domingo, 29 de junho de 2014

3538) O esporte Breton (29.6.2014)



(ilustração: Chema Madoz)

Por que chamamos o futebol de “o esporte bretão”? Aliás, chamamos não, chamávamos, porque faz tempo que não vejo um coleguinha da imprensa escrever isto sem que seja “em contexto” (ironicamente, etc.).  Falar assim a cru, a sério, é para quem diz “o escrete canarinho”, “a número cinco”...  Um estilo em extinção.  Houve uma época, no entanto, em que dizia-se isso a três por dois, provavelmente para lembrar a todos que era uma arte vinda da Inglaterra.

Então, por que não dizermos “o esporte inglês”?  Porque a Inglaterra também é chamada de Grã-Bretanha.  Isso deixa uma curiosidade: esses dois nomes de país são sinônimos?  Não, explica um videozinho didático que vi por aí na web, explicando a complicadíssima relação jurídico-institucional-hierárquica entre as Ilhas Britânicas (olha o nome aí) e suas atuais e antigas colônias. É um negócio mais complicado do que a partilha do espólio do Império Romano.  

Acontece que quando eu ouvia falar “Bretanha” meu ouvido não me arrastava para a Inglaterra. Bretanha para mim era aquela região mágica do litoral da França, em forma de triângulo mineiro truncado ou leão ruginte, apontando para noroeste em pleno Atlântico. Uma região mística, pau-a-pau com São José de Belmonte e a Área 51.  A Bretanha francesa de Nantes, onde Julio Verne criou um futuro que só aconteceria retroativamente em forma de steampunk.  Bretanha de Ernest Renan, que botou sob o microscópio da História o DNA de Cristo. De Pierre Souvestre, o homem que criou Fantomas. 

É a terra dos bretões, nome dado pelos romanos: Britannia. Os bretões da Inglaterra (“britons”) tinham sua língua, seus costumes, e foram encurralados pelos romanos ilha adentro. Depois veio a briga-de-cachorro-grande, a batalha dos normandos contra os anglo-saxões, mas eles, sempre ali.  O mais famoso que herdou seu selo, foi, na minha discreta opinião, André Breton, mais em nome e espírito do que em berço (nasceu na Normandia francesa, outra mina de ouro pra quem faz minisséries de aventuras).  Breton foi o inventor do surrealismo, esse terremoto psíquico que liquefaz a consciência disciplinar que nos foi imposta e deixa o inconsciente de fogo falar suas palavras de fogo. O criador da escrita automática, das enquetes eróticas, da hipno-imaginação.

“Esporte bretão” porque é um esporte místico, misterioso, apocalíptico, supersticioso, ocultista, cortejador dos deuses venais e das vestais do mistério. O futebol é um balé coreografado por escritores assim. Uma coreografia de dois grupos de bailarinos em cima de um tabuleiro de xadrez, onde de vez em quando uma casa explode e leva consigo um craque-dançarino para o além. Ou um time inteiro.


sábado, 28 de junho de 2014

3537) Vilões do passado (28.6.2014)



Se um cara é um grande artista, estou falando de artista grande mesmo, será que somos capazes de perdoar qualquer coisa politicamente incorreta que ele tenha feito no seu passado? (Esse conceito de politicamente correto/incorreto, aliás, está se expandindo exponencialmente, o que é um perigo.)  Na lista dos escritores politicamente apedrejados sempre aparecem Ezra Pound que teve simpatias pelo fascismo, Louis-Ferdinand Céline que era antissemita, e meia meia-dúzia de espantalhos habituais, que, como Guy Fawkes, conhecem a fama e o opróbrio na mesma medida.

Por exemplo: os escritores franceses colaboracionistas, cúmplices dos nazistas que invadiram o país e o sujeitaram durante alguns anos vergonhosos.  A Resistência Francesa foi uma coisa notável, mas ao mesmo tempo fomos ensinados a não achar que era tudo assim tão simples.  Em Hiroshima meu Amor, de Alain Resnais, vemos a violência e a humilhação a que é submetida uma mocinha que fica amante de um soldado alemão. Precisava mesmo, fazer aquilo tudo com ela?

As lealdades políticas já serviram para inflar carreiras artísticas ou literárias. e no mundo da esquerda isto já foi visto muitas vezes. O Partido decidia investir em determinados artistas e sufocar outros. Em alguns casos, tudo dava com os burros nágua, os exaltados resvalavam para o Limbo, os reprimidos explodiam em girândolas de idiomas. Vitória do Mercado?  Não, porque o mercado, como sempre, apenas corria a faturar um sucesso pré-existente.

Talvez no futuro nossos bisnetos vejam a briga ideológica entre a França de De Gaulle e a França da República de Vichy como uma mera dissensão entre iguais. Iremos todos para a mesma vala comum, misturando nosso DNA ao dos sacripantas contra quem lutamos a vida inteira. Estávamos todos (considerarão nosso bisnetos, à luz dos “ismos” em voga) no mesmo barco, o Titanic. Da literatura que produzimos só virá a se salvar o que ela tiver de literário, porque politicamente nos olharão com a mesma incompreensão com que olhamos os cristãos europeus da Renascença ou os fetichistas da natureza.

Chegará um momento em que será irrelevante dizer que Jorge Amado, George Orwell e David Siqueiros eram de esquerda; deles só ficará o que era seu e de mais ninguém. Pouco importa a linha ideológica a que se julgassem pertencentes. Tudo isso retrocederá para segundo plano à medida que os séculos passarem e eles forem vistos com outros olhos. Pouco importa o que acreditaram. Quem pode dizer para quem rezava Shakespeare quando não estava escrevendo?  Do ponto de vista de quem o lê, faz diferença se Fernando Pessoa acreditava mesmo em Deus ou não?


sexta-feira, 27 de junho de 2014

3536) A palavra friquitício (27.6.2014)



Numa destas colunas, dias atrás, usei o termo “friquitício” e pedi desculpas a uma parte dos leitores, avisando que explicaria o significado. De fato tentei fazê-lo, mas ficou sobrando um parágrafo; resolvi trazê-lo para uma página nova, e um novo título. É o caso em que uma mera nota ao pé da página é capaz de crescer até tornar-se uma coluna adulta. Se alguém perguntar como estes meus textos se reproduzem, podem dizer que é por divisão celular.

Friquitício é manha, exagero, fricote. Uma reação exagerada a alguma coisa. “Vou fazer um curativo. Deixe de friquitício, foi só um arranhãozinho besta.”  Usa-se muito com pessoas que fazem uma encenação de sofrimento exagerado quando, por exemplo, têm que tomar uma injeção, ou quando um dentista tenta esmerilhar seu sorriso ou cavucar-lhe as profundidades.  Pode ter origem em fricote, agitação, cena, drama, e pode também estar contaminado de “fictício”: inventado, falso. “Essa menina está com um machucão fictício”, disse um dia alguém de vocabulário mais amplo, e os que estavam em volta guardaram aquela palavra mágica cujo significado perceberam parcialmente.

