domingo, 27 de fevereiro de 2022

4798) "O Rio e a Morte": um revólver em cada cinto (27.2.2022)




Os violentos precisam da violência alheia, para justificar a sua. Claro que eles mesmos podem dar início às hostilidades; mas... se o contexto é minimamente civilizado, sempre é prudente poder alegar legítima defesa. É um dos pretextos mais nobres para estourar os miolos de alguém.
 
É o princípio básico do western americano. Nos famosos duelos na rua vazia, com dois pistoleiros caminhando devagar um na direção do outro, a regra é clara. Quem sacar primeiro é o agressor, portanto perde a razão. A razão passa a ficar do lado de quem, em legítima defesa, saca depois. O segredo, portanto, é ser mais rápido no gatilho – sacar depois, e atirar primeiro.
 
Eu entendi isso aos dez anos de idade, vendo faroeste nas matinais do Babilônia, comendo castanha confeitada, batendo com os pés no chão e gritando, e todo mundo fazendo a mesma coisa.


No livro A Linguagem Secreta do Cinema (Ed. Nova Fronteira, 2006), Jean-Claude Carrière faz uma análise minuciosa (pág. 97 e seguintes) desse clichê do duelo dos pistoleiros, mostrando o emaranhado de improbabilidades que ele envolve. É preciso que um saque primeiro, e que o outro atire primeiro. Uma decisão que às vezes depende de um fotograma.
 
Luís Buñuel, o grande parceiro de Carrière, era um aficionado das armas de fogo, e diz-se que o hábito do tiro ao alvo contribuiu para aumentar na velhice a surdez que já o incomodava desde cedo. Gostava de atirar. Não tinha preconceito contra as armas. Seus filmes surrealistas gostam de provocar o público com cenas de tiroteios gratuitos e fuzilamentos descontraídos.
 
Esse mesmo Buñuel se confessou, mais de uma vez, estarrecido com a propensão dos mexicanos para a violência armada e o assassinato por bobagens. Ele foi morar no México com mais de 40 anos, e viveu ali até o fim da vida.
 
Seu filme mais voltado para esse tema é O Rio e a Morte (“El Rio y La Muerte”, 1954). Não é um dos seus melhores filmes dessa fase, mas é um filme que ajuda a rastrear essa tendência do México a ser um dos países mais violentos do mundo.
 
El Rio y la Muerte fala de um povoado à beira de um rio largo e vagaroso. Uma enchente do rio destruiu a vila. Ela foi reconstruída na margem oposta, mas o cemitério permaneceu lá. Agora, a cidade vive dividida entre uma rixa sangrenta entre as duas famílias principais. Quando morre alguém nas “vendettas” familiares, o assassino cruza o rio a nado e se refugia no mato (os Anguianos) ou numa montanha próxima (os Menchaca). E depois da fuga o morto faz a mesma travessia do rio, de canoa, para ser sepultado.


É uma geografia simbólica interessante, essa que coloca a vida normal do vilarejo numa margem, e na outra o local onde os mortos são enterrados e seus matadores se escondem.
 
O filme está aqui, no YouTube (em espanhol, sem legendas):
https://www.youtube.com/watch?v=P5550SYIM2Q&t=347s
 
Há poucas imagens típicas de Buñuel no filme. Um foragido abre a carta da noiva usando um facão. Depois de marcar com ela um encontro clandestino, à noite, ele chega. Os dois se abraçam. Corta para um galo cantando, cercado de galinhas. O casal entra no mato...
 
A maior parte do filme, a parte do meio,  ocorre num flashback. Gerardo Anguiano, filho de um homem morto pela guerra de famílias, é um médico jovem que mora na capital, e não quer se envolver com vinganças, o que decepciona sua mãe, cujo marido foi assassinado. É curioso que nesse vilarejo as mulheres são grandes incentivadoras do machismo, e obrigam maridos e filhos a andar armados. A mãe de Gerardo, D. Mercedes, ao discutir com um amigo da família, desabafa: “Você sempre foi um covarde, como todos da sua família. Se não tem a honra de se defender, vá para casa e vista uma saia.”


Gerardo tem um problema de saúde, está em tratamento num “pulmão de aço”, e ali recebe a visita do seu inimigo Rômulo Menchaca, que vem provocá-lo a um duelo quando for ao vilarejo. Menchaca se irrita com o pacifismo do outro e o esbofeteia. Depois pede desculpas por bater num homem indefeso, mas o desafio ao duelo fica de pé.
 
O filme é quase didático na sua mensagem anti-armamentista, o que desagradava Buñuel: “É meu único filme que defende uma tese moral, algo que me deixa incomodado.” No livro em que discutiu sua obra com os jornalistas José de la Colina e Tomás Pérez Turrent (Objects of Desire, na tradução inglesa), ele comenta, no capítulo 15:
 
Eu queria acima de tudo ter a chance de mostrar uma tradição autêntica do litoral da região de Guerrero: quando alguém é assassinado, o caixão é levado de casa em casa da família do morto, onde todos bebem. Depois levam para a frente da casa do assassino, que já fugiu, e os parentes do morto gritam: “Apareça, filho dessa, filho daquela! Venha pagar pelo seu crime!...”
 
Há uma cultura da morte “por dá cá aquela palha”, o que aparece na sequência inicial, num batizado, quando dois compadres bebem e juram amizade, um deles diz uma piada boba, e o outro o mata com uma facada no estômago. Nas suas memórias (Meu Último Suspiro, Ed. Nova Fronteira, 1982, trad. Rita Braga), Buñuel explica:
 
Essa atitude “viril”, e consequentemente a situação da mulher no México, tem uma origem espanhola que é inútil negar. O machismo procede de um sentimento muito forte e vaidoso da dignidade do homem. É extremamente melindroso, suscetível, e não há nada mais perigoso do que um mexicano que nos olha calmamente e nos diz, com voz suave, porque, por exemplo, recusamos beber com ele uma décima tequila, uma frase sempre perigosa: “ – Me está usted ofendiendo. (O senhor está me ofendendo)” Em situações como essa é melhor beber o último copo.  (pág. 292)
 
Há um culto à honra, sempre fragilíssima; às vinganças longamente amadurecidas e anunciadas; à violência estapafúrdia e grotesca. Um diálogo do filme diz:
 
– Me lembro quando Pablo Codina entrou a cavalo no velório de Anselmo Lepe, cortou a cabeça do morto, amarrou-a e levou-a para a cantina. 
– Sim, mas a família do morto foi à cantina e esfolou Codina.
 
