domingo, 30 de dezembro de 2018

4418) Resoluções para 2019 (30.12.2018)





Fazer como Lionel Messi, que toda vez que é derrubado se levanta e continua a arrancada rumo ao gol.

Fazer como Darcy Ribeiro, que estava brincando de roleta-russa com um amigo, girou o tambor do revólver, encostou na testa, e de repente virou na direção da parede, e abriu um rombo nela com um estrondo ensurdecedor.

Fazer como as mendigas cegas que cantam, não para atrair moedas, mas para mostrar que não são inferiores a quem lhes paga.

Fazer como Homero, que pode até nem ter existido, mas escreveu dois livros DESSE tamanho.

Fazer como Bobby Fischer, para quem o xadrez chegou a um ponto repetitivo demais, e sugeriu mudar a posição de todas as peças.

Fazer como Shelley Winters, que se trancava no camarim escutando as divas da ópera, e só saía quando o diretor estava pronto para rodar a cena.

Fazer como aquele bêbo anônimo que vinha passando de madrugada, um guarda pediu a ele os documentos, ele meteu a mão no bolso e puxou a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Fazer como o Bacharel de Cananéia, aquele português que quando Pedro Álvares Cabral chegou aqui ele já morava em São Paulo, com um harém de índias.

Fazer como Nara Leão, que cansou de ter discos nas paradas de sucesso e fazer shows lotados, e foi estudar na PUC.

Fazer como Erik Satie, que morava num subúrbio distante em Paris, voltava da farra a pé, e quando chegava em casa já estava na hora de sair de novo.

Fazer como Ishmael, que viveu para contar a história.

Fazer como Fritz Lang, a quem o Ministro Goebbels ofereceu a coordenação do cinema nazista, ele aceitou, marcou reunião para a semana seguinte, e saiu dali direto para a estação de trem mais próxima.

Fazer como aquela colhedora de algodão em Serra Branca, que interrompeu o trabalho, pariu um menino embaixo dum juazeiro, entregou para a sobrinha, e voltou a arrancar capuchos.

Fazer como aquele padre do interior que confessava os próprios pecados para as beatas, e a fila dobrava o quarteirão.

Fazer como Luís Carlos Prestes, que passou um ano preso na cela solitária e todo dia vestia terno e gravata, para não perder o moral.

Fazer como minha mãe, que nas horas de aperreio tomava um banho de tonel para esfriar a cabeça, e uma dose de uísque para esquentar o coração.

Fazer como a chuva, que cai em pé e corre deitada.

Fazer como Tim Berners-Lee, que inventou a World Wide Web e se recusou a requerer patente, royalties etc., porque não precisava – já tinha uma casa, tinha automóvel, economias no banco etc.

Fazer como aquela quenga da Unidade Moreninha que um dia explicou ao coronel: “o que o senhor está comprando é o seu prazer, não a minha liberdade”.

Fazer como Ulisses, que disse que não era ninguém; como Álvaro de Campos, que disse que não era nada; como John Lennon, que disse que não era de lugar nenhum.

Fazer como a octogenária Erundina, que todo dia agôa uma arvorezinha da qual não sentirá a sombra.

Fazer como aqueles livros fabricados tempos atrás, que uma vez abertos e largados sobre a mesa não voltavam a se fechar: deixavam-se ler, deixavam-se tratar como livros.

Fazer como aqueles soldados das histórias antigas, que recebiam a incumbência de levar um recém-nascido para o bosque e matá-lo, e desobedeciam, permitindo que uma obscura lenda se produzisse a partir daquele gesto.

Fazer como Audrey Hepburn, que quando o produtor ameaçou cortar do filme a cena onde ela canta “Moon River” respondeu: “só se for passando por cima do meu cadáver.”

Fazer como Salvador Dali, que ia para o aeroporto e emburacava no avião sem passagem, dizendo: “sou um gênio, a humanidade me deve isto”.

Fazer como o Cego Aderaldo, que percorria o sertão com um projetor 16mm., exibindo filmes que não podia ver.

Fazer como a abelha, que ferroa e morre, mas não deixa de ferroar.

Fazer como o Word, que tem o comando Ctrl+Z para voltar atrás quando faz besteira.












quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

4417) Onde fica o meio do mundo (26.12.2018)




São vários os contos populares onde esta cena aparece. Eu me refiro àquele confronto que geralmente se dá entre o herói, que é um cara apenas esperto, e o poderoso Rei. O Rei faz uma série de perguntas, e o esperto as rebate com um negaceio diferente de cada vez.

Aí, o Rei pergunta:

– Onde fica o meio do mundo?

E aí “Camões”, ou “Cancão de Fogo” ou qualquer outro diz:

– Exatamente ali, perto daquela coluna do palácio.

– Como é que você sabe?

– Pode mandar medir.

O Rei não tem como mandar medir, e talvez nem soubesse explicar o que era pra ser medido. Ele pergunta:

– Quantos cestos de terra tem naquela montanha? – aponta a janela escancarada.

O esperto diz:

– Um milhão, duzentos mil, e vinte e seis.

Se o Rei fosse esperto, os dois se engatariam nesse ponto, gerando um impasse absoluto, como um empate por exaustão no xadrez. Mas o Rei é um mero personagem, e precisa fazer a terceira pergunta, a frase fatal para que o vírus da História seja passado adiante:

– O que é que eu estou pensando?

E “Arlequim”, ou “Pedro Malazarte” responde:

– Está pensando que eu sou [a falsa identidade sob a qual ele se apresentou ao rei], mas não sou, eu sou [Arlequim, Malazarte].