É quase um sinônimo de “pantim”, palavra já comentada aqui: “Qualquer reação exagerada, artificial, ‘valorizando’ demasiadamente uma situação que não tem muita gravidade.” (Em http://tinyurl.com/m59zndo). Um fingimento, uma mentirinha, uma valorização no sentido que lhe damos no futebol: “Houve um esbarrão muito leve mas o atacante valorizou, caiu, está se contorcendo em dores...”

Friquitícios de toda ordem estão se sucedendo na Copa do Mundo. São habituais no futebol e se dirigem ao juiz, para induzi-lo à marcação de faltas. No grande futebol, com cobertura de TV, dirigem-se também às câmeras.  Hoje em dia, os jogadores são muito conscientes de estarem sendo filmados o tempo todo.  Erguem os braços para Deus, dizem palavras de ordem ou de fé de maneira exagerada para que o público possa fazer a leitura labial, exibem marcas de patrocínio de maneira fingidamente descuidada. E na hora do esbarrão, fazem o maior friquitício.

Tenho lido muita coisa sobre a Copa e observo que o que mais irrita os não-fãs de futebol é esse friquitício, esse pantim: “Ai, seu juiz! Ele me derrubou!”.  “Parecem um bando de mocinhas, de efeminados,” bradam leitores nos saites esportivos; “é revoltante a desonestidade e a cara-de-pau desses caras, que ganham salários milionários, e em vez de jogar ficam fingindo terem sido atingidos por um esbarrãozinho de nada, para conseguir punições para o adversário.”  E eu concordo.  No jogo de futebol, no campo, tem muita coisa chata, mas a mais chata é o friquitício.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

3535) Livros recusados (26.6.2014)






Em 2013, J. K. Rowling, autora de “Harry Potter”, publicou o romance policial The Cuckoo’s Calling, sob o pseudônimo de Robert Galbraith. O livro recebeu alguns elogios mas não esgotou a tiragem inicial de 1.500 cópias. Houve um vazamento, por indiscrição de uma das poucas pessoas que sabiam do segredo, e a imprensa investigou até comprovar que o livro era de Rowling. Na mesma hora, 140 mil exemplares foram impressos e vendidos num piscar de olhos.

É um assunto recorrente na imprensa cultural: o que aconteceria se um livro original de um autor famoso fosse submetido anonimamente a uma editora?  Foi o que aconteceu com Claire Chazal, apresentadora de TV francesa cujo romance L’institutrice fez grande sucesso em 1997. Em 2000 o jornal Voici enviou o texto do romance, atribuído a uma autora imaginária, a várias editoras, inclusive a Plon, que publicara o livro original. O título foi mudado para La maîtresse d’école, a ação foi transferida de Auvergne para a Lorena, e a personagem principal, que se chamava Jeanne Villard, teve o nome trocado para Charlotte Florange. Além disso, o parágrafo de abertura foi mudado – trouxeram para o início um trecho que no original aparecia mais adiante.  Foi o que bastou para que o livro fosse recusado, inclusive pela Plon, que publicou o romance original.

A revista explicou: “Queríamos demonstrar que os romances de autores estreantes que já são personalidades públicas recebem um tratamento especial que não é dedicado a um livro de estreante anônimo.”  O que me parece óbvio, aliás.  É o que eu faria se fosse editor.  Por que não investir mais num nome que já tem grande popularidade? O erro, no caso, é não haver na editora quem reconhecesse um livro publicado por ela mesma (e, nas outras editoras, ninguém capaz de reconhecer um romance de sucesso). Isso mostra apenas o quanto o trabalho editorial em grande escala é segmentado, fracionado, sem que A saiba o que está sendo feito por B.  Ninguém pode ler tudo. Ninguém tenta ler tudo.

Há outros casos recentes, em que livros até de V. S. Naipaul (que havia ganho o Prêmio Novel poucos anos antes) tiveram título e nomes dos personagens trocados, foram oferecidos sob pseudônimo a editoras, e nenhuma se interessou em publicá-los. Surpreendente? Absurdo?  Para mim, não. A leitura de uma obra é sempre influenciada pelo nome que assina a obra. Mesmo que seja para elogiar um desconhecido ou espinafrar um monstro sagrado, a assinatura está sempre sendo levada em conta. Na nossa cultura em que a autoria é garantida por lei, registrada em cartório e recompensada financeiramente, o nome do autor faz parte do texto.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

3534) Terra Oca (25.6.2014)




Era uma vez um planeta (o nosso) que era oco. Alguma coisa nas suas convulsões geológicas o deixara assim, e a velocidade com que girava tornava possível haver oceanos, continentes e mares não apenas no exterior da sua crosta sólida, mas na face interior dela também.  O oco interno era iluminado por um sol central de intensidade, tamanho, massa e variação cromática ideais.

Foram os homens de dentro, que em sua expansão, povoaram pela primeira vez o mundo de fora, até então entregue a feras descomunais. Brotaram do Polo Norte e desceram rumo a terras mais quentes. Alguns morriam com facilidade ao se aproximarem delas, mas outros pareciam despertar, redobrar de vigor. Ali se fincaram, ali esqueceram o trajeto dos seus ancestrais remotos. Pensavam mais na sobrevivência do que em ficar recitando as crônicas históricas de um mundo que não conheciam e de cuja existência não faziam questão.

Acostumados ao sol unânime e central do mundo de dentro, eles estranharam o mundo de fora. O sol girava sem parar, erguendo-se no primeiro abismo e pondo-se no último. Um sol rodopiante, descontrolado, num mundo sem paredes.  E nas horas em que o sol sumia, vinham horas espantosas cheias de terrores e constelações. E a tentativa de justificar a presença daqueles pontos de luz através de esferas, dentro de esferas, dentro de esferas, cada qual girando sobre si própria.

Existem pessoas que preferem um sol único, fixo, inalterável em si mesmo, podendo apenas ser oculto por invernos inteiros, mas confiadamente ali, onde sempre esteve e onde sempre deveria estar.  Um mundo em forma de esfera fechada. O que dizer das crises filosóficas de gerações de escribas teologais da Terra de Dentro, no século em que emergiram do outro lado do Poço, e descobriram que estavam pisando a superfície de uma esfera aberta?

Guerras por dissensão quanto a um axioma qualquer de teologia topológica. Impérios se ergueram, impérios tombaram.  Podemos descrever essa fase apenas em termos coletivos. Não há como saber se algum daquele filósofos (inteligentes, mas sem o instrumental de que se dispõe hoje) chegou a intuir mentalmente uma física, astronomia, geometria, etc. que pudesse se aplicar àqueles dois universos, a Terra de Dentro e a Terra de Fora.  Porque o mundo é binário, bipolar, contrário-complementar, oposto-simétrico.  O mundo não é apenas circular, esférico, concêntrico, harmonioso e uno.  Existe em nós a consciência atávica da existência de um mítico Aqui-Lá, um mundo com sinal invertido ao nosso, um mundo-do-espelho, um mundo de uma esfera fechada por paredes de matéria, que é o mundo primordial de onde viemos, e para onde tudo voltará um dia.


terça-feira, 24 de junho de 2014

3533) Clichê obrigatório (24.6.2014)





(George Raft em Scarface)



Quando Billy Wilder estava tentando filmar Pacto de Sangue, adaptando o romance de James M. Cain (Double Indemnity, 1943), foi oferecer o papel principal ao ator George Raft. 

