quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

1639) Eu sou o Leão do Norte! (13.6.2008)




A vitória do Sport sobre o Corinthians por 2x0, na quarta-feira passada, não foi apenas de lavar a alma. Foi de lavar, enxaguar, secar ao vento e ao sol. Não faço conta das besteiras e das arrogâncias que vi na imprensa, pela Web afora, desde que na semana anterior o Corinthians tinha ganho o primeiro jogo das finais por 3x1. Para uma parte (sempre faço a ressalva: uma parte, e não calculo que seja a maior parte) da imprensa e da torcida de São Paulo, a decisão já estava ganha, e o único contratempo era ter que ir ao campo do adversário para receber a Copa do Brasil e dar a volta olímpica.

É impressionante como os times de futebol se comportam de maneira suicida, mesmo carecas de saber o que vai lhes acontecer. São como aqueles personagens dos filmes de terror, que ouvem um barulho no porão e levantam a tampa para ver o que tem lá embaixo. Os times de futebol geralmente ganham quando jogam para ganhar, e perdem quando jogam para se defender. No Morumbi, o Corinthians encurralou o Sport no primeiro tempo, botou 2x0. Contou com a sorte no segundo, porque quando o Sport dominou por completo a partida e perdeu várias chances, o time alvinegro fez o terceiro num contra-ataque implacável. Os 3x0 em São Paulo obrigavam o Sport a uma vitória de 4x0 em Recife, o que, convenhamos, seria dificílimo. Mas no fim do jogo Enílton fez um gol cuja pedra eu cantei na hora: “Vamos ganhar o título por causa desse gol”.

No Recife, aconteceu o que eu rezava para que acontecesse: o Corinthians entrou para se defender, chamando o Sport sobre si. Tire-se o chapéu à marcação corinthiana, que, à parte algumas violências, foi incansável e prendeu o Sport, até que num lançamento rápido Carlinhos Bala (uma espécie de Chico César atlético) desferiu um tijolo no canto direito, e cinco minutos depois o bom goleiro Felipe acabou aceitando um chute que ele pensava que ia desviar no atacante.

Vi na imprensa que o time do Sport tem média de idade de 30 anos. Deve ser. Tem até Leandro Machado, que jogou aqui no Flamengo quando meus cabelos eram todos pretos. Não vejo jogos do Sport, que só passam na TV daqui quando ele enfrenta um time carioca. Vi os dois jogos com o Vasco e os dois com o Corinthians. O Sport atual é um time rápido, habilidoso, firme, com a cabeça equilibrada. Jogou no Morumbi e em São Januário com desenvoltura, com cabeça erguida, como se estivesse em sua própria casa. Vi-o jogar mal em vários momentos das partidas, mas não o vi nunca jogando como time pequeno.

Quando eu era garoto, meu pai me levou de Campina ao Recife para assistir um Sport x Corinthians na Ilha do Retiro, que o Corinthians ganhou de 5x2. Vi Alemão, zagueiro rubronegro que tinha o chute mais forte do Brasil, ir cobrar uma falta dentro do grande círculo, e o goleiro Cabeção pedir barreira. Jornadas épicas que não esqueço, como meu filho talvez não esqueça o jogo que vimos esta noite, a noite em que o Leão rugiu mais alto.

1638) A visão da FC (12.6.2008)



Existem muitas diferenças entre a literatura fantástica e a literatura do “mainstream”. (“Mainstream”, correnteza principal, é um termo muito usado pela crítica para designar a parte principal da literatura de uma época, a tendência dominante. A correnteza principal da literatura de hoje no Ocidente é o romance realista.) Se considerarmos todos os títulos produzidos durante um ano, ou dez anos, veremos que a literatura fantástica (incluindo ficção científica, terror, fantasia, etc.) é apenas uma pequena parte disso. Apenas uma fatia numa pizza redonda e gigantesca. Em outras culturas (no Oriente, p. ex.) o romance realista é cultivado mas não tem uma predominância tão grande. Achar que a literatura serve para reconstituir o mundo em que vive o autor é um cacoete cultural do Ocidente.

Vista desse modo, a literatura fantástica é uma literatura menor: menos títulos, menos autores, menos leitores. É como os partidos pequenos num Congresso, que precisam sempre estar se associando aos partidos maiores para ganharem um mínimo de visibilidade.

Tudo isso ocorre porque a literatura realista pretende lidar com algo mais importante, a Realidade, e o fantástico atrai menos leitores porque lida com coisas tidas como secundárias como a imaginação, o sonho, o irreal, etc. Mas se pegarmos essas duas formas de narrativa e examinarmos como elas abordam a Realidade, vamos ter um gráfico que é o contrário do anterior. Porque o Realismo aborda apenas uma fatia de uma imensa pizza, e o Fantástico aborda a pizza inteira.