O filme tem um desfecho meio forçado. Os dois desafetos (um de terno e gravata, o outro com roupa de vaqueiro), depois de vários encontros e escaramuças, se abraçam e selam a paz. Um final tão forçado quando o de La Hija del Engano (1951), onde o diretor parece mais uma vez se curvar à tradição latino-americana do final melodramático, lacrimoso e feliz, onde “o importante é a família ficar unida”.
 
O México brutal de Buñuel nos anos 1950 é o mesmo México contemporâneo de Roberto Bolaño com 2666 ou de Cormac McCarthy e os Irmãos Coen com Onde os Fracos Não Têm Vez. Uma civilização onde se porta o revólver com a mesma inocência com que um sertanejo porta a peixeira.
 
Nos velhos tempos do surrealismo parisiense, circulava entre a turma de Buñuel e André Breton o dito de que “o ato surrealista mais simples seria empunhar um revólver e sair pela rua disparando a esmo, abatendo pessoas”. Parece que alguns anos de México e de vida real curaram o diretor espanhol desse impulso juvenil.   
 

 
 
 
 







quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

4797) O assassinato de Olof Palme (24.2.2022)



Perto da meia-noite de 28 de fevereiro de 1986, o primeiro-ministro da Suécia, Olof Palme, foi atacado a tiros numa rua de Estocolmo, quando saía do cinema com a esposa. Era inverno, havia pouca gente na rua, alguns transeuntes pararam e tentaram socorrê-lo. A esposa de Palme estava ferida com um tiro de raspão nas costas. Os dois foram levados para o hospital, onde Palme morreu pouco depois.
 
Matar um primeiro-ministro no meio da rua parece uma coisa arriscada, mas o fato é que até hoje o culpado pelo assassinato de Palme não foi oficialmente descoberto, embora a polícia fizesse algumas prisões (logo tornadas sem efeito) e explorasse várias linhas de investigação, que nunca deram em nada.
 
Uma dessas linhas é a que foi encampada pela série em exibição na Netflix, Assassinato do Primeiro Ministro (“The Unlikely Murderer”, 2021), dirigido por Wilhelm Behrman e Niklas Rockström. São cinco episódios baseados no livro do jornalista sueco Thomas Pettersson, que tem uma teoria bastante nítida (embora questionável) sobre quem é o assassino de Palme.


(Robert Gustaffson, como Stig Engstrom)

 
A série propõe a hipótese de que o criminoso é o homem que durante todo o inquérito foi chamado “o Homem da Skandia”, nome da empresa onde trabalhava. Stig Engstrom estava no local do crime, e foi uma das primeiras pessoas a prestar socorro ao primeiro-ministro. Diz ele que tentou perseguir o assassino e chamar a polícia, e que por esse motivo foi avistado, correndo, por algumas testemunhas, que o teriam confundido com o criminoso. Um dos principais “nós cegos” da investigação reside juntamente na dificuldade em deslindar o depoimento de Engstrom dos depoimentos alheios.
 
A série mostra o crime acontecendo logo nos minutos iniciais, e assume o risco de afirmar, sem sombra de dúvida, que Stig Engstrom matou o ministro. Essa teoria é minuciosamente apresentada e argumentada ao longo dos cinco capítulos desta série “fechada”. A polícia sueca, em 2020, afirmou oficialmente que Engstrom era o suspeito mais provável. O problema é que ele morreu em 2000, numa morte que pode ter sido acidente ou suicídio.
 
Filmar crimes reais não-resolvidos é diferente de filmar crimes reais que tiveram desfecho. Mais do que nunca temos a consciência de que o que vemos na tela é uma mistura de reconstituição de fatos ocorridos e visualização de fatos que ninguém pode provar que aconteceram.
 
Por que a polícia não solveu o crime?


(Mikael Persbrandt, como o chefe de investigação Hans Holmer)


Principalmente pela desorganização e falta de “cancha” da polícia sueca para solver um caso onde as pressões políticas e populares (da mídia, inclusive) eram enormes. Jogo de interesses, narcisismo, briga pelo poder, policiais sabotando-se mutuamente em busca de holofotes e promoção pessoal.
 
Podemos chamar de “política policial” ao jogo de poder entre os encarregados das investigações criminais, e isso muitas vezes está ausente na literatura policial clássica. Mesmo em romances do chamado “police procedural”, os investigadores são muitas vezes mostrados como um corpo homogêneo, onde as dissensões são apenas quanto à interpretação das pistas, etc., mas sem nenhuma motivação visível em termos de luta pelo poder dentro da própria estrutura policial.
 
Não é o que se vê na série, que mostra a polícia como um ninho de cobras, num retrato crítico só inferior ao modo como retrata “o Homem da Skandia”, um indivíduo patético, mesquinho, em busca de posições de poder, ressentido com tudo e com todos, o que o levou (diz a série) a descarregar num adversário político as frustrações de uma vida inteira. Nem a polícia o levou a sério. Somente Pettersson, um repórter que pegou o bonde andando anos depois.
 
A literatura policial, desde o seu começo, usa muito o Jornalista em contraposição ao Detetive, oficial ou particular. Um clássico de 1907, O Mistério do Quarto Amarelo, de Gaston Leroux, mostra o repórter Rouletabille metendo o bedelho na investigação de um crime, onde acaba por achar a solução.
 