Começou a contar a história do começo ao fim, e Raft perguntava repetidamente: “E a que altura aparece a lapela?”.  Wilder não sabia que lapela era essa e contou a história até terminar. Raft se espantou: “Então não tem lapela?”. E ele: “Que diabo é lapela?”  Raft: “Aquela cena em que o bandido vira a lapela do casaco, exibe o distintivo, e mostra que é da polícia ou trabalha para o governo, enfim, é um cara do bem.”  Wilde confessa que nunca ouvira essa gíria. 

Todo clichê é um velho amigo nosso, a prova disso é ver o quanto ele é bem recebido quando se apresenta: com simpatia, quase com alívio. 

Um clichê narrativo (“Acho que seria melhor dar uma olhada no porão para tirarmos qualquer dúvida”) é reencontrado com a mesma alegria de quando voltamos a um boteco simpático onde já fomos bem recebidos.  

Ou, mais rigorosamente, é recebido como algo sobre o qual já pensamos e que por isso achamos legal não precisar pensar de novo.

Comecei ontem a ler um romance qualquer e me dei de cara com dois bons exemplos.  

Um nobre sobe na charrete ou tílburi (é século 19) e diz ao seu cocheiro que siga para a rua tal. O cocheiro diz, nervoso: “Mas, senhor!  Foi lá que...” E o nobre o interrompe: “Silêncio!  Faça o que estou mandando!”  

Eu já vi essa cena dezenas de vezes, com Peter Cushing ou Vincent Price ou Basil Rathbone insistindo em ir, na calada da noite, ao local do crime, ao local de assombração, ao local do feitiço.

Em outra cena o personagem chega à casa de alguém e enquanto espera fica olhando um quadro na parede, e o descreve.  O parágrafo é cortado por um diálogo: “Gostou? Foi pintado por Fulano de Tal” – e o dono da casa aproxima-se por trás dele. 

Lembrei desta cena porque eu mesmo já a escrevi tintim por tintim, e só o fiz porque a lera mil vezes antes, ou a vira na tela do Babilônia ou Capitólio.

Esses pequenos efeitos narrativos, um dia, resolveram o problema de um escritor que precisava sugerir uma idéia ou dar dramaticidade a uma entrada em cena. Funcionaram, e funcionaram tão bem que continuam funcionando até hoje, nas mãos de qualquer um. 

Em geral, um clichê fica tão bem impregnado na nossa memória que acaba brotando no mais indesejável dos momentos, ou seja, quando começamos a escrever. Nesse momento crucial, o jovem autor precisa ter autodistanciamento e boa memória. 

E precisa ter por perto uma pessoa com credibilidade bastante e aproximação bastante para poder lhe dizer: “Velho, tire esse negócio aí, isso é o maior clichê.”







domingo, 22 de junho de 2014

3532) Ser soldado (22.6.2014)



Acho que a maioria dos soldados tornam-se soldados, pelo menos em desejo e fantasia, por volta dos cinco ou seis anos de idade.  Se bem me lembro, nesse período tudo que o camarada sonha na vida é ser tranquilizadoramente coletivo, e assim ser grande, ser forte, ser capaz de ser brutal, poder ver o medo nos olhos de quem o avista, poder empunhar aqueles instrumentos terríveis cheios de raios e trovões.  O menino quer ser um Deus atemorizante e invulnerável. Só o soldado é assim.

Ser soldado não é ser preparado apenas para matar, mas também para controlar o medo de morrer. Mais do que um poder sobre a morte, ser soldado implica num poder sobre o medo.  Uma das cenas mais vibrantes de um episódio recente de Games of Thrones ((HBO, cuja 4a. temporada terminou há poucos dias) é quando um gigante inimigo consegue arrombar a entrada de um túnel numa fortaleza, e cinco soldados da Guarda Noturna entram no túnel para detê-lo. O monstro é gigantesco, e quando se aproxima eles, aterrorizados e de armas em punho, gritam juntos o juramento que fizeram ao se alistar ali: “A noite está chegando, e minha vigília vai começar! Ela não chegará ao fim antes da minha morte! Eu nunca terei esposa, nunca possuirei terras, nunca terei filhos!  Nunca usarei coroa, e não conquistarei glórias! Eu viverei e morrerei no meu posto! Eu sou a espada da escuridão! Eu sou o sentinela no alto da muralha! Eu sou o escudo que protege os reinos dos homens! Eu dedico minha vida e minha honra à Guarda Noturna, nesta noite e em todas as noites que virão!”.  E partem para a batalha desigual.

Para uns, ser soldado evoca, de cara, a “licença para matar”, o apelo ao carcará sanguinolento que habita o inconsciente de toda pessoa civilizada.  Para outros, evoca a nobreza de mandar e a de obedecer.  Para outros ainda, a diluição-em-pixel numa estrutura maior, onde é possível obter anonimato e paz.  Para outros, há um trabalho a ser feito, alguém precisa fazê-lo, então que o faça bem feito, não importa a que custos ou sacrifícios. Para outros, é a escada mais curta para um trono.

Game of Thrones mostra soldados que quebram seus votos por causa de uma mulher. Soldados que correm o risco da morte, e mais, da desonra, mas não quebram a palavra dada.  Soldados que ganham todas as batalhas e perdem a guerra. Soldados pusilânimes em tempo de paz e heróis em campo de batalha.  Soldados cruéis que dos outros só esperam a crueldade.  Soldados que têm somente a mais vaga noção de por quê estão lutando, mas já que estão ali para lutar, tornam a luta em si a coisa mais importante de suas vidas, algo que faz valer a pena enfrentar a morte.


sábado, 21 de junho de 2014

3531) Tradução pessoal (21.6.2014)



Um tradutor de verdade é um homem preso.  Ele está preso a duas bolas-de-ferro-com-correntes que nem Janis Joplin seria capaz de arrastar. Em primeiro lugar, está preso à aceitação da existência de algum tipo de pacto supervisionador de tudo que ele irá colocar no papel. Pra ser mais exato, o tradutor é um homem preso a dois pactos.

O primeiro pacto é com o autor: “Prometo dar o meu sangue para que o leitor do seu livro em português tenha uma experiência estética que se equivalha à experiência dos que o leram no original; e que essas duas experiências distantes tenham tantos pontos de semelhança que dois leitores de duas versões possam conversar entre si uma tarde inteira e trocar impressões sem lembrar que leram livros diferentes, em línguas diferentes.” O segundo pacto é com o leitor, e é um pacto que pode ser, de um jeito meio irreverente, reproduzido como: “Comerás um gato, mas com um sabor-artificial-de-lebre no capricho.” Porque mesmo a melhor tradução não é a real coisa. a coisa-em-si.