O mundo que vemos à nossa volta não é a única coisa real. Coisas imateriais, como as representações subjetivas do pensamento, são reais. O que se passa na cabeça de cada um de nós também é real. Um pensamento não precisa estar “certo” para ser real. As idéias erradas também existem, também são entes, mesmo que sua interpretação dos fatos esteja equivocada. A teoria de que a Terra é oca, por exemplo, é real, existe, embora a Terra não seja oca. Os discos voadores, para Jung, eram uma realidade psíquica tão verdadeira quanto qualquer outra realidade psíquica baseada em objetos concretos. É um erro afirmar que algo, simplesmente por não existir no mundo material, não existe. Se fosse assim, toda a Filosofia seria irreal, porque os conceitos da Filosofia só existem em nossas mentes. Não há filosofia na Natureza.

O fantástico lida com sonhos, com fantasias; propõe situações absurdas que jamais poderiam ocorre no mundo aqui em redor. Através da ficção científica, descreve planetas imaginários, civilizações inexistentes. E tudo isso, curiosamente, é tão real – no plano das idéias – quanto descrições de cavalos e bois, ou histórias ambientadas na corte de Luís XIV. É irônico que a parte maior da pizza literária (o mainstream) se dedique apenas à parte menor do Real, e que caiba à fatiazinha representada pelo Fantástico a abordagem da pizza inteira do Universo.

1637) A micropulverização do empreendedorismo (11.6.2008)



No meio das entrevistas que cercam o lançamento de seu disco Banda Larga Cordel, Gilberto Gil fez alguns comentários sobre aquilo que o pessoal chama “a nova cena musical”. Estão brotando nas periferias e nas regiões remotas do Brasil uma série de fenômenos musicais que a gente não sabe classificar facilmente. É baile funk, é forró de plástico, é tecnobrega, é reggae-maranhense... Sabemos pouco a respeito disso, até porque o que sabemos é de segunda mão, pelo menos no meu caso. Assistir DVDs ou matérias de TV não vale. Se valesse, amigo, eu já tinha ido à Lua e voltado, nas asas de Stanley Kubrick. O que vale é conhecimento “in loco”, é ter mergulhado durante alguns dias, no mínimo, no olho desses furacões, conversado com as pessoas, visto o mundo delas e examinado a relação entre aquela música e aquele mundo.

Diz Gil do tecnobrega paraense: "Eles têm ali palcos ambulantes, ao estilo do trio elétrico, e essa nova cena passa batida pelos jornais, rádios e estúdios de TV de São Paulo e Rio de Janeiro. Muitas vezes não ficam sabendo de nada disso, dessas realidades novas com maquinarias novas." Para algumas pessoas a simples menção da palavra tecnobrega produz comichões equivalentes aos do pó-de-mico, mas essas bandas, como a famigerada Calypso, representam, pelo menos como alternativa de comércio, uma realidade nova. Não do ponto de vista estético, porque sua música nada traz de novo (ou, para mim, de interessante), mas porque começam a demonstrar a força econômica do show-business paralelo. É diferente da tradicional “música alternativa”.

Em primeiro lugar, essas bandas – que se auto-produzem – ganham rios de dinheiro. Seu perfil é diferente do perfil das bandas tipos mastruz-com-leite, bandas de um nome só, nas mãos de um único empresário. A Calypso chama a atenção por suas vendas milionárias, mas ela é a ponta de um iceberg de bandas que vendem menos do que ela – mas vendem. Diz o ministro Gil que o que está havendo, com o enfraquecimento das gravadoras e a proliferação de música digital gratuita, é um florescimento do show como principal atividade econômica da música. Nas palavras dele, uma “micropulverização do empreendedorismo”. Já que se torna cada vez mais difícil vender os 100 mil discos que há dez anos eram favas contadas a partir de certo patamar de sucesso, o que conta agora é a expansão do mercado e a tentativa de assegurar continuidade a longo prazo, em vez do enriquecimento a curto prazo.

"Não há condição de todo mundo ser rico, então todo mundo quer viver e sobreviver”, diz Gil. “Então a arte passa a ser informada por isso, a produção passa a ser informada por isso. Enfim, a vida. Processos organizados com liberdade, com fragmentação empreendedora, protagonística". A banda Calypso já vendeu milhões de discos e recusou todos os convites das gravadoras. É o equivalente atual dos 100 mil discos do Boca Livre e 150 mil de Arrigo Barnabé no começo dos anos 1980.

1636) Um boi filosofando (10.6.2008)




(The Minotaur, de George Frederick Watts)

“Os seres humanos são angustiados por serem bípedes. Vivem sempre com medo de cair, por isso constroem tantas edificações, para servir-lhes de apoio. Falta-lhes a base sólida das quatro patas. Locomovem-se mal, sempre à feição de quedas para a frente. Uma perna os projeta para diante, como numa queda auto-produzida, e a outra perna tem que se adiantar para salvá-los deste pequeno suicídio; mas olhem, agora é esta própria perna salvadora que os arremessa de novo para diante e cabe à outra avançar para salvá-los. Como pode prosperar em paz uma espécie assim masoquista, sempre presa à vertigem da queda?