Um policial da Scotland Yard ou um detetive particular da Califórnia investigam crimes, respectivamente, por ordem dos seus superiores ou por incumbência de um cliente. O jornalista representa um tipo diferente de empreitada. Seu objetivo não é punir o criminoso, é revelar sua identidade, noticiar “o que de fato aconteceu”. O fato de não ser um funcionário público faz com que ele trabalhe com menos recursos (equipes, laboratório, poder de prisão, etc.), mas por outro lado lhe dá mais agilidade. Pettersson (pelo menos o Pettersson mostrado na série que ele próprio roteirizou) consegue atravessar o emaranhado de pistas falsas e detalhes irrelevantes e chegar à “solução” do crime.
 
A série é muito bem escrita e dirigida, e o ator que faz o papel do “Homem da Skandia” é excelente em sua criação do típico “Tiozão do Pavê”: titubeante, vítima de bullying-adulto pelos colegas, implicante, arrogante, viciado em pequenas mentiras, ansioso por notoriedade. Existe uma tensão visível entre ele e a esposa (interpretada por Eva Melander), num daqueles casamentos bergmanianos feitos de meias palavras e perguntas não respondidas. Com o passar dos dias e dos anos ela vai cada vez mais se convencendo de que alguma coisa não está batendo bem no comportamento do marido, cujas fraquezas ela conhece melhor do que ninguém.



 
 
 







segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

4796) Para que obedecer às regras? (21.2.2022)




O que seria o mundo, sem regras? Um paraíso. O que seria o mundo, sem regras? Um inferno.
 
Estou dizendo “uma regra” no sentido de: “Uma lei, uma ordem, uma determinação estabelecida por uma instância superior, com o objetivo de equilibrar, harmonizar ou padronizar diferentes comportamentos coletivos”.  
 
Regras foram feitas para serem obedecidas, mas sem muito fanatismo. E podem ser desobedecidas, mas nos limites do bom senso.
 
Penso nisso quando lembro uma história que alguém me contou, de quando estava numa cidade da Suíça. Era madrugada. Rua deserta, silêncio total, e um pedestre veio pela calçada, a única pessoa à vista, parou na esquina e ficou esperando durante quase um minuto até o sinal de trânsito ficar verde para o pedestre. Então, atravessou.
 
Isso é certo? É errado?
 
As regras de trânsito me parecem um bom exemplo de regras de comportamento coletivo. Precisamos delas para controlar o caos que é o deslocamento de veículos e de multidões, ao mesmo tempo, em espaços restritos. Quando todo mundo quer passar com o carro ao mesmo tempo e todo pedestre quer atravessar ao mesmo tempo, há mortes, acidentes, tudo que não presta.
 
Alguma regra de trânsito teve que ser inventada, para que as pessoas não fossem mortas por colisões de bigas, charretes, carruagens, tílburis, cabriolés, automóveis.
 
Não é vergonhoso obedecer a uma regra coletiva; isso não faz de nós robôs nem zumbis. Não é vergonhoso desobedecê-la, quando achamos que ela é desnecessária ou insignificante em certo momento.


Por “insignificante” entenda-se a situação do pedestre suíço, citado acima. O semáforo está ali para proteger tanto os pedestres quanto os carros, alternando suas passagens. Já que não vinha carro nenhum, era insignificante o risco, e o cara podia atravessar sem perigo para ninguém.
 
Por que não o fez? Porque é um europeu burro, bitolado, massificado por um Estado totalitário? Não. Talvez fosse apenas um cara com alma de boêmio e olhos de poeta. Estava sem pressa. Parou porque quis. Esperou porque achou bom. E ficou conversando mentalmente com as luzinhas do semáforo, coitadas, que estavam piscando suas cores inúteis na madrugada gelada de Zurique.
 
Eu vejo mais propósito nessa atitude dele do que na minha, quando atravesso correndo a Avenida Presidente Vargas às três da tarde, cruzando seis pistas de carros que passam por mim a toda velocidade, espremendo buzinas e gritando palavrões – simplesmente porque tenho preguiça de ir até a esquina, aguardar um minuto e atravessar na respectiva abbeyroad.
 
Acontece algo parecido – por um exemplo, entre muitos – com as regras do futebol.
 
Existem para definir limites, proibições, obrigatoriedades, e com isso impor uma grade de regularidades e equivalências no interior de uma disputa. “Regularidades” para que os dois adversário saibam que toda vez que acontecer “X”, vai ser marcado “Y”; “equivalências” no sentido de que as regras valem para todo mundo, sem privilégios.
 
O que acontece é que jogadores de futebol passam o jogo inteiro forçando os limites da regra. São como pedestres teimosos, que atravessam a rua dando drible nos carros, ou como motoristas impacientes que furam o sinal vermelho porque têm medo de assalto, ou ciclistas que invadem o espaço dos pedestres para se defender dos carros, ou pais que estacionam em fila dupla diante de uma escola “só por um instantinho, não dá pra descer...”  Enfim, todo mundo que viola a regra tem excelentes motivações pessoais para isso.


Toda esta lenga-lenga é para abordar um assunto bem diferente: as regras literárias. Existem regras na literatura?
 
Em princípio, não. Existem regras na gramática, na ortografia. As regras servem para organizar o uso das conjunções e preposições, da conjugação dos verbos, da grafia das palavras, etc. e tal. Mas isto são regras da linguagem, não da literatura.
 
Na literatura o que temos não são regras – as quais, por definição, são fixadas por grupos de especialistas designados pela sociedade. O que temos na literatura são procedimentos consagrados, habituais, costumeiros. Modos de organizar os textos para que o leitor os leia e os entenda com mais facilidade. Não têm a ver com a arte literária. Servem praticamente para qualquer texto.
 
Em muitos manuscritos antigos não há separação de palavras, por exemplo. Era o modo de escrever daqueles tempos.
 