O tradutor se resigna a vir atrás, a ser o “second best” , a ser o “quase-perfeito”, a tentar (tentar! conseguir é outra façanha!) acompanhar o original como a sombra acompanha um corpo em movimento. Isso é o que toda tradução tenta.  É possível? Não há como (estatisticamente) a frase brasileira acompanhar a métrica da frase inglesa, mas existe uma sensação mais ampla de ritmo, de arcos de ascensão, pico e descenso.  Dependendo do autor (porque há muitos onde essa precaução, infelizmente, é desnecessária) é preciso prestar atenção à sua música, tanto quanto ao seu sentido. Há uma certa música, nem que seja na sucessão de estruturas rítmicas bem amplas, recorrentes. E os breques, o muro de pedra.

Numa entrevista, Garcia Márquez diz mais ou menos que é preciso primeiro encontrar e depois manter a voz narrativa daquela história, e que muitas coisas que são ditas não têm grande importância factual, estão ali apenas para manter o ritmo hipnótico do tom e da cadência da voz que foi escolhida.

Esta é mais uma dificuldade para o leitor, e para o tradutor, que é leitor ao quadrado. Encontrar uma voz equivalente; mas equivalente exatamente a quê?  Se alguém for retraduzir Cem Anos de Solidão daqui a cem anos, em chinês, o que conseguirá passar para o lado de lá?  Talvez a saga e a tragédia dos Buendía passe, mas quem era aquela voz que contava tudo?  Será mantida no mesmo grau de distanciamento e intimidade?  Como reproduzir em chinês as mesmas nuances de entonação, de preferência vocabular, de rudezas gramaticais?  Dizer tudo o que foi dito, e dar a impressão de que o está dizendo pela primeira vez.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

3530) Mistério do futebol (20.6.2014)




(cartum de Matt Diffee)

Que mistério tem o futebol? (Cada um ponha nesse nicho o esporte de sua fatalidade.) Que mistério ele tem para alterar a tal ponto nossa pulsação cardíaca, e digo mais, nosso controle sobre a nossa própria mente?  Por causa de futebol vi cidadãos pacíficos tresloucados, homens honestos fazerem um-em-pé-e-quatro-rodando num instantezinho de distração de alguém (“sofri um pênalte!”), amores se desfazerem, famílias se desmancharem, vizinhanças virarem praças de guerra conflagradas.

No futebol o atleta faz uma amputação de si próprio, proibindo-se de usar suas extensões mais prestas e mais acostumadas ao uso: braços, mãos, dedos.  Correr sem-braços atrás de uma bola que quica e é chutada, podendo tocar nela só com os pés e a cabeça, parece tortura inventada num campo de concentração grotesco.  Se a beleza da imagem do cinema decorre da limitações do retângulo do “frame”, a beleza do balé futebolístico vem desses braços e mãos que, não podendo colidir materialmente com a bola, viram ectoplasma, asas invisíveis, viram lemes, hélices ou remos de que se vale o atleta em cada um dos voos curtíssimos de que é capaz. 

Viram coice de cavalo, rabanada de baleia. Talvez venha dessa amputação a impaciência das cotoveladas no adversário que assedia, uma reação que o nosso Leonardo celebrizou na Copa de 1994 e que nesta de agora eu já vi duzentas vezes. O braço vive nervoso, não pode fazer nada, a adrenalina é grande e o calor é um inferno, esse braço precisa descarregar em alguma coisa.

O esporte bretão é um xadrez e um balé.  O balé da cortada que faz o adversário passar deslizando e batido, o balé do voo de tantos metros para dar só o toque de cabeça necessário para o gol, o banho de cuia, o drible da vaca, o elástico, a pedalada, o gol de letra, o gol chorado, o gol do meio da rua. O balé é o jogo dos jogadores, é o duelo entre a técnica de cada um. O xadrez é o jogo dos técnicos, o duelo entre táticas.

E tem outra dimensão extraordinária do esporte, é sua estrutura dramatúrgica, organizada em disputas específicas com resultados numéricos claros e consensuais. É como um video-game.  Campeonatos, torneios, pontos corridos, mata-mata, tudo servindo de grade para o lado-humano, os craques e os supertimes que surgem, assombram, brilham, e passam.  O futebol nos dá uma certeza de resultados que a vida, essa sim, nos nega sempre. Em campo, a vitória pode ter sido injusta, mas é unanimemente aceita e vira fato. Um a zero é um a zero em qualquer idioma, raça, cultura ou religião. A clareza da disputa dá sustentação às sagas heróicas cuja história está contada naqueles jogos que quem viu não esquece jamais.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

3529) Gêneros literários (19.6.2014)



Num artigo na revista Locus (2003), Gary K. Wolfe (um dos melhores críticos de FC em atividade) fez uma comparação entre três dos melhores romances da época: The Years of Rice and Salt de Kim Stanley Robinson, Coraline de Neil Gaiman e The Scar de China Miéville. O ponto de vista dele é expresso nessa frase: “Não é que os livros pertençam a determinados gêneros, eles derivam desses gêneros”.  O livro de Robinson é uma espécie de FC, o de Gaiman uma espécie de terror, o de Miéville uma espécie de fantasia.  Não poderiam (diz Wolfe) ter sido escritos, nem serem lidos, sem a conexão com esses gêneros. Mas nenhum deles pode ser plenamente assimilado somente em termos dos gêneros.

A grande maioria das discussões literárias (para não falar nas outras) nunca chega a lugar nenhum porque parte de premissas inadequadas.  Essas premissas são os termos que usamos na discussão e que nunca questionamos.  Vemos todo mundo discutir o assunto naqueles termos, e achamos que está certo, que essa é a única maneira de pensar a respeito.  E não é.  Podemos propor (como fez Wolfe) uma maneira diferente de enxergar o problema.

A expressão “pertencer a” contamina qualquer argumentação. Condiciona nossa maneira de falar sobre as coisas, de descrever as relações que a gente vê entre elas. “Pertencer”, além de indicar posse, indica uma relação hierárquica, impõe uma polaridade tipo superior/inferior.  Se a obra “pertence” ao gênero X, então pra todos os efeitos o gênero comanda a obra, a obra tem que obedecer às leis dele e às exigências dele, e, como não se pode servir a dois senhores, quem “pertence” a um gênero não pode pertencer ao mesmo tempo a outro.

E podemos, agora sim, dividir as obras em dois tipos. O primeiro é o das que aceitam pertencer, sim, a um gênero, aceitam seguir as fórmulas do gênero, porque é no universo do gênero que querem fazer sucesso e alcançar a fama e a fortuna, não necessariamente nesta ordem. O segundo tipo é o das obras que não querem “pertencer” a um gênero, querem nascer dentro dele e nutrir-se dele, mas ao fim e ao cabo querem afastar-se dele, derivar tendo-o como porto de decolagem. Ir embora do gênero levando algo dele consigo, assim como Severian foi embora de Nessus.