E o conto se desenlaça. O que há de interessante nessas cenas é que pertencem ao conto de fadas, à literatura de cordel, ao esquete de humor, à arte da pergunta acachapante e da resposta relâmpago. São de circo, são de almanaque medieval, são das madrugadas radiofônicas. Um antropólogo talvez dissesse que ela cumpre um pouco a função de cortar nós-górdios filosóficos reduzindo tudo a uma cambalhota simples.

O interessante é que pode-se manter essa ceninha, vamos chamá-la “O Interrogatório” ou “As Três Perguntas do Rei”, entre os quadros de uma história, mas mudando-se, como convier, quais as perguntas feitas, as respostas dadas. É um bloco que pode ser trocado por diálogos novos, mas sempre mantendo essa função: o esperto “come o rei com farinha”.

Dando uma geral nas literaturas antigas do Ocidente e do Oriente a gente vê o quanto é comum esse conceito da cena que pode ser infindavelmente mudada e ainda assim continuar a mesma. Ela precisa cumprir sempre a mesma função: fazer o esperto revelar sua identidade ao rei, após derrotá-lo. A perguntas e as piadas podem ser mil vezes refeitas por quem encenar esse conto.

São centenas as aventuras de cordel em que um coronel ou rei ou fazendeiro põe a filha no balcão matrimonial, com a condição de que o pretendente responda três perguntas, ou formule três perguntas próprias, ou pratique alguma façanha, para merecer a mão da noiva em disputa. É a aliança estratégica entre o Poder (o rei) e o Saber (o esperto).

É claro que todas essas histórias são contos inventados, e é muito fácil imaginar um improviso de fração de segundo quando se está escrevendo e revisando em toda comodidade. Mas o “repente relâmpago” também existe na vida real, aquela resposta ideal imaginada, formulada e dita em voz alta ao longo de alguns segundos.

Diz-se que Bocage usava, em alguns círculos poéticos, o pseudônimo anagramático de Elmano, a partir de seu nome verdadeiro, Manoel Bocage.

Um dia vem ele por Lisboa quando cruza com outro poeta, que, vendo-o cabisbaixo, pergunta em verso:

– Elmano, a lira divina / por que razão emudece?

Bocage, que estava meio sorumbático, ripostou:

– Porque mais cala no mundo / quem mais o mundo conhece.

O amigo tornou, em cima da bucha:

– E o que tens visto no mundo / que tanto assombro te faça?

E “Elmano Sadino” fechou a estrofe:

– Um poeta com ventura, / um toleirão com desgraça.

Bocage era da linhagem de poetas malditos, como Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”.  Na vida de cada um deles vê-se a presença do improviso leve e solto, parte de uma cultura, que pode chegar a encenar grandes disputas de arquibancada cheia; mas no geral é para uso cotidiano, em mesa de bar.











segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

4416) Natal 2018 (23.12.2018)




(ilustração: Ralph Steadman)



... e um ano transcorreu num só segundo
como um flash, um relâmpago, um raio,
e eu aqui, tropeçante, e eu, cambaio,
cultivando as derrotas, como plantas;
não importa se feias, pois são tantas
que formando fileiras, curvas, retas,
traçam formas: mandalas incompletas
arabescos que algum valor terão...
Acabei de encontrar minha missão
no planeta dos cactos e das rosas.

Como Augusto, o das letras tenebrosas,
quero que o solo coma os meus resíduos
como sempre tem feito aos indivíduos
que recolhem do mundo os elementos
com que compor seus corpos suarentos...
A alma é um pião que na poeira
gira, gira; e o corpo é a ponteira
encravada no chão do mundo tosco
tirando chispas do terreno fosco
onde um dia seus ossos dormirão...

Que seja a Glória ter pisado o chão,
ter sido gente, bicho, fruta e flor,
ter sentido o prazer, quase uma dor,
da água fria escorrendo pelo rosto...
O prazer de escrever. De ter composto
um fio de melodia original
que deu prazer a quem, num dia tal,
num subúrbio distante, num distrito,
ouviu um som e disse; "que bonito,
isso aí que no rádio está tocando,,,"

"E eu pela estrada, entre estes monstros, ando"
dando o dedo ao destino que me aguarda,
e peço a Deus, esta eminência parda,
que me dê no relógio alguns acréscimos.
Convenhamos: os tempos estão péssimos,
mas mesmo assim insisto em desfrutá-los;
escrevo à noite enquanto espero os galos
e em dueto a difusa passarada
que gorjeia: "Aproveita, camarada,
vai fazer um café, não dorme agora!”.

Troco minhalma por mais uma aurora.
Troco o que fui pelo que não serei,
os futuros que nunca alcançarei,
a imensidão do que haverá sem mim...
Mas a vida não quer que seja assim
e me obriga a bebê-la de um só gole.
Quer saber?! Sanfoneiro,  puxe o fole,
faça o povo rodar, rode também!
Quanto mais vida vai, mais vida vem:
eis a única lei deste Universo.

Vale a pena (pergunto) mais um verso
celebrando o Natal e os jingobells?
Onde quer que eu me vire vejo os céus
piscando essas luzinhas de néon;
cada shopping um vírus do Leblon
se alastrando na taba brasileira...
Cem mães gritam, regendo a brincadeira
dos guris na piscina de bolinhas,
pula-pula, boliche e argolinhas,
nas descidas do escorregador...