Aspalavrasapareciamtodasemendadasumasnasoutrasetodomundoliasemdificuldade. Até que alguém teve a brilhante idéia do espaço em branco. (Acho que no tempo do papiro e do pergaminho eles procuravam economizar ao máximo a superfície onde escreviam.)
 
Os sinais de pontuação, a divisão do texto em parágrafos e em capítulos, o uso de letras maiúsculas para indicar palavras especiais (começo de frase, nome próprio, etc.), tudo isso foi se construindo ao longo de séculos, mas não são regras, são costumes. Usa quem quer.
 
Tudo isto, no entanto, não pertence propriamente ao domínio da arte literária, e sim da técnica de publicação de textos. São universos que se interpenetram, se interseccionam, mas cada um tem seu próprio regulamento.


A teoria da literatura é cheia de “regras”, mas essas pseudo-regras são arbitrárias, são consensos estéticos a que alguns grupos de pessoas chegam, combinam entre si, e passam a ensinar às outras. As “regras” narrativas que valiam para os folhetins franceses na época de Alexandre Dumas não são necessariamente as mesmas que valiam para a literatura policial norte-americana no tempo de Dashiell Hammett, nem as que valiam para o romance histórico alemão da época de Thomas Mann, ou a que valia para o conto brasileiro em seu florescimento na década de 1970.
 
São regras? Não: são formas de dizer, de falar, de contar, de exprimir, de sugerir através de palavras. Formas diferentes de construir personagens, de reproduzir o que se passa na mente deles, de narrar acontecimentos, de dialogar com o leitor.
 
Todo mundo conhece aquelas famosas listas: “Doze Conselhos da Escrita por Philip Roth”, ou “Seis Maneiras Infalíveis de Contar uma História, por Barbara Cartland”, ou “Os Dez Mandamentos do Escritor, por Balzac” ou por quem quer que seja. São regras universais? Não, são dicas, são conselhos onde um autor diz: “Olha, isto aqui funciona comigo, talvez funcione com você”.
 
Por outro lado, quando essas “regras” viram modismo, maneirismo, rotina, logo aparece uma nova geração de autores e autoras bradando que “daqui pra frente vai ser diferente” e instituem uma vanguarda, uma renovação, seja lá o que for. O que é ótimo; isto é a respiração normal da literatura. Novas vozes, novos olhares, novas maneiras de pensar e de dizer.
 
Não há regras? Ao contrário: há milhões de regras, propostas por milhões de autores. Você escolhe as regras que quer seguir, deixa as outras de lado. E se quiser, você propõe novas regras que por acaso estejam faltando.
 



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

4795) Dinheiro demais é veneno (18.2.2022)


 
Dois documentários em exibição no Netflix são tão parecidos que poderiam ser vistos como os dois episódios iniciais de uma série. São filmes diferentes, porém, feito por pessoas diferentes e abordando dois assuntos distintos.
 
O primeiro é The Tinder Swindler (Felicity Morris, 2022), sobre um picareta que se fingia de milionário no Tinder para arranjar namoradas ricas e engalobar o dinheiro delas.
 
O segundo é Fyre: The Greatest Party that Never Happened (Chris Smith, 2019), sobre um festival de música pop numa ilha distante, onde nada deu certo. Prejuízos milionários foram causados a um monte de gente, e o organizador de tudo acabou na cadeia.
 
Esses dois filmes poderiam ser vistos e pensados em conjunto com uma porção de outros que venho comentando esporadicamente aqui no blog: The Corporation (Mark Achbar & Jennifer Abbott, 2003), TrabalhoInterno (“Inside Job”, Charles Ferguson, 2010), Capitalismo, UmaHistória de Amor (Michael Moore, 2009), MarginCall – O Dia Antes do Fim (“Margin Call”, J. C. Chandor, 2011)...  E chega, né?  São muitos, e aconselho todos estes.

Minha mãe dizia, do alto de sua sabedoria caririzeira, que “tudo demais é veneno”. Isso vale para o dinheiro, também. O mundo neo-liberal de hoje (ao qual nosso país está atrelado) está bêbado de dinheiro, envenenado de dinheiro, e esse dinheiro nem é tão volumoso assim – ele apenas está concentrado numa lasquinha mínima da população. E isso permite a ocorrência de todos os absurdos descritos nos filmes acima.
 
Para ser justo, afirmo também que livro demais é veneno, café demais é veneno, cerveja demais é veneno, tudo demais é veneno.


 
James Joyce, num dos melhores contos de Dublinenses (“After the Race”, 1914), afirmou com lucidez profética: “Rapid motion through space elates one; so does notoriety; so does the possession of money.”
 
Joyce estava escrevendo no contexto da febre nascente do automobilismo, e das primeiras corridas de carros, aquelas baratinhas tossideiras e sacolejantes do começo do século passado. O movimento rápido através do espaço deixa uma pessoa inebriada; o mesmo acontece com a fama; o mesmo acontece com a posse de muito dinheiro.
 
Imagine as três coisas juntas.


Simon Leviev era um rapaz pobre de Israel, que ainda adolescente migrou para os Estados Unidos. Desde cedo começou a dar pequenos golpes. Quando entrou para o Tinder, o aplicativo de encontros, começou a se dar bem. Apresentava-se como filho de um bilionário dos diamantes em Israel. Logo no primeiro encontro, levava as mulheres para restaurantes de luxo onde o maître e os garçons o tratavam com atenção e familiaridade. Dirigia carros caríssimos, pagava passagens de avião – era aquele tipo do cara que diz para a namorada: “Londres está muito chata, hoje. Vamos jantar em Roma?...”



As mulheres caíam com gosto na conversa dele, que era bonitão e descolado. Aí começavam os problemas. “Sou um homem visado, perseguido por inimigos”, explicava ele, porque o ambiente dos diamantes envolve bilhões, interesses políticos, interesses escusos. “Estou sendo seguido... estão grampeando meu celular...”
 