Nenhuma opção é melhor do que a outra; nenhuma garante que o resultado literário será superior. Quem determina isso é o indivíduo. Mas é um erro dizer que qualquer obra pertence a um gênero. Asimov, Clarke, Heinlein, todos tinham orgulho de pertencer ao gênero da ficção científica.  Kim Stanley Robinson,  Neil Gaiman e China Miéville escrevem como quem quer na verdade “derivar” dele; e não veem nenhum problema nisso.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

3528) Relíquias (18.6.2014)




Nos livros de capa-e-espada ou de aventuras de cavalaria apareciam com frequência (geralmente numa cena de rua, de feira, cheia de pessoas anônimas) os vendedores de relíquias. Um cacho de cabelo de São Fulano, uma unha de São Sicrano, um retalho do lençol com que São Beltrano se cobria...  

As pessoas mais pobres pagavam, apertavam a relíquia de encontro ao peito e saíam tomadas por um otimismo devastador.

Um cronista desabusado comentou: 

“Na Europa, nos últimos cinquenta anos, já foram vendidos pedaços da verdadeira cruz de Cristo em tal quantidade que daria para construir com essa madeira uma esquadra inteira de navios. ‘Cravos da verdadeira cruz’ são tão numerosos que dariam para crucificar um país inteiro.”  

E no entanto as pessoas compravam, e compram ainda hoje, as relíquias mais diversas. Não me refiro a imagens e símbolos em geral, mas à relíquia de caráter único, que esteve ligada à pessoa do santo de maneira muito próxima ou muito significativa. Ou uma parte do corpo dele.

Curiosamente, a ciência moderna produziu sua própria cultura de relíquias. Há indivíduos que ao morrer deixam sêmen congelado para poderem fecundar mulheres cem anos depois de mortos.  Outros deixam amostras de sangue, de cabelo, de tecidos: para que ali se conserve o seu DNA e, num possível futuro, alguém possa produzir um clone que seja para eles uma ressurreição parcial. 

(Isso funcionaria mais para os descendentes do que para ele. Os bisnetos poderiam se auto-iludir: “Meu bisavô está de volta!”, mas ele saberia que não era o mesmo.)

Recolher DNA de amostras humanas para produzir um clone de alguém é uma idéia recente, mas quem nos garante que já não estava presente na antiguidade.  Podemos imaginar uma rede secreta de viajantes no Tempo que eventualmente, no meio dos seus contatos com os “nativos”, aconselham: “Guardem relíquias das pessoas importantes. Guardem amostras do sangue num frasco, guardem cabelo, unhas, crânios, tecidos mumificados, tudo que puder ser preservado, e que seja autenticamente daquela pessoa.  Um dia isso terá utilidade.”

E podemos imaginar também a existência de corredores transversais no tempo, ligando universos paralelos e contíguos, fazendo com que relíquias de um sejam contrabandeadas para outro. 

Isso justificaria a piada do sujeito que vê num museu um esqueleto adulto com a placa “Esqueleto de São Francisco” e um esqueleto de criança com a placa “Esqueleto de São Francisco aos cinco anos”. O mercado transdimensional de relíquias está de vento em popa. 

Por exemplo, um bilionário russo de outro universo está colecionando esqueletos de Bin Laden.






terça-feira, 17 de junho de 2014

3527) Tá tendo Copa (17.6.2014)




Antes de tudo: sou a favor das manifestações, desde o começo. Quero que continuem, e que desmascarem as políticas dos governos (federal, estaduais e municipais, bem como do legislativo e do judiciário), políticas que prejudicam a população e favorecem apenas os grandes grupos econômicos, construtoras, bancos e financeiras, etc.  Sou a favor de qualquer manifestação que denuncie as tramóias da Fifa. É um grupo de trambiqueiros internacionais em grande escala, que veem nosso povo com desprezo e nosso país como um antro de otários fáceis de corromper porque são desonestos de nascença.

Tirando isto, toda Copa do Mundo é uma festa do futebol para otimistas como eu, que acham que os resultados não são combinados com antecedência ou manipulados de última hora, numa reunião a portas fechadas entre representantes da Fifa e das duas seleções que jogarão logo mais. É preciso despregar do futebol (o que é dificílimo) essa gosma de dinheiro sujo e de ambição corporativa. O jogo em si é uma beleza, pelo choque entre estilos diferentes de jogar, formas diferentes de talento (o talento, por definição, é individual, multiforme, de possibilidades inesgotáveis).

A pior coisa que pode acontecer nesta Copa é qualquer violência contra os visitantes. Acho que a regra da hospitalidade é sagrada, e qualquer violência (do anfitrião contra o hóspede, ou do hóspede contra o anfitrião) é vergonhosa. (Assistam Game of Thrones, onde este tema é recorrente.)  Vamos deixar que todos torçam em paz pelos seus times, chorem suas derrotas, comemorem suas vitórias. Inclusive quando, e se, nos derrotarem. Sei que é pedir demais a meros torcedores. Continuarei pedindo.

Gosto mais de futebol bem jogado do que da Seleção Brasileira. Em 1974 e 1978 torci pela Holanda, que na época era o melhor time do mundo.  Em parte, também, torci contra a Seleção para ser contra o governo (era a época da ditadura), mas hoje acho que isso é bobagem. A Seleção representa mais o povo do que o Governo, mesmo que este pegue carona nos seus triunfos.  Os governos passam e a Seleção fica.

Não faço questão de que o Brasil seja campeão. Preferiria alguma seleção que joga bem e nunca foi. (Menos os EUA, que são a Roma Imperial de hoje.) Quero que a Copa seja alegre, festiva, disputada, com grandes jogos e grandes jogadas, que revele novos craques, que consagre os antigos, que ajude alguns a encerrar suas carreiras de cabeça erguida. No esporte, só um é campeão; mas há incontáveis motivos para orgulho e celebração, mesmo quando se é derrotado. Quero que a festa na rua seja bonita, e que após o final todo mundo vá embora pensando: “Obrigado, Brasil”.


domingo, 15 de junho de 2014

3526) De onde vêm as idéias? (15.6.2014)




(ilustração: Bill Waterson)


Todo escritor é obrigado a responder essa pergunta em qualquer bate-papo, palestra, chat via Internet. Cada um se vira como pode. A resposta não é difícil de dar, mas existe um acordo entre escritores profissionais de que é proibido revelar esse segredo aos leitores, aos críticos e aos escritores não-profissionais. 

É um pouco como os rituais da Maçonaria, a senha de acesso ao mainframe da CIA e a idade das atrizes do cinema. Correndo o risco de ser metralhado por mafiosos numa noite chuvosa numa rua deserta, revelarei alguns desses lugares secretos de onde vêm as idéias para as obras literárias. 

No Rio de Janeiro há uma galeria, na rua Marquês de Abrantes, com uma daquelas maquininhas de vender balas mediante fichas. Quem pede a ficha mais cara tem acesso a um depósito de balas que são ocas e trazem idéias para histórias no seu interior, enroladinhas em papéis como os do “biscoito da sorte”.  

Em Melbourne (Austrália), no aeroporto, basta pedir a versão atualizada do “Guia de Ruas”: a cada cinco páginas haverá um pequeno box impresso com idéias para histórias. 

Em Seattle, há uma casinha de subúrbio sempre trancada, mas a porta dos fundos fica aberta. Numa lata de leite em pó no armário, há idéias. 