E o Natal musical e multicor
volta a chiar na chapa do verão
e esta dor que voltou me dá razão
para pensar de noite, olhando a treva...
E o rio-tempo em seu passar me leva
e eu canto o tempo, e reinvento o rio,
e esta caneta desenrola um fio
de palavras que valem por meu rosto...
É dezembro, é abril ou é agosto
esse Natal que não melhora o mundo?...





quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

4415) Eu me lembro XIII (20.12.2018)




1
Eu me lembro de quando se aproximava o mês de setembro e a gente interrompia as aulas para ir ensaiar o desfile, na rua. Por um lado era bom porque nesse dia não ia ter mais aula. Quando acabava o ensaio a gente voltava pro colégio, pegava as coisas e ia embora. Mas o ensaio em si implicava às vezes sair marchando por aquelas longas retas, sair do Alfredo Dantas, descer a Irineu Joffily, dar uma volta no Açude Velho, subir pela Vila Nova da Rainha, pegar a Maciel Pinheiro, voltar ao colégio. Mas havia o fascínio de ver a banda marcial de perto, observar como os caras dos taróis controlavam o rufo, entender a função do bombão, do surdo; e sair um pouco no sol, tirar as teias de aranha, de vez em quando trazer “os povo” pras janelas, pálidos de espanto. Me lembro que havia um conundrum filosófico irrespondível: É melhor ser rabeira do pelotão 1, ou testa do pelotão 2? O que hoje talvez se dissesse: É melhor ser o lanterna da Série A ou o campeão da série B?” 

2
Eu me lembro de um Museu de Cera que ficou algumas semanas em exposição em Campina, em frente à Praça da Bandeira (onde hoje tem o camelódromo). Havia estátuas de vultos históricos, cientistas, personagens da literatura, da lenda. Havia Caryl Chessman, o “bandido da luz vermelha”,  na câmara de gás; era um fato ainda recente. Havia Jack o Estripador, etc.  Na porta de entrada, um disco de propaganda, chamando os clientes para entrar, tocava em loop um tango de Carlos Gardel, que diz “teu riso é como a brisa...”  Havia uma outra seção, só para maiores de 18 anos, que exibia de maneira gráfica (modelos de cera) uma infinidade de doenças venéreas, mostrando sua aparência exterior, explicando o que era e acho que sugerindo remédios. Anos depois, um museu de cera diferente, mais didático, menos carnaval-ambulante, ficou em exposição na Faculdade de Administração, na Getúlio Vargas, logo acima da esquina do Correio. Havia um pistoleiro de barba chamado Cruz Diablo, me pareceu um bom nome de personagem.

3
Eu me lembro de que no bairro de José Pinheiro, o popular “Zepa”, havia (será que ainda há?) um cinema pequeno, chamado Cine Art. Era um desses cinemas-poeira de rua, e tinha na entrada uma placa: “Proibido Entrar Descalço”. No auge do Cineclube de Campina Grande, surgiu uma idéia de promover ali uma sessão de cinema de arte, como já havia no Capitólio e no Babilônia. O idealismo de Luís Custódio, presidente do Cineclube, o levou a mil negociações com a gerência do cinema, onde só passavam bangue-bangues e pornochanchadas. Depois de marchas e contramarchas, o Cineclube promoveu ali a exibição do filme O Picolino (“Top Hat”), um musical com Fred Astaire, que nossa ingenuidade acreditou ser um título alegre, descontraído, capaz de agradar a qualquer platéia. Não fui assistir a sessão, o que hoje lamento, porque foi a única.

4
Eu me lembro do sebo de Câmara, um sebo que ficava na rua Maciel Pinheiro, entre aquela galeriazinha onde funcionou a Varig e a descida para o Beco dos Bêbos. Você subia dois ou três degraus da calçada e entrava numa sala ampla, com livros ao longo das paredes, empilhados em balcões ou em esteiras rente à parede. Câmara era um sujeito alto, meio calvo, tinha um gosto muito bom para literatura e poesia. Foi lá que eu comprei meu primeiro livro de Drummond, a Antologia Poética da Sabiá. Foi lá que vi um livro maluco chamado Kaos e guardei na memória esse título. Anos depois reencontrei o título citado no Pasquim, ligado ao nome do músico de Maracatu Atômico e cineasta de O Demiurgo, Jorge Mautner. Campina Grande sempre foi mais uma cidade de livrarias do que de sebos. O atual Catalivros de Ronaldo já é um dos sebos mais duradouros da história da cidade.

5
Eu me lembro de um jogador amador de Campina, chamado Lambretinha, pela velocidade. Ele jogava no Fracalanza, que era o time de funcionários de uma rede comercial, enxertado com jogadores vindos de outros times. Lambretinha era pequenino, não lembro bem da cara dele, mas me lembro de saltar de pé no meio das cadeiras cativas do Presidente Vargas quando a defesa deles rebatia uma bola e alguém esticava o passe longo esperado por todos. O estádio ficava de pé, e ele dava arrancadas que revivi depois quando vi um gol de Jacozinho num jogo comemorativo no Maracanã. O Fracalanza era verde e amarelo, acho, e jogava na preliminar. (Naquele tempo antediluviano, jogo de futebol era um programa duplo: quem chegasse mais cedo via um jogo de dois times amadores, geralmente; e depois o programa principal da noite, o jogo do dono do estádio contra um visitante.) Era o famoso esfria-sol.