Além do romance amoroso, as pretendentes estavam vivendo um romance de aventuras e se dispunham a tudo para ajudar um cara tão bacana, tão resoluto, perseguido por capangas, precisando de guarda-costas. Não há como não lembrar A Identidade Bourne, em que uma moça se mete numa intriga internacional porque simpatizou com Matt Damon.
 
E começavam os pedidos: “Bloquearam meu cartão de crédito... Você pode me emprestar 20 mil dólares? Te pago segunda-feira”. O resto está no Netflix.


(Billy McFarland)
 
O “Fyre Festival” é outra história envolvendo muita grana e muita cara de pau. O protagonista neste caso é Billy McFarland, um investidor jovem que botou alguns milhões no bolso com projetos bem sucedidos na área de cartões de crédito, passou a circular nas “altas rodas” e a sonhar “com coisas que o morro não tem”.
 
Billy gabava-se de que sua empresa, Fyre Media, tinha valor de mercado de 90 milhões; as autoridades descobriram depois que ela tinha um faturamento de 60 mil dólares.
 
De qualquer modo, Billy circulava com cantores, atletas, modelos, socialites... Diga-se dele o que se quiser, mas tinha um carisma irresistível. Pessoas que foram arrastadas para um buraco financeiro insolúvel diziam: “Eu sempre acreditei nele, ele passava uma alegria, uma auto-confiança enorme, sempre dizia, vamos acreditar, vai dar certo sim, vamos conseguir o que ninguém conseguiu...”
 
O festival de música ia ter lugar numa ilha remota das Bahamas. A divulgação maciça incluiu um filme promocional com modelos lindas e caríssimas do mundo inteiro, e começou poucos meses antes. Tudo maravilha, embora o pessoal da técnica dissesse que teria sido necessária uma antecedência de um ano para produzir aquilo num local sem muita estrutura. (Sem água potável; sem eletricidade; sem internet – pra começo de conversa).
 
Movido a carisma, otimismo e cartões de crédito, Billy vivia de jatinho pra cima e pra baixo, arrumando 30 mil dólares aqui, 50 mil acolá, enquanto centenas de trabalhadores montavam palcos, tendas, vilas, som, luz, o escambau. E no dia do Festival, com gente do mundo inteiro desembarcando no aeroporto (depois de pagar com antecedência) tinha sido montado, quando muito, um terço da estrutura necessária.
 
O resto está no Netflix.  


 
O dinheiro embriaga, principalmente quando em vez de ser contado em moedas de ouro é contado em zeros eletrônicos. A velocidade embriaga, a velocidade dos jatinhos, do café da manhã em Oslo, o almoço em Amsterdam, o jantar em Paris. A fama embriaga: o selfie tirado com atrizes californianas, modelos russas, magnatas alemães, príncipes sauditas.
 
Não é nenhuma novidade do mundo internético. Joyce fazia seus rapazes dublinenses perderem rios de dinheiro numa mesa de jogo com pessoas de quatro ou cinco países; Machado de Assis contava o mesmo, em escala mais modesta, com seus playboys da Rua do Ouvidor, filhinhos de fazendeiros ricos ou de políticos (“Vinte anos! Vinte anos!”, 1884); Berilo Neves, em Século XXI, fazia suas socialites da Confeitaria Colombo encomendarem compras na Lua e marcarem chás-das-cinco em Saturno.
 
A única novidade, talvez, é que as pessoas que pensam assim nunca tiveram tanto dinheiro, nunca tiveram tanta liberdade, nunca tiveram tanto poder. 







terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

4794) A reciclagem na canção popular (15.2.2022)




Certas perguntas, por mais que sejam respondidas milhões de vezes, nunca deixarão de ser feitas.  (Alguns exemplos: “Que horas são?...” “Como é seu nome?...” “Essa estrada vai dar aonde?...”)
 
Faço parte de um grupo de rede social onde as pessoas trocam informações sobre música rock-pop-folk dos EUA, em geral, e sobre a obra de Bob Dylan, em particular.
 
Esta semana um jovem participante trouxe um susto. O mesmo susto que eu tive 50 anos atrás, quando percebi a semelhança entre uma música de Dylan e outra música, esta gravada por Paul Simon & Art Garfunkel.
 
A música desta dupla, aliás uma lindeza de melodia, arranjo e vocal, é “Scarborough Fair” (1966), e diz:
 
Are you going to Scarborough Fair?
(Parsley, sage, rosemary, and thyme.)
Remember me to one who lives there:
she once was a true love of mine.
 
 
A música de Dylan, bem do seu iniciozinho de carreira, é “Girl of the North Country” (1963), e sua primeira estrofe diz:
 
If you’re going to the North country fair
Where the winds hit heavy, on the borderline,
Remember me to one who lives there:
she once was a true love of mine.
 
 
Se a questão importante se limitasse ao banal “quem plagiou quem”, o plagiário seria Simon, cuja gravação é posterior. Mas não se trata disso. A canção vem de mais longe ainda, e sua forma básica aparece no fundamental catálogo “Child Ballads”, um levantamento de baladas tradicionais anglófonas, publicado por Francis James Child como The English and Scottish Popular Ballads (5 vols, 1882–98). Ouvintes de folk-rock inglês e norte-americano irão reencontrar aí centenas de versos que já cantaram mil vezes.



Fragmentos de versos aparecem a torto e a direito nessas pesquisas, versos que são passados de mão em mão, re-utilizados pelos poetas com a mesma liberdade e inocência com que hoje repetimos “sem você não sei viver” . Quem será o gênio que escreveu esse verso pela primeira vez? Algum sumério ou fenício, talvez.
 
São versos que pertencem à tradição: pertencem mais ao país do que a uma pessoa, pertencem mais à memória coletiva do que à invenção individual. Dylan e Simon estavam repetindo versos que tinham escutado (ou lido) de dez origens diferentes. Não são de ninguém, são de todo mundo. O artista banal repete. O artista de talento cria, em cima da beleza antiga, uma coisa ainda mais bela.
 