“Como não sabem caminhar, são forçados a inventar meios de transporte pesadíssimos, custosos, que demandam a brutal extração de milhões de toneladas de minérios. Destroem tudo em volta para poderem dispor desses veículos ruidosos, porque para eles caminhar é um suplício, e precisam ser conduzidos sentados de um local para outro. Como a vertigem da queda e da auto-destruição está gravada em seus cromossomos, fazem com que suas engenhocas mecânicas se projetem pelo ar ou rolem pelo solo a velocidades absurdas, que freqüentemente os levam a colisões, esfrangalhamento físico, mortandades coletivas. Tudo isto porque não aprenderam a caminhar de quatro.

“Não sabem se alimentar. Não sabem pastar em paz como o fazemos, nem são aparelhados para a caça como a onça e outros predadores nossos. São poucas as criaturas que eles conseguem abater com as mãos nuas. Criam, para a caça, instrumentos cada vez mais complicados e custosos, indo na contra-mão da Ciência que deveria possibilitar-lhes a evolução rumo ao mais simples e mais eficaz. Com os instrumentos acaba ocorrendo o mesmo que com os transportes. Seus criadores acabam sentindo-se na obrigação de utilizá-los o tempo inteiro, e utilizá-los no máximo de sua eficiência, o que significa que acabam utilizando-os contra si próprios, para que os instrumentos não fiquem ociosos.

“Vai ver que tudo decorre da tragédia que lhes sobreveio um dia: a de deixarem de fitar o chão. Quem fita o chão não esquece a terra. Quem fita o chão é obrigado a lembrar-se o tempo inteiro de que vive num planeta onde existem a terra, a grama, a areia, a pedra, as formigas, as minhocas. Quem fita o chão nunca esquece que faz parte dele. O homem desprendeu do chão sua metade da frente, verticalizou-se, lançou seu corpo no desequilíbrio e no trauma de uma queda permanentemente evitada. Deixou de prestar atenção no lugar onde pousa os pés para fixá-la no horizonte inatingível e no céu mais inatingível ainda. Começou a imaginar como seria chegar ao horizonte, e como seria pisar no céu como se fosse um chão. Enfeitiçado pelo horizonte, pôs-se em movimento. Enfeitiçado pelo céu, passou a desprezar a terra onde pisa, e esqueceu que é feito de terra, que vive da terra, que só come o que vem da terra – e que não passa, como nós, de uma refeição que a terra prepara para si própria.”




1635) Com música nos ouvidos (8.6.2008)



(Kipling, por Don Coker)

Já se disse que a poesia vai deixando de ser poesia à medida que se afasta da música. Claro que isto não vale para as formas mais recentes de poesia, formas visualistas, geometrizadas, que usam o Espaço em vez do Tempo; formas que são criadas para a Página e só se realizam na Página. Nada contra! Mas a presente consagração acadêmica que esse tipo de poesia vem obtendo desde o Concretismo dos anos 1960 precisa ser contrabalançada com um saudável retorno à poesia que se realiza no Tempo, e não no Espaço; a poesia que pensa nos sons das palavras, e não no formato das letras que as compõem. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, companheiros!

Deus me livre que um dia alguém baixe uma Medida Provisória obrigando todo poema a ter métrica e rima. Digo isto, não porque deteste a métrica e a rima, mas porque as reverencio, cultivo e defendo. Não quero ninguém legislando minha liberdade, ninguém interferindo de fora num domínio que pertence apenas a nós. Porque existem dois tipos de poetas. (OK, existem muitos mais – mas para efeito do presente artigo são dois.) O primeiro é o Poeta Músico, aquele que vê na poesia uma extensão da canção oral das tribos antigas, dos cantos em volta da fogueira, dos contadores de histórias que recorriam a melodias monocórdias e recorrentes para hipnotizar suas audiências e implantar nelas os memes do seu conto. E existe o Poeta Artista Plástico, filho de Johann Gutenberg e Marshall McLuhan (esse casal perpetuamente em crise), filho da revista ilustrada, da foto, da TV, do desenho industrial, da letra-set e do computador. O poeta que trabalha e retrabalha seus caligramas, seus poemas-processo, seus grafismos e leiautes.

Augusto dos Anjos declarou que compunha seus poemas mentalmente, recitando-os e repetindo-os de forma compulsiva, antes de passá-los para a página. Ainda hoje me pergunto se poemas gigantescos como “As Cismas do Destino” foram compostos assim (o que duvido). Outros autores fazem o mesmo por uma questão de hardware. Poetas com deficiência visual, como Jorge Luís Borges e Glauco Mattoso, sentem-se mais à vontade com formas fixas, como o soneto. Elas lhes possibilitam a composição puramente mental (tanto Borges quanto Glauco são notórios insones), pois a própria estrutura de métrica e rima auxilia a memorização.

Diz-se que Rudyard Kipling costumava compor seus poemas de cabeça, enquanto cuidava do jardim. Ficava solfejando hinos protestantes, baixinho, mas as pessoas da família sabiam que ele estava de certa forma “botando letra” nesses hinos – estava compondo um poema valendo-se da estrutura mnemônica do hino. Fico pensando que curiosa tese de doutorado isto poderia render, se alguém de cultura inglesa-protestante se desse o trabalho de comparar os poemas do mestre aos hinos em voga durante o seu tempo de vida. Como dizia o poeta – “de la musique, avant toute chose!”