6
Eu me lembro de Lampião, apelido de Judite, uma das meninas-da-noite que batiam calçadas nas madrugadas de Campina, fazendo programas com qualquer cara que parasse um carro e botasse elas para dentro. Lampião era a mais velha e uma espécie de líder de um grupo que tinha Olindete, Menininha, Rute... As mais novas tinham uns quinze anos, mas eram todas escoladas, vividas, calejadas na conversa e no comportamento. Eu era da turma que fazia bacurau (conversas aleatórias noite adentro) em frente ao antigo Museu de Arte, na esquina da Maciel Pinheiro com a Floriano Peixoto. As meninas de vez em quando encostavam e a gente ficava tirando onda, puxando conversa com elas. Lampião era corajosa e agia como protetora das outras; me lembro de uma vez ela contando pra gente como uns PMs estavam querendo pegar na marra uma das garotas. Ela disse: “Os caba vieram tirando onda mas eu trevessei meu naife e falei: Quem vier eu furo! Oxente, foram simbora.” Judite faleceu algumas semanas atrás, com mais de 70 anos. Vi sua foto nas redes sociais: negra, envelhecida e valente.










domingo, 16 de dezembro de 2018

4414) Sobre a tradução poética (16.12.2018)





(Piet Hein)

Uma das coisas mais incômodas quando a gente tenta traduzir poesia é a obrigação de seguir a métrica do original. Métrica é uma coisa muito matemática, muito precisa. O mínimo deslize fica tão evidente como (na comparação famosa de Raymond Chandler) “uma tarântula numa fatia de manjar branco”.

Quando é um poema de “verso livre”, cada linha pode ter qualquer número de sílabas, a critério do poeta. O poema ganha com isso uma alternância muito variada de cadências, e uma sílaba a mais ou a menos se destaca pouco.

Mas nas famosas formas fixas, onde se trabalha com versos obrigatoriamente de sete sílabas, de dez, de doze, etc., a reiteração desse ritmo faz com que mesmo o leitor não-ligado nesse aspecto perceba quando no meio de uma porção de linhas de dez sílabas aparece uma com onze.

É um verdadeiro prodígio conseguir traduzir um poema estrangeiro mantendo o sentido original, mantendo as rimas finais dos versos e mantendo a contagem de sílabas em cada linha. (Nem vou falar de outros efeitos, como rimas internas, aliterações, contrastes, etc.)

Daí o meu argumento de que mais do que a contagem exata das sílabas, vale a manutenção de uma cadência bem próxima à cadência do original, mesmo que, digamos, num soneto em decassílabos (no original) a tradução oscile entre versos de 9, 10, 11, 12 sílabas – procurando, claro, sempre ficar próximo do sentido do original, e rimando os versos na mesma ordem.

Uma argumentação muito clara e sensata a esse respeito foi feita pelo tradutor Álvaro Faleiros, num texto publicado no Suplemento Literário Minas Gerais (maio 2015):

“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu ‘topo’”.

Os tradutores da linha isomórfica tentam preservar com o maior rigor possível os efeitos métricos e sonoros do original, mesmo que à custa do sentido dos versos, em casos extremos. Faleiros inverte isso: para se manter próximo do sentido e das imagens do original, ele admite pequenas diferenças em relação à rima e à métrica.

Vou dar exemplo com um poeminha minúsculo de Piet Hein, o autor do famoso poema da luva (“Perder uma luva é uma dor profunda / mas nem se compara à dor pungente / de perder a primeira, jogar fora a segunda / e encontrar a primeira novamente”).

Hein cultivava esses poeminhas curtos a que chamava “grooks”, e um deles diz, em sua versão inglesa:

There is
one art,
no more,
no less:
to do
all things
with art-
lessness.

Hein defende aqui a simplicidade, a chamada “arte invisível”, aquela que a gente frui sem perceber como está fruindo. Nisso ele parece concordar com aqueles escritores que aconselhavam: “procure tudo que estiver muito bem escrito no seu texto, e então corte”.

O “muito bem escrito” é aquela arte vaidosa, exibicionista, onde o autor parece estar chamando a atenção para si mesmo e não para o texto. (Visualize uma peça de teatro sendo representada e de vez em quando o autor aparecendo no palco e acenando para o público. Tem coisa mais patética?)

Os grooks de Piet Hein são tão bem-humorados que eu vejo uma certa ironia dele nestas duas últimas linhas, porque ao quebrar a palavra “artlessness” (=a qualidade daquilo que não exibe “arte” alguma) ele chama a atenção para esse recurso, e mostra que tem uma artezinha ali, sim senhor.

Esse recurso da quebra da palavra também é usado por Gilberto Gil na letra de “Refazenda”. Esta canção propõe um modelo bem rígido de quadras com 4-7-7-7 sílabas, aquilo que eu chamo “o verso da embolada”.

(Sobre esse verso, ver aqui:

Diz o poeta:

Abacateiro (4 sílabas)
acataremos teu ato - 7
nós também somos do mato - 7
como o pato e o leão... - 7
Aguardaremos - 4
brincaremos no regato - 7
até que nos tragam frutos - 7
teu amor, teu coração. – 7

Ele propõe essa cadência de sílabas poéticas, 4-7-7-7 e para mantê-la acaba partindo as palavras mais longas, como Piet Hein fez, para que caibam na estrofe:

Abacateiro
teu recolhimento é justa-
mente o significado
da palavra temporão.

(...)

Abacateiro
serás meu parceiro soli-
tário nesse itinerário
da leveza pelo ar.

Existe arte nisso; é o próprio antônimo da “artlessness” defendida por Piet Hein. Mas acho que ele e Gilberto Gil se defenderiam dizendo: “Mas meu preto... me diga... quantas pessoas, fora você e meia dúzia, perceberam isso?...”