Foi o que fez Paul Simon: sua gravação de “Scarborough Fair” é intercalada em contracanto com “Canticle”, ao fundo, com versos falando da guerra. O contexto é medieval; mas o recado sobre a guerra é claramente una alusão à Guerra do Vietnam.



Simon colheu a versão de “Scarborough Fair” de uma gravação do cantor britânico Martin Carthy, que ao que parece foi o autor da melodia (a melodia original se perdeu). Quando ele descobriu que a melodia era de Carthy, pediu desculpas e os dois cantaram a música juntos num show em Londres. (Não sei como acertaram o imbróglio dos direitos autorais.)
 
Compositores usam canções antigas, de autoria anônima, como ponto de partida para a criação de canções mais complexas. Chico Buarque (“Teresinha”, “Até Pensei” etc), Sidney Miller (“Passa Passa Gavião”, “Marré de Cy”, “Menina da Agulha” etc.). Todo mundo recorreu a cantigas de roda, a cirandas, a acalantos.



Voltando a “Scarborough Fair”: é fora de dúvida que Dylan conhecia bem a balada inglesa original, e de lá tirou a semente para “Girl of the North Country”. Fez isso com muitas outras. O exemplo que me vem de memória, sem precisar consultar os discos, é “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, cujo refrão ele tirou de uma das “Child Ballads”, a famosa “Lord Randall”;
 
Where have ye been all the day, my own dear darling boy?
Where have ye been all the day, my own dear comfort and joy?
I have been to my stepmother, make my bed, mummy, do.
Make my bed, mummy, do.
 
O que faz o artista criativo? Pega esses versos alheios, colhe o grão de verdade psicológica e de síntese poética (essa mãe que pergunta insistentemente ao filho, estrofe após estrofe, o que ele foi fazer na casa da madrasta), e usa essa estrutura de pergunta e resposta de maneira original e contemporânea:
 
Oh, where have you been, my blue-eyed son?
And where have you been, my darling young one?
I've stumbled on the side of twelve misty mountains
I've walked and I've crawled on six crooked highways
I've stepped in the middle of seven sad forests
I've been out in front of a dozen dead oceans
I've been ten thousand miles in the mouth of a graveyard
And it's a hard, it's a hard, it's a hard, and it's a hard
It's a hard rain's a-gonna fall.
 
 
Já o tema da “ida para a feira” é um tema medieval, onde as feiras das cidades eram o grande acontecimento, tal como se preservou no Nordeste. Aos meus olhos, “Parsley, sage, rosemary and thyme” é um pedido, feito pela pessoa que canta, para que o interlocutor lhe traga algumas coisas da feira. É como se dissesse: “Coentro, cheiro verde, salsa e cebolinha”.



Basta lembrar de Elomar (“O Pedido”):
 
Já que tu vai lá pra feira traga de lá para mim
água da fulô que cheira, um novelo, e um carrim...
Traz um pacote de misse, meu amigo, ah se tu visse
Aquele cego cantador, que um dia ele me disse
Jogando um mote de amor:
Que eu havera de viver por esse mundo
E morrer ainda em flor...
 




Basta lembrar de Luiz Gonzaga (“Moça da Feira”, de Armando Nunes e Jeová Portela):
 
Se não chover, amanhã vou passear
Comprar farinha lá na feira do Pilar...
 
 



Esses começos são o que eu chamo “linha de chamar verso”, um pequeno número inicial de linhas que pertencem à tradição, que a gente ouviu mil vezes em mil vozes, e que usa para abrir uma canção nova, na esperança de que alguma coisa nova apareça.
 
Servem como um mote. Só que um mote ao contrário, que em vez de aparecer no fim da estrofe aparece no começo. Falei a respeito disso neste texto sobre Nei Lopes:
 
 
Pense numa linha simples, forte, clara, como “Quando eu vim da minha terra”. Quem não entende essa idéia? Quem não percebe o milhão de idéias que se acotovelam e se empurram por trás dela, doidas para serem versadas?
 
Pessoas chamam variadamente de “literatura oral”, “cultura oral”, “folclore”, “poesia popular” etc. etc. esse universo de versos recitados ou cantados, milhões deles, dezenas de milhões, que vêm atravessando os séculos e se espalhando de país em país, de geração em geração. É o chamado “domínio público”. É público. É do povo. É seu, também. Mas você não é dono. 
 
E sempre que recorremos à inspiração usando algum elemento de uma obra alheia, a regra, para mim, é muito simples: “Você pode usar um pedaço de uma criação alheia, desde que a parte criada a partir dela seja maior e melhor do que a parte alheia que foi tomada de empréstimo”.
 
Devemos usar o que é de domínio público como ponto de partida, nunca como a parte mais importante da nova obra. E idealmente devemos usar de tal maneira que o dono da obra original pudesse ver a obra que você criou a partir da dele, e dizer: “Puxa vida, que coisa bacana, fico orgulhoso de meu trabalho ter servido de inspiração para produzir uma coisa tão legal”.
 
É difícil, mas acontece.
 



sábado, 12 de fevereiro de 2022

4793) Como viver em segurança? (12.2.2022)




No ano passado, moradores de uma rua no bairro de Afogados, no Recife, botaram no meio de um cruzamento uma cadeira com uma boneca bem grande sentada em cima. Para quê? Em parte por zueira, claro. E em parte (quem sabe?) para assustar algum indivíduo mal intencionado que quisesse circular por aquela vizinhança. Nunca se sabe.
 
Circula nas redes sociais há algum tempo uma postagem feita em 2019 por Cecília do Lago, no Twitter (@ceciliadolago). O twit original foi compartilhado mais de 2.600 vezes, então acho que posso transcrever seu conteúdo aqui e comentá-lo, sem estar invadindo a comunicação alheia.
 
Diz Cecília (transcrevo o post literalmente):
 
Resolvi o problema de segurança da rua atrás da minha casa. É simples e requer apenas um roteador.
 