Em Lodz, na Polônia, podem-se receber mentalmente idéias de uma árvore no jardim municipal, mediante uma espécie de wifi, não de mensagens concretas.

Curiosamente, foram localizadas três cidades onde as idéias podem ser recolhidas num cofre de fechadura quebrada no guarda-volumes da respectiva estação rodoviária: são elas Feira de Santana (Bahia), Ipatinga (MG) e Vancouver (Canadá).  

Nas minhas anotações consta também um supermercado em Vila Mariana (São Paulo) onde as pessoas que compram sacos de batatinhas Ruffles deparam-se às vezes com um saco (de cor inesperadamente verde) cheio de idéias anotadas e dobradinhas.  

Viajando fora do Brasil e precisando escrever, já encontrei idéias distribuídas como brinde a quem tomasse o café da manhã numa padaria no Largo do Areeiro, em Lisboa.

Há um filtro de barro que goteja idéias numa fonte dos banhos públicos, em Omã.  

Há um calendário em Baía da Traição com uma idéia atrás de cada folhinha que se arranca. 

Há uma ampulheta em Roraima onde a areia ao cair revela uma idéia que logo se desmancha e também se esvai em grãos.  

Moradores de Kalamazoo (EUA) reportam uma afloração de idéias à superfície de uma mina onde nenhum minério mais restava.  

Em Lyon, surgem envelopes apátridas de idéias, jamais abertos, apenas tendo duas inscrições pelo lado de fora, lidas com desvelo, e em seguida reenvelopados intactos e remetidos para produzir idéias em alguém.





sábado, 14 de junho de 2014

3525) A volta do piquenique (14.6.2014)



(ilustração: Tudor Dulhaz)

Me contaram (tantas vezes que para mim virou uma repousante verdade) que quando eu tinha oito ou dez anos eu morava numa casa ali perto da Mata da Bombinha, do lado de lá da universidade. No colégio me chamavam de Aluado, porque eu era um garoto arredio e diferente dos outros. Eu não entendia as aulas, isso eu me lembro. E do pouco delas que me lembro não entendo até hoje.  Essa escola ficava junto da Praça da Fonte. Meus pais me levavam de manhã e me pegavam no fim da tarde; eu almoçava lá.

Um dia (disseram) a turma foi fazer um piquenique e um passeio guiado na mata, com três professoras e dois assistentes. A escola era séria e as precauções eram grandes, mas parece que houve um momento em que todas as crianças foram para um lado e eu para outro. Eu me perdi. Durante horas todos quase perderam o juízo. Muita preocupação e desespero, achando que, sendo eu quem era, algo terrível devia ter me acontecido.

O que eles só deduziram depois, comparando provas e lembranças, foi que eu vi algo que me era familiar, algum caminho na mata que eu já tivesse trilhado antes, e por algum motivo tivesse achado que era naquele rumo que esperavam que eu fosse.  Quando deram pela minha falta e conseguiram organizar um mínimo de expedição de busca, eu já devia estar muito longe. Ao longo da manhã e da tarde eu caminhei pela Mata da Bombinha, até que (isso eu me lembro, ninguém me contou) ao me virar de repente enxerguei a rua que levava à rua que levava à rua que levava à minha rua. 

Havia pouca gente. Já começava a escurecer. Ao chegar em casa, vi que estava fechada, meus pais deviam ter saído e éramos só nós três. Eu não sabia de nada, só sabia que estava morto de cansado. Cruzei a rua sem ser visto, a porta da cozinha estava trancada, mas havia a escada na garagem e o postigo no sótão. Vivia desferrolhado, quase como se fosse uma coisa planejada. Entrei, fui para o meu quarto, desabei, dormi.  Pouco depois fui despertado por gritos de uma multidão onde reconheci meus pais, pessoas com farda de polícia, pessoas com farda de médico, pessoas empunhando os celulares, apressadas. Estavam me procurando há cerca de oito horas.

Eles não sabem (nem eu vou dizer) que durante aquele tempo afundei caravelas, contemporizei com dragões, neutralizei criptonitas, fugi da bela dama sem mercê, galguei o trono, pisei no planeta, domei burros brabos, compus sestinas, violei pirâmides, matei o tempo mil vezes e mil vezes voltei a matá-lo em suas mil ressurreições, e outra coisa que me lembro é que na hora eu me julguei merecedor do resultado final daquilo tudo. A única coisa de que me lembro é que já fui rei de alguma coisa.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

3524) Números literários (13.6.2014)




Existem números literários, assim como existem números circenses ou números musicais.  Um conjunto de elementos organizados de maneira bem específica e que devem ser reconstituídos, refeitos, diante de uma platéia de conhecedores.  Um pouco como a execução de música mediante partitura.  

A perseguição à diligência é um número do cinema de faroeste: havia técnicos especializados nela, etc.  

A reunião dos suspeitos diante dos quais o detetive rememora as pistas do caso e acusa o criminoso é um número da literatura policial.  

A torta-na-cara é um número dos palhaços, o trevo-de-Brasília (ou sei lá que nome lhe dão) é um número da Esquadrilha da Fumaça, e a briga-mortal-à-beira-do-abismo é um número cinematográfico obrigatório em mais gêneros do que me atrevo a enumerar.

O número é tipicamente um efeito literário que não apenas já foi feito antes, mas é tão conhecido que acaba se tornando um desafio técnico. Como certos números musicais que requerem perícia de execução do instrumentista, ou saltos acrobáticos e complexos no skate ou na prancha de surfe.  

Isso se torna interessante quando aplicado à prosa de ficção porque possibilita um escape para escritores profissionais que vivem de escrever com velocidade e em abundância.  A pulp fiction dos anos 1930-40, as HQs e os filmes de super heróis, o mistério policial, são gêneros onde a exploração de infinitas variantes de alguns números básicos chega a prejudicar a verossimilhança dos enredos, que tornam-se barrocos, e depois maneiristas em excesso.

A descoberta de um cadáver por alguém inocente. O triângulo amoroso.  O stand-off de armas em punho entrecruzadas.  A fuga pelos dutos subterrâneos.  O documento vital escondido num quarto, ou numa casa, e que deve ser encontrado.  O encontro com o próprio duplo, ou sombra, ou reflexo.  

Quando situações assim se apresentam, estão retornando pela décima ou vigésima vez, já fazemos idéia de seu formato e de como funciona, e temos sempre a expectativa de ver uma nova variante que mereça aplauso.

Há escritores que são mestres na execução de tais números (“Fulano escreve cena de tribunal bem pra caramba”) e acabam meio que vivendo dessa reputação, produzindo histórias e criando universos onde essa sua especialidade se torne mais necessária. 

Os crimes de quartos fechados de John Dickson Carr, os padrões dos criminosos seriais (incontáveis autores), os crimes dentro de um labirinto de Borges, forçaram os limites do gênero, tornaram-se  uma espécie de virtuosismo autoral.  