A gente não percebe. A cadência nos arrasta pelo ouvido com a mesma autoridade com que a mãe da gente nos arrastava pela orelha.

Eu queria traduzir o versinho inglês de Piet Hein, mas teria (pelo sistema dos irmãos Campos) que seguir a métrica dele, que é uma métrica 2-2-2-2-2-2-2-2. São oito versos, cada qual com duas sílabas.

A melhor saída foi lembrar o conselho de Álvaro Faleiros e propor uma tradução com o esquema silábico 3-3-2-2-2-3-2-2, verdadeira violentação do original, de acordo com as regras mais puristas da tradução. A esperança, no entanto, é que a cadência (e aqui a quebra de linhas é essencial para impor essa cadência ao ouvido do leitor, via olho) não sofra nenhuma sacudidela brusca:

Só existe
uma arte,
nem menos,
nem mais:
fazer
sem ninguém
ver como
se faz.

Perde-se alguma coisa? Muita!  A palavrinha quebrada foi pro espaço, o Expresso 2222 da métrica decolou junto com ela...  Mas minha intenção, mais do que reproduzir os efeitos sonoros e visuais, era passar o insight, o sentido, o famigerado “conteúdo” do poema.

Conteúdo que, em poemas metalinguísticos como este, poemas que refletem sobre a arte de poetar, está na própria forma, na maneira de dizer, e dizer fazendo concessões, aceitando limites, justamente para que o leitor veja sem perceber como viu, e pense que não fez esforço algum para entender.


(Aqui, uma página de “grooks de Piet Hein:




quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

4413) Cineasta, o administrador de acidentes (13.12.2018)



Orson Welles dizia que um diretor de cinema era na verdade uma espécie de administrador de acidentes. Interpreto isto como um cara que vai esbarrando em imprevistos à medida que avança, mas consegue assimilar esses imprevistos e encaixá-los no projeto. E de repente até consegue usá-los como trampolins para a imaginação, ou rotas de fuga para fora de um impasse narrativo.

Tem gente que acha que o cinema profissional é excessivamente planejado e burocratizado – eu, por exemplo. Mas ele precisa mesmo ser assim, porque é sujeito a uma quantidade injusta de incógnitas e de variáveis.

São trinta, cinqüenta, cem pessoas (com transporte e alimentação para todos), toneladas de equipamento, de materiais diversos. Uma logística complexa que tem necessidade de sol, ou de chuva, ou de vento, ou de mar agitado, não importa: numa filmagem (que não seja em estúdio) sempre se tem necessidade de que no dia de amanhã a Natureza se comporte exatamente assim.

Lembro de novo a história de que Nelson Pereira dos Santos arribou-se do Rio de Janeiro com sua equipe para ir rodar Vidas Secas na Bahia, mas quando chegou lá tinha chovido, o Sertão estava num verde constrangedor. Nelson hospedou todo mundo, mexeu nuns papéis, escreveu, rascunhou, e eles fizeram Mandacaru Vermelho pra não perder a viagem.

Um cineasta que depende do tempo, inclusive meteorológico, é uma espécie de lavrador, sempre de mão à testa, perscrutando o horizonte. Tal como o plantador, ele precisa de uma conjunção de conveniências que não dependem dele.

Isso é na escala mais ampla, mas na escala miúda do dia de filmagem as coisas não são diferentes. O movimento de câmera imaginado não vai ser possível por uma razão técnica qualquer, e a cena tem que ser concebida de novo, de improviso, com a equipe toda esperando.

Uma história do folclore de Hollywood fala da demora de Chaplin para resolver uma cena crucial de Luzes da Cidade, onde ele precisava fazer com que a vendedora de flores, que era cega, pensasse que o vagabundo Carlitos era um sujeito rico. A equipe ficou ganhando diárias e devorando quentinhas durante dias e mais dias até que o diretor teve o “eureca!” e filmou a cena. (Ele fez o vagabundo atravessar uma rua com o sinal fechado passando por dentro de uma limusine com o banco de trás vazio; ao ouvir a porta da limusine batendo, a cega pensa que ele é o dono do carro.)

Alguns diretores são extremamente minuciosos no roteiro justamente para evitar esse tipo de ocorrência; para reduzir ao máximo a chance de um imprevisto. Alfred Hitchcock e Luís Buñuel eram famosos pela exatidão do seu planejamento. Hitchcock desenhava tudo em storyboards com tal precisão que, se quisesse, bem poderia ir para casa e deixar que um assistente qualquer coordenasse a filmagem em si. Buñuel fazia apenas um take de cada cena, para economizar negativo, o que deixava os montadores de cabelos brancos, porque se um daqueles takes se perdesse não teriam um take alternativo para substituí-lo. Roberto Farias era um diretor meticuloso e prático: Walter Carvalho conta que em Os Trapalhões no Auto da Compadecida praticamente todos os planos filmados foram usados no filme.

Não se pode aplicar os critérios de um cinema produzido assim a um outro tipo de cinema onde uma equipe pequena sai para a rua com duas ou três páginas de diálogos e de indicações, rabiscadas à mão. Esta é um sistema que não apenas está pronto para acolher o imprevisto, mas também faz dele um ingrediente essencial.

A definição de Orson Welles citada no início poderia ser modificada então para “administrador de imprevistos”, porque existem também os acidentes positivos, que vêm para ajudar, e não para atrapalhar. Tudo que não é previsto pode gerar numa tensão num filme de preparação muito rígida, mas pode ser uma resposta bem vinda num tipo de produção que não se importa de acolher o que lhe cai do céu.

