeton University Press, 1991, trad. BT)
 
O ser humano aceita e suporta a idéia de qualquer catástrofe ou qualquer conspiração maligna, porque uma catástrofe ou uma conspiração fazem sentido. O que ele não aceita nem suporta é a falta de uma explicação qualquer – é o Absurdo.