Como tenho o hábito de chegar tarde em casa, e a rua atrás da minha casa é mais ampla e teoricamente mais segura que a minha própria rua. Acabo voltando por lá. Entretanto, ela é muito erma. Resolvi abrindo uma rede pública do meu roteador, com limitação de banda.
 
A rede não tem força para segurar um streaming (afinal não sou operadora de ninguém) mas é o suficiente para, agora, 4 meses depois da medida, a rua tem sempre uns 5 ou 6 adolescentes na calçada, até as 1h da manhã.
 
A amplitude da minha internet grátis pega apenas poucos metros, então eles praticamente ficam sentadinhos na guia em frente à minha casa e a do vizinho, mexendo no celular, papeando, andando de skate e até tem umas crianças jogando bola.


Tudo isto converge para aquela idéia clássica de que rua segura é rua frequentada, rua onde a qualquer hora tem gente passando. Um amigo meu dizia que “ladrão gosta de multidão, assaltante gosta de rua deserta”.
 
Os garotos do celular são segurança suficiente? Não, se vier alguém decidido mesmo a invadir a casa da moça. Mas um assaltante casual passa na esquina, vê o movimento e segue adiante, confiando que mais à frente vai ter uma rua mais indefesa do que esta.
 
É como aquela tranca de segurança que se prende no volante dos automóveis. Perguntei a um amigo se era 100% segura. Ele disse: “Não, mas o cara vai precisar de alguns minutos a mais para desarmá-la, e provavelmente vai passar adiante e arrombar um carro sem tranca”. Por mim, faz sentido.
 
Adolescentes de skate não trazem segurança, trazem uma impressão de segurança. Algo que contribui, em certa medida, para a segurança.
 
A sociologia cita muito a teoria das “vidraças quebradas”: numa vizinhança cheia de prédios ou casas com vidraças quebradas, a criminalidade é maior, porque a aparência do bairro dá a entender que ali vale tudo. Terra sem lei.



Uma impressão de normalidade é necessária, e não é apenas maquiagem, hipocrisia, disfarce, embora muitas prefeituras e administrações públicas tentem impor essas coisas quando lhes convém (arrancar mendigos das ruas na véspera de um grande evento, etc.).
 
É uma forma benigna de controle psicológico. “Te comporta. O pessoal daqui é exigente.”
 
As sociedades humanas apostam na normalidade, desejam a existência de zonas de conforto. E quem pode dizer que estão erradas? Como diria qualquer líder político, existe a hora do conflito, e existe a hora do conforto.
 
No romance The Postman (1985), de David Brin, a civilização foi arrasada por uma guerra biológica, e regride a uma semi-selvageria. Um cara, ao vaguear de aldeia em aldeia, acha por acaso (e veste) um antigo uniforme de carteiro. Daí em diante, quando é avistado, as pessoas pensam que o mundo está se reorganizando, porque “os carteiros voltaram a entregar correspondência”. Não é o caso; mas esse sopro de otimismo ajuda a desencadear uma pequena maré civilizatória.



O livro foi filmado em 1997 com Kevin Costner na direção e no papel do “Carteiro”. Fábio Fernandes traduziu para a Isaac Asimov Magazine (# 21 e 23), Ed. Record, duas noveletas (“O Carteiro” e “Cyclops”) que fazem parte do livro original.
 
Claro que existem outras formas de proteção. Ryszard Kapucinski, em seu livro Ébano – Minha Vida na África (1998; Companhia das Letras, 2002, trad. Tomasz Barcinski), fala, a certa altura, do tempo em que viveu em Lagos, na Nigéria. O jornalista polonês desdenha os colegas que vão à África, hospedam-se nos bons hotéis da capital, comem nos bons restaurantes e depois voltam para à Europa e fazem “relatos autênticos, de quem esteve lá”.
 
Ele foi morar numa cabeça-de-porco num beco, no meio de uma vizinhança paupérrima. Fala sobre o calor assassino, a falta de luz elétrica, a falta de água, os mosquitos. Há um homem que só possui de seu uma camisa. Outro possui um facão, e nada mais. Uma mulher possui apenas uma panela.


Kapucinski narra seu desespero ao perceber que toda vez que saía do seu quartinho alguém entrava ali e roubava alguma coisa. Acaba fazendo amizade com Suleiman, um muçulmano local, e explica seu problema.
 
Contei-lhe que era roubado com frequência. Suleiman achou muito natural. O roubo – embora desagradável – era uma forma de nivelar as desigualdades.É bom ser roubado, afirmou; chega a ser um sinal de boa vontade da parte dos moradores do beco. Eles demonstram dessa forma que lhes sou útil e que por isso sou aceito por eles. Posso me sentir seguro. Fui ameaçado alguma vez? Tive que confessar que não. Então! Estarei em segurança enquanto permitir ser roubado. Se eu chamar a polícia e começar a persegui-los, então será melhor mudar-me daqui. (p. 132)
 
Mas Suleiman entende o problema do polonês em terra estranha, e o convida para dar um passeio pela feira local. Examinam vários produtos nas barracas. A conselho dele, Kapucinski compra algumas penas de galo branco.
 
Eram bastante caras, mas não fiz objeção. Voltamos ao beco. Suleiman arrumou as penas, amarrou-as com um fio e as pendurou na parte superior do umbral da porta.
 
Daí em diante, nada mais sumiu do meu apartamento.
 
Era um ritual de feitiçaria? Uma simpatia? Um código de gang? Tanto faz. É outra cultura, são outros costumes. É como se isso acontecesse numa cabeça-de-porco do bairro do São José e Suleiman colocasse ali uma flâmula do Treze. “Não bulam. Esse rapaz é gente nossa.”
 
 







quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

4792) Um cachorro doido (9.2.2022)



Era uma roda de chat, online, via zum. (Não reclamem do “zum”; é uma tentativa de abrasileirar nosso idioma atual.) Eu estava com alguns amigos, nordestinos, conversando miolo de pote, e alguém contou um episódio bizarro acontecido há pouco tempo.
 