E não só nesse tipo. Stanley Kubrick, durante a produção de 2001, uma Odisséia no Espaço, estava encalacrado com o problema da famosa sequência em que o computador HAL se rebela contra os astronautas e tenta assumir sozinho o controle da missão.

Kubrick precisava mostrar que os dois astronautas, interpretados por Keir Dullea e Gary Lockwood, conspiram entre si para desligar HAL, mas este toma conhecimento do plano. Foi Lockwood quem sugeriu a Kubrick a idéia de que os astronautas se trancassem numa pequena cápsula para discutir o assunto, com o sistema de som desligado, mas o computador fosse capaz de ler os seus lábios, o que é indicado com movimentos laterais da câmera (ponto de vista de HAL) para a boca de um e do outro, alternadamente.

Idéias dos atores são bem vindas quando de fato se enquadram no tom do filme e contribuem para o roteiro. O ator Rutger Hauer, que faz o andróide Batty em Blade Runner de Riddley Scott, foi um entusiasta do filme desde o início, um dos que mais acreditavam  estar trabalhando num futuro clássico do cinema. A cena da morte do andróide no final, na cobertura de um prédio banhado pela chuva, murmurando lembranças das batalhas que presenciou, e soltando uma ave que sobe voando ao céu, foi em grande parte uma contribuição do ator, assimilada e incorporada pelos roteiristas e pelo diretor.

Quando existe esse tipo de sintonia entre diretor e elenco, qualquer imprevisto pode ser transformado de acidente em efeito. No filme Django Livre de Quentin Tarantino há uma cena famosa em que Django e seu comparsa estão jantando na mesa de um fazendeiro (Leonardo DiCaprio) do qual pretendem roubar uma escrava. O fazendeiro acaba descobrindo; fica furioso, ergue-se na mesa e começa um discurso violento contra os visitantes e contra os negros em geral.

Na empolgação do discurso, DiCaprio, que segurava uma taça de vinho, quebrou a taça sem querer e deu um corte fundo na mão, que começou a sangrar, mas ele continuou “no personagem”, sem interromper a cena, e o diretor também mandou seguir. Ele esfregou a mão ensangüentada no rosto da escrava, e subiu o tom do discurso enquanto envolvia a mão num lenço. O pequeno acidente acabou tornando a cena melhor do que era, devido à capacidade de improvisação do ator e à percepção do diretor – que se fosse um cara menos experiente talvez tivesse gritado: “Corta!” ao ver o acidente.

Estes exemplos são exemplos extremos. Cada dia de filmagem, desde o mais caro blockbuster de super-heróis até um curta-metragem feito por estudantes, está cheio de exemplos dessa dimensão aleatória do cinema , cuja essência pode ser definida mais ou menos assim: É indispensável planejar, e é indispensável estar aberto para o que não pôde ser previsto.



domingo, 9 de dezembro de 2018

4412) Contracapa de Tinder (8.12.2018)


(ilustração: Jacek Yerka)

&  ficou rico inventando um chiclete que quanto mais a gente masca mais doce ele fica

&  era um desses edifícios modernos, com ar condicionado na garagem, playgrounds étnicos e condomínio por meritocracia

&  gosto de música de vanguarda, mas não acho que já tenhamos esgotado as potencialidades do bongô e do charango

&  é tudo uma disputa de temponautas, uns querendo voltar para abril de 64 e outros para maio de 68

&  religião de pobre é para amortecer terrores, religião de rico é para diluir remorsos

&  o problema não é nem fazerem lavagem cerebral na população, é o preço que cobram!

&  passou o tempo do jogo-de-cintura na política, agora é dança-do-ventre escancarada

&  nem sempre um cara tem boas intenções, o que tem é apenas uma boa justificativa

&  e assim chegamos ao paraíso da cerveja sem álcool, do café sem cafeína e do mertiolate que não arde

&  e eu fiquei mais cheio de dedos do que um polvo

&  supor uma colisão transtemporal que traga ao mesmo tempo, para um quarto de hotel, todo mundo que já se hospedou lá

&  “você parece muito inteligente quando está calado, devia explorar mais essa sua faceta”

&  o Absurdo produz no real uma fratura exposta onde a gente espalha pomadas de racionalização

&  um sertanejo e um ipanemense são dois planetas tentando se  alcançar sem espaçonaves

&  minha mente é um milharal de imaginações assolado pelos gafanhotos da sobrevivência

&  bom mesmo é ler contos de terror naquelas noites de temporal em que nem mesmo um monstro se atreveria a botar o pé na rua

&  a função da esquerda é encher com o gás dos seus protestos os balões vazios da direita

&  queria voltar daqui a 100 anos pra ver como os livros resumiram esta confusão de hoje em dia

&  aqueles dias de mau humor que você descarrega chutando a perna da mesa com o pé descalço

&  é difícil o diálogo entre quem sofre de problemas crônicos e quem está com um problema urgente

&  não há nenhum problema em preservar os direitos humanos, desde que possam ser privatizados

&  a velhice tem uma cura, e é definitiva

&  tem certas pessoas que são um desperdício de ser humano

&  a primeira vítima num apocalipse é a solidariedade

&  o heroísmo individual surge às vezes para compensar um acovardamento coletivo

&  às vezes basta reformular uma pergunta e pronto, ela mesma se responde

&  o pior é imaginar que vai ser preciso meio século para que certo tipo de gente não esteja mais entre nós