Um tour-de-force onde, como Sergei Bubka, o desafio do autor é tentar ir um pouco mais longe do que foi na vez passada.




quinta-feira, 12 de junho de 2014

3523) Pessoas desaparecidas (12.6.2014)



(ilustração: José Oiticica Filho, 1953)

Por mim, podia ser um gênero literário à parte. Nítido, com um conjunto de situações essenciais, de premissas capazes de abrir para o autor um infinito de possibilidades para a exploração de lugares, pessoas, tipos, situações bizarras ou patéticas.  Estou me referindo ao Romance da Pessoa Desaparecida, que tanto pode acontecer do ponto de vista dos que procuram esse indivíduo quanto do ponto de vista do próprio desaparecido, em sua nova condição.

Desaparecer significa sumir sem deixar rastro nem notícia, sumir sem ser mais alcançado por nenhuma das pessoas com quem se tinha vínculos (família, amigos, trabalho).  Às vezes, a pessoa aproveita uma circunstância fortuita para trocar de identidade e se fingir de morto (O Passageiro: Profissão Repórter, de Antonioni). O conto “Wakefield” de Nathaniel Hawthorne (que incluí na minha antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges) fala de um homem que some de casa e fica vigiando a esposa durante anos, às escondidas.

Não vou incluir, neste capítulo, pessoas que foram simplesmente assassinadas e seu corpo nunca foi localizado.  Meu interesse é por pessoas que tomaram a decisão de sumir, sumiram, estão vivas e incógnitas.  Sumiram por dívidas, por desespero, por problemas familiares, por aventura, por desorientação mental, não importa. É a famosa pessoa que sai para comprar cigarros e nunca mais se sabe dela, que pegou um ônibus e não chegou ao destino, que limpou a conta no Banco e evaporou-se.

O romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende cria sua variante: uma mulher começa a tentar localizar, numa cidade que mal conhece, uma pessoa de quem só sabe o nome e que parou de dar notícias à família.  E nessa busca, ela própria, que está vivendo uma vida meio troncha, de expectativas cortadas, numa meia-idade meio sombria, percebe que para tentar achar um desaparecido é preciso desaparecer também. 

Nossas cidades são cheias de desvãos, de espaços baldios, de territórios públicos para onde são empurrados milhares de pessoas sem rosto e sem nome diante do mundo.  Quem entra naquele espaço torna-se tão invisível quanto um porteiro, um ascensorista, uma doméstica. É o mundo dos sem-teto, dos sacoleiros, das pessoas que dormem em rodoviárias ou salas de espera de hospitais, que lavam e secam a roupa nas fontes das praças. Quem são?  Não sei, nunca parei para conversar com esses ETs.  Podem ter desaparecido como a Luísa Porto de Drummond,  como a Anastasia da família do czar, ou simplesmente como alguém que quis deixar para trás um nome sujo na praça, um rosto desprezado por alguém, uma vida que chegou a um beco-sem-saída e o jeito foi pular o Muro.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

3522) Doukipudonktan (11.6.2014)



(Zazie no Metrô, Cosac Naify, 2009)

Raymond Queneau, um dos meus autores mais queridos (ver aqui: http://tinyurl.com/lprpneb) escreveu de tudo e refletiu sobre tudo. Um dos seus assuntos preferidos era a diferença (para ele gigantesca) entre o francês escrito e o falado.  Francês é uma língua invocada, cheia de partículas enigmáticas, letras mudas, hífens e acentos e sinais diacríticos eriçados em todas as direções. Parece aqueles apartamentos de viúvas idosas e chiques, repletos de bibelôs, adereços, quinquilharias ornamentais preservadas a todo custo.

Queneau sugeriu a criação de um “neo-francês”, depilando o idioma de todas essas franjas descartáveis. Não colou, claro. É mais fácil a Vigilância Sanitária de lá proibir certos queijos. Queneau comentava a tendência do francês a uma “coagulação fonética” em que os sons tendem a se fundir e as letras a se multiplicar. No texto “Écrit em 1937” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1965), ele faz longos comentários sobre este tema e conclui: “On népa zabitué, sétou. Unfoua kon sra zabitué, saira toussel.” (Estas palavras exóticas, ditas em voz alta, serão entendidas por quem as ouvir; é o neo-francês fonético, mandando a etimologia às favas.)

Seu romance mais famoso, Zazie no Metrô (1959) começa com uma palavra mágica: “Doukipudonktan?”. É a pergunta que se faz o personagem, incomodado pelo odor corporal das pessoas amontoadas na estação à espera do trem. A palavra é a coagulação de “D’où qu’il pue donc tant?”.  Virou um teste para os tradutores.  Em inglês (o romance foi traduzido por Barbara Wright) encontrei “Holyfart watastink?” e “Howcanaystinksotho?” (o segundo é citado num saite, sem atribuição).

 Em português, a tradução lusitana de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, Lisboa, 1974) simplifica: “Donde parte este cheirete?”.  Em 1985 saiu pela Rocco a tradução de Irène Monique Harlek Cubic, que diz: “Pômakifedô!”.  A versão mais recente (2009) é a de Paulo Werneck para a Cosac Naify: “Dondekevemtantofedô?”. 


Só a análise dessas versões, das opções possíveis, das escolhas feitas, das pequenas infidelidades e dos volteios criativos, daria um artigo imenso.  Mas é um bom exemplo daqueles momentos em que dificilmente, em cem traduções, teremos duas iguais. A aglutinação sonora e semântica duma palavrinha assim é de tal porte que ela vira um nó indeslindável. É preciso inventar outra palavra, e nesses momentos a tradução se torna meio psicografia. É preciso entender como Queneau pensava, imaginá-lo tendo nascido no Brasil e como ele inventaria em português essa palavra de abertura. Que equivale a um “provocativo movimento”, a uma declaração de princípios, a um manifesto estético e social.



terça-feira, 10 de junho de 2014

3521) Meu São João (10.6.2014)



Meu São João espiritual começou na quarta-feira dia 4, no XIII Forum de Forró em Aracaju.  Três dias de palestras, debates e shows, tendo como homenageados este ano Antonio Barros & Cecéu (PB), Zé Calixto (PB), Edgard do Acordeon (SE) e Rogério (SE).  O Forum se realiza todos os anos na capital de Sergipe, e foi lá, em edições anteriores, que tive a alegria de bater longos papos com Almira Castilho (ex-parceira de Jackson do Pandeiro), Carmélia Alves (a Rainha do Baião), Dominguinhos, Onildo Almeida, D. Iolanda (viúva de Zé Dantas), o pesquisador cearense Nirez, o compositor João Silva e muitas outras pessoas ligadas ao mundo da música nordestina.

O São João para nós, nordestinos, é uma espécie de Copa do Mundo musical que dura um mês inteiro. Uma febre de festas que se estende por trinta dias e que no fim nos larga numa cama, extenuados e felizes.  A festa é a festa e se justifica por si só; mas a vida não é somente a festa. É trabalho também, e não devemos esquecer que quando estamos bebendo e dançando, bem satisfeitos, aqueles músicos em cima do palco estão trabalhando.  Estão se divertindo, também, mas sobrevivem daquilo (ao contrário de nós) e é do interesse deles todos que, assentada a poeira da festa, tenha havido algum tipo de proveito profissional para isso tudo. 