– Não é possível – disse alguém. – Quem foi que contou essa história?
 
– Fulano.
 
– Ah, esquece. Fulano mente mais do que cachorro doido.
 
Houve uma risada geral, porque esse amigo, cujo nome omito por cautela, é um notório inventor de mirabolâncias. Mas a comparação, que é familiar no idioma nordestinense, acendeu uma luzinha na minha memória.
 
“Fulano mente mais do que cachorro doido.”  Cachorro doido mente?
 
Primeiro, uma explicação necessária. Cachorro doido, pelo menos no Nordeste, não quer dizer cachorro psicótico ou catatônico. É simplesmente o cachorro hidrófobo, o cachorro contaminado pelo vírus da raiva. O animal fica alucinado de sofrimento e sai pela rua afora disposto a morder quem se atravesse na sua frente (e quando isso acontece, inocula o vírus na vítima).
 
Vamos aprofundar mais um degrau nessa questão. Cachorros, em geral, mentem?
 
Eu diria que não, ou quase nunca. Vamos fazer uma comparação entre cachorro e gato. Durante minha infância já teve cachorro lá em casa (não pensem que me esqueci de Lunik), e dezenas de gatos (Brigitte, Iscocó, Gasolina, Rum Montilla, etc.). Não sou chegado ser dono de animais, mas sempre convivi numa boa, sempre me interessei pela psicologia deles.
 
Comparados aos gatos, os cachorros são os animais mais sinceros, mais ingênuos, mais espontâneos do mundo. O gato é sonso, interesseiro, seguro de si. Faz o que quer. Vive num Egito mental, onde os faraós se curvam à sua passagem. São mestres em dissimulação, em esconde-esconde, em pequenos furtos, pequenas surtidas clandestinas a espaços proibidos. O gato vive em função de suas próprias conveniências.
 
O cachorro não. Ele vive, em regra geral, em função das conveniências do seu dono. É um ansioso para agradar. Até aquelas abomináveis lambidas em nossa cara são feitas na ilusão de que está nos proporcionando um prazer transcendental qualquer.
 
Quando dizemos que o cão é o símbolo de fidelidade, queremos dizer exatamente isso, que ele não mente, ele não tem segundas intenções quanto ao dono ou à dona. Claro que cada tipo de cachorro tem seu temperamento. Existem os sisudos e meditativos; os irrequietos e frívolos; os soturnos e ameaçadores; os vaidosos e posudos; os brincalhões e saltitantes; os bamboleantes e desajeitados...
 
Mas todos são sinceros. Cachorro não mente.
 
E cachorro doido? Cão hidrófobo? Mente, ou não?
 
Entra aí uma questão interessante, porque o cão com hidrofobia, coitado, é ainda mais incapaz de mentir. A “raiva” afeta o sistema nervoso central, deixa o animal irritadiço, com dificuldade para engolir, hiper-sensível a qualquer estímulo... Ele sai sufocado, andando num trote inquieto, cheio de espasmos, sempre em linha reta, olhar vidrado sem enxergar direito, babando, e mordendo com fúria qualquer coisa em que venha a esbarrar.
 
Já vi uns dois ou três assim, e teve um episódio inesquecível nas lavanderias do Alto Branco, quando certo fim de tarde apareceu um cachorro doido que botou pra correr as lavadeiras no gramado em volta dos poços. O bicho ficou zanzando em círculos, sem rumo, sem atinar com coisa alguma, até que nosso vizinho Zé Buraco (ex-zagueiro do Treze) emergiu de casa com uma espingarda e foi um tiro só.
 
Um animal nesse estado é virtualmente incurável; um ser humano também.
 
O filme de zumbi é um gênero tão em voga, não é mesmo? Eu pelo menos acabei de rever o filme pioneiro de George Romero, Night of the Living Dead.

 
Muitos críticos já ressaltaram algumas semelhanças entre os zumbis desses filmes e seres humanos atacados de hidrofobia. Não tem retorno. Não tem cura para eles. É preciso abatê-los, para que o mal não se propague. Não tem discussão, não tem pedido de piedade, não tem por-favor nem jeitinho-brasileiro. O zumbi é como o hidrófobo: já morreu, mas tem que ser abatido. Por isso o filme de zumbi é uma grande metáfora do nosso século; consultem os borderôs.
 
Cachorro doido mente? Eu afirmo que não. Mentir implica num movimento do intelecto, na avaliação simultânea de dois cursos de ação e na escolha pelo curso que leva ao engano, à mensagem falsa, à intenção de enganar. Que pode até ser uma intenção benévola – quantas vezes a gente não diz uma mentira a uma criança, um idoso senil, um bêbado?
 
Só mente quem é capaz de pensar, e um cachorro hidrófobo não é capaz de pensar nem sequer seus pensamentozinhos caninos, seus pensamentos da cachorra Baleia, de Graciliano.
 
Um cão hidrófobo é um animal possuído por uma idéia fixa, ou melhor, por um conjunto-de-sensações fixo, e essas sensações são dolorosas, produzem todas um sofrimento insuportável, que o conduz à fúria.
 
Um cachorro doido é como um Fanático. O Fanático não mente. Ele está possuído por uma idéia fixa, essa idéia ocupa todo o espaço raciocinador de que ele dispõe, e quanto mais aumenta seu fanatismo mais diminui sua capacidade de raciocinar até para essas funções mais simples, tipo uma mentirinha básica. O Fanatismo é uma patologia de sinceridade absoluta, que exclui o pensamento; como um “disco enganchado” repetindo eternamente a mesma fração de idéia.
 
Portanto...
 
A expressão “Fulano mente mais do que cachorro doido” precisa ser revista, porque cachorro doido não mente.  Nós, todos nós, mentimos mais do que cachorro doido. Mentir implica numa avaliação, numa escolha e numa ação. Somos todos capazes de mentir, porque somos capazes de pensar e de tomar decisões.
 
Um cachorro doido não, coitado.