&  não é por um sujeito ser um mau-caráter que ele não possa ser meio genial nisso ou naquilo

&  brasileiro acha que pagar mais caro é indício de riqueza

&  o futuro substitui o passado como um matagal ocupa um vilarejo

&  tem mulheres tão bonitas que acabam embelezando as que estão em volta delas

&  o fato de que a guerra inspira grandes obras de arte não basta para absolver a guerra

&  uma utopia é meio caminho andado para uma distopia

&  quando alguém me diz para ir direto ao ponto, eu vou direto ao ponto final

&  algumas pessoas discutem o tempo todo, mas é porque só conseguem pensar quando estão discutindo

&  o fim do mundo não vai ser com uma explosão, e sim com um blecaute









quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

4411) Lovecraft e o Modernismo (5.12.2018)



A obra de H. P. Lovecraft entrou há pouco tempo em domínio público, o que tem feito aparecer uma boa quantidade de reedições. O escritor de Providence é um dos grandes mestres da literatura de horror. Seu universo é assustador e coerente, suas histórias têm às vezes uma amplitude cósmica impressionante.

Critica-se nele um certo estilo pomposo e florido. Ele provavelmente aceitaria a crítica com resignação: dizia ser um cavalheiro do século 18 perdido nas primeiras décadas do século 20 e detestando tudo aquilo.

Era um crítico literário perceptivo. Seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (1927) tem avaliações muito equilibradas da obra dos grandes mestres do gênero. Ele era um homem conservador, aristocrata empobrecido, cheio de manias, traumas, excentricidades. Ao mesmo tempo, era capaz de manter calorosas amizades por correspondência. Era um nerd avant la lettre, um precursor do nerdismo. Suas maiores amizades foram feitas por carta e depois confirmadas em pessoa.

Como Raymond Chandler, era capaz de passar uma madrugada inteira escrevendo uma carta de 20 páginas para alguém que nunca encontrara, falando sobre qualquer coisa que lhe viesse à cabeça.

Em 1928, numa carta para a escritora Ms. Zealia Bishop, ele discutia as modas literárias modernistas da época:

Uma aplicação do moderno saber psicológico que você deve ter notado é a nova escola literária do “fluxo de consciência” (“stream of consciousness”), que cresceu de forma surpreendente nesta última década. Esta escola reconhece como princípio fundamental o fato recentemente descoberto de que nossas mentes na verdade estão o tempo inteiro repletas de mil linhas de idéias ou imagens irrelevantes ou sem ligação entre si; e que nossas ações são na verdade determinadas pela soma total desses fragmentos heterogêneos, inconscientes, muito mais do que pelo fino fio de idéias interligadas que reconhecemos em primeiro lugar por ocorrerem no nível mais elevado de nossa consciência.

Ele demonstra ter um entendimento simples e direto do processo. Cita James Joyce na prosa e T. S. Eliot na poesia, e depois enumera os autores que considera relacionados com esse novo estilo: “E. E. Cummings, Hart Crane, Aldous Huxley, Wyndham Lewis, Dorothy Richardson, os Sitwells, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Kenneth Burke, Ezra Pound, Marcel Proust, etc. etc.”

Ou seja, apesar de seu personagem de fidalgo setecentista Lovecraft era bastante bem informado sobre as vanguardas literárias suas contemporâneas. E apesar de se proclamar um tradicionalista, ele reconhecia a importância das novas descobertas da técnica da narrativa:

A arte literária, penso eu, deve continuar fiel à prática de registrar os acontecimentos externos numa ordem consecutiva; mas ela deve de agora em diante reconhecer as motivações complexas e irracionais de todos esses eventos, e deve evitar atribuí-las a causas que sejam simples, óbvias, e racionalizadas artificialmente.

Como prosador, HPL demonstra uma receptividade talvez maior do que a de muitos escritores de seu tempo diante dessas novas técnicas. Como poeta, no entanto, sua visão era mais conservadora. HPL publicou poesia nos pulp magazines, mas era sempre uma poesia de forma fixa, tradicional, rimada, metrificada, no modelo clássico.

Em outra carta de 1928, desta vez dirigida à srta. Elizabeth Toldridge, uma poetisa de Washington D. C., ele comenta:

Até onde posso ver, a importância das formas mais radicais tem sido grandemente exagerada; de fato, parece-me agora haver uma tendência de retorno à corrente principal da tradição poética. É claro que os detalhes da poesia devem sempre mudar ligeiramente de geração a geração, quando mudam a perspectiva filosófica e o senso de valores emocionais, como em qualquer cultura; e quando palavras específicas, e formas, e idéias, e imagens, ganham e perdem certas ressonâncias associativas através das novas experiências de mudança no próprio ambiente da espécie.

Essa impressão de que “as coisas mudam devagar” é o que marca a distância dele para com escritores para quem “as coisas mudam depressa” – basta pensar em contemporâneos dele como H. G. Wells.  Lovecraft tinha, mais do que uma nostalgia pelo passado, um certo apego à passagem lenta do tempo. O tempo cósmico e galáctico é aludido muitas vezes em seus contos, com projeções abismais no passado e no futuro. Mas o seu tempo humano é sempre vagaroso.

Para ele, as experiências modernistas na poesia eram “produtos caóticos”; é como ele qualifica os poemas de Eliot, Cummings e Stein.