Vai daí que o Forum do Forró é um espaço onde se discutem as questões artísticas e profissionais do forró. O que é o forró?  Quais os estilos musicais que ele inclui?  Quem são os grandes criadores, e que tipo de parâmetros eles deixaram para nós?  O forró pertence ao ano inteiro ou só ao São João?  O forró de hoje ainda é rural ou já é todo urbano?  Como conviver com as “bandas de forró eletrônico” que arrancam cachês milionários das prefeituras do interior?  O que fazer com instrumentistas geniais que não arrastam multidões gigantescas mas são os responsáveis pela manutenção da tradição e pelo alto nível técnico do gênero?

O forró pé-de-serra é como a Lua: míngua, míngua, e quando parece que vai desaparecer começa a crescer de novo.  Já aconteceu antes e vai continuar acontecendo: e mais, a mesma coisa aconteceu e acontece com o cordel, a cantoria de viola, o samba de raiz e tantas outras formas de arte espontâneas e populares que precisam concorrer com formas industriais e planejadas. O São João está começando; que seja um momento de festa e também um momento de reflexão sobre os rumos da festa. Porque a festa é do povo, que fica, e não dos poderes, que passam.  Somos nós, os artistas, cantores, compositores, que devemos tomar a frente para manter vivo esse tipo de música. O resto passará, como já passou.


domingo, 8 de junho de 2014

3520) A Defenestração (8.6.2014)



Defenestramos o vereador Romualdo Bimbim, notório apostador de brigas-de-galo, administrador de uma camuflada rede de cambistas de ingressos de futebol e de shows de axé, devorador de picanhas gratuitas no restaurante Panela Cheia, cujo dono chantageava mercê de uma obscura transação de alvarás falsificados, comedor de menininhas selecionadas a dedo nas favelas por duas ou três assistentes sociais cuja mão ele molhava com perfumes de contrabando, notório incomodador da vizinhança em dias de jogos do Real Madrid cujos gols eram celebrados com foguetório e balbúrdia.

Defenestramos o dr. Aristarco Pompeu, rábula de porta de delegacia, rabiscador de habeas-corpus de emergência para playboys que reagem com bafafá à menor ameaça de bafômetro, assacador de consumidores inadimplentes, meeiro de indenizações fraudulentas despachadas na calada da noite mediante segredo de justiça e propinas pontuais, calígrafo-forjador emérito de chancelas e rubricas, viciado compulsivo em café, cigarros, baralho e rivotril.

Defenestramos a Dra. Vanessa Kamylla, socialite militante, perua por questão de foro íntimo, professora doutora em alguma coisa que ela nem lembra mais, futura herdeira de terrenos devolutos que abrigam parte da cracolância local, patronesse de feiras, quermesses, leilões, bazares e festivais de caridade, enóloga intuitiva com má memória para nomes e datas, aliciadora de conluios políticos à sorrelfa, colecionadora de cartões de crédito, habituê de shoppings de Miami e de cruzeiros no Caribe, esposa acarinhante e langorosa do septuagenário Dr. Cordeiro.

Defenestramos Deda Cambão, empresário no ramo de import-and-export, colecionador de Rolexes e de iPhones, candidato à perda da barriga mediante jet-ski e piscina térmica, membro do conselho de onze sociedades patronais, cognominado Narina de Titânio pelos colegas do clube Quintas Sem Lei, embolsador-sênior de comissões, percentagens e por-foras, campeão inconteste de cavalo-de-pau na madruga em pleno retão.

Defenestramos Mariinha Itajari, matriarca encanecida de edis e de sicários, de burgomestres e de atravessadores, de sinhazinhas maquiavélicas e de implacáveis viragos, três-parcas-numa-só bordando o bilro dourado e sangrento da fortuna da família, anotadora das datas de morte na mesma Bíblia e com a mesma letra onde anotara a do nascimento, esfinge em si mesma protegida por carranca e silêncio, octogenária de artérias frias, medusa bórgia, palavra final nas sentenças sem volta, gárgula de carne e osso contempladora da cidade indefesa através da mesma janela por onde a defenestramos, e por onde, vigor havendo, defenestraremos todos.


sábado, 7 de junho de 2014

3519) Dicionário Shakespeare (7.6.2014)



O mundo da literatura está cheio de proezas ociosas, como calcular a percentagem de trissílabos na prosa de Graciliano. Uma dessas empreitadas quiméricas está sendo levada a efeito pelos caras que encontraram um dicionário inglês cheio de anotações manuscritas, e cismaram que era o dicionário que William Shakespeare usava como  referência ao escrever suas peças.

Fui lá no saite (http://tinyurl.com/oreosrz) dar uma olhada. Existe todo esse friquitício (lamento, leitores não nordestinos – explico depois) a respeito das palavras que o dono do dicionário sublinhou e que aparecem em peças do dramaturgo. Há uma visível mão-grande na direção de tentar comprovar a hipótese, mas é isso mesmo, afinal hipóteses são para isso, para a gente sugerir, propor e vê até onde consegue fazer as pessoas apostarem nela.  Existe uma dramaturgia da História, um gênero que consiste em relatar que “as coisas aconteceram assim”.

Vejam esta matéria: http://tinyurl.com/lzjme9r. Não sou um grande leitor de Shakespeare, na verdade só conheço bem duas peças dele (“Hamlet”, “Macbeth”), não li as exegeses de Harold Bloom, seu laudador maior, mas falando de poeta para poeta o interessante de Shakespeare é a aparente facilidade de suas imagens. Ele faz um símile ou uma alegoria qualquer e você pensa: “É exatamente isso”. Talvez pareçam óbvias a leitores do século 21, mas pode ser que leitores do século 17 pensassem: “Meu Deus, nunca me ocorreria dizer isso assim”. Para mim, o Poeta diz as coisas de uma maneira que parece a única possível para descrever aquilo.

O dicionário de Shakespeare não difere muito da camisola de Marilyn Monroe ou do biquíni de Brigitte Bardot, que colecionadores arrematam. Este objeto é precioso, porque esteve em contato com alguém precioso, predestinado, extraordinário. A criação cultural envolve leilões de opiniões, de teses, de explicações do mundo. “Minha tese é de que Fulano foi o dono deste livro, baseado em tais e tais indícios. Se discordar, beleza, apresente suas informações que conflitam com as minhas.”  Um dia a ciência vai estar tão avançada que a gente vai mostrar um manuscrito do século um e provar que foi escrito por alguém do século dez.

Achar o dicionário de Shakespeare seria tão útil (ou tão inútil) quanto achar a bússola quebrada que foi usada por Américo Vespúcio, ou a Bíblia que Lutero violentou com tinta negra e letra gótica.  Achar o mapa da ilha do tesouro.  Achar o resíduo sagrado de um personagem sagrado.  Cada novo farrapo de texto que se descobre de um autor parece estar disfarçadamente zombando de tudo que o precedeu, parece saber que seria lido por último.


sexta-feira, 6