E ele conclui:

A poesia autêntica, acredito, continuará a apresentar os elevados padrões deixados por Chaucer e os elizabetanos e os clássicos e os revivalistas românticos, e outros que mantiveram uma certa homogeneidade de atitude e modos., Ela será colorida e modificada pelas mudanças do tempo, como já o foi por mudanças anteriores; mas não acredito que irá se dissolver no caos grotesco representado por The Waste Land e Tender Buttons.

A julgar por estas amostras, dá para a gente ficar pensando que, como HPL era mais prosador do que poeta, seu julgamento sobre as novas formas de prosa acaba sendo mais compreensivo e receptivo do que sobre as novas formas de poesia.

Quando você domina uma linguagem, consegue perceber melhor quando algo novo acontece nela, mesmo que esse novo não seja exatamente afinado com o seu espírito. Mas você percebe que aquilo é novo e é importante.

Quando o poeta pedestre depende muito de ser-capaz-de-executar-a-fórmula, ele se apega à fórmula. As novas linguagens o deixam inquieto, porque elas parecem ter vindo para substituir algo que ele ainda não é capaz de descartar.











sábado, 1 de dezembro de 2018

4410) Quando a capa faz parte do livro (1.12.2018)






A capa faz parte do livro? Sim, mas ela em geral é tratada, em relação ao texto literário, como uma ilustração. A capa está para o texto assim como o cartaz está para o filme e a peça de teatro. Serve de anúncio e de interpretação do que anuncia, mas é um objeto externo, existe noutro plano de realidade.

Será possível imaginar livros cujas capas sejam parte do texto, sirvam de referência constante para o texto, obedeçam às mesmas restrições estilísticas a que os textos estão sujeitos?

Veja-se Necrológio, de Victor Giudice, uma coletânea de contos publicada em 1972. Na capa lê-se o nome do livro, o nome do autor, e este trecho: “No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. João era moço. Aque---“.

O texto se interrompe, mas prossegue intacto dentro do livro, na página 1 (não numerada): “...le era seu primeiro emprego.” Não me lembro de muitos livros cuja narrativa começa, literalmente, na própria capa.


Existem livros em que a capa fica, de maneira indireta, contaminada pelo próprio conteúdo. É o que ocorre na edição original de La Disparition de Georges Perec (1969) – o famoso “romance em francês que não usa a letra E” .

A editora Gallimard tentou preservar ao máximo essa regra estabelecida pelo autor. O título aparece não impresso, mas destacado em relevo, na capa branca. O texto do livro é impresso em tinta preta, portanto na capa e contracapa tudo que está em tinta preta obedece à regra do “romance sem E”. 

Nos trechos em que o E tem que aparecer (no nome do autor, por exemplo), é usada a tinta vermelha, para indicar outro nível do texto.


Douglas Hofstadter é um cientista de computação norte-americano que fez um dos livros mais interessantes sobre tradução literária. Ele trabalha com assuntos mais amplos: pesquisa de inteligência artificial, o uso de símbolos, a transmissão de informação original sob outras formas, etc.  Ora, tudo isto tem a ver com a tradução literária, que ele examina de diversos ângulos.

Clément Marot, um poeta francês, escreveu certa vez um poemazinho de ocasião, “Ma Mignonne”, para uma adolescente, sua amiga, que estava doente.

Hofstadter ficou obcecado pela complexidade técnica do poema aparentemente simples, e produziu um livro de 632 páginas, Le Ton Beau de Marot – In praise of the music of language (1997) examinando dezenas e dezenas de traduções (a maioria delas encomendadas por ele mesmo) de “Ma Mignonne”.

Ora, o poema original aparece na íntegra na capa do livro, projetado de maneira fúnebre na cruz de uma sepultura, mas acessível a qualquer instante para quem quiser comparar qualquer uma das incontáveis versões internas com o original francês.


Guimarães Rosa tinha um cuidado maníaco com a produção de seus livros, e em Primeiras Estórias (1962) ele incumbiu o ilustrador Luís Jardim de desenhar na capa e contracapa uma série de elementos ilustrativos dos contos (personagens, símbolos cabalísticos), que ele mesmo, Rosa, esboçava com a habilidade de bom desenhista.

Além disso, Primeiras Estórias, em sua edição original pela editora José Olympio, traz nas orelhas da capa um índice ilustrado. Junto ao título de cada conto vem uma “fita” de figurinhas que resumem visualmente a história do conto. Se não é um caso único, o “índice ilustrado” de Primeiras Estórias é uma raridade.




O francês Raymond Roussel era um poeta excêntrico que explorou maneiras insólitas de compor textos em poesia e prosa; ele conta essa experiência em Comment j’ai écrit certains de mes livres (1935).

Seu longo poema Novas impressões de África (1932) tem como peculiaridade o uso abundante de parênteses dentro de parênteses, criando textos encapsulados uns dentro dos outros, às vezes com cinco níveis de profundidade.

A tradução em inglês desse livro reproduziu na capa essa estrutura peculiar. Nela vemos o texto Raymond Roussel / New impressions of Africa / Translated and introduced by Ian Monk / with fifty-nine illustrations by H.-A. Zo / Atlas Press organizado como se se tratasse de parênteses, uns dentro dos outros.



Todos estes livros, tão diferentes entre si, mostram uma disposição em tratar “a capa como parte do livro”. Não importa se isso foi idéia do autor, ou se foi do editor, ou do ilustrador: quem trabalha num livro com esse grau de imaginação, de criatividade, está pensando no resultado final. Está tentando fazer a obra literária se expandir por todo o suporte que a conduz.



***********************

(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Metáfora Editora Segmento, SP, em fevereiro de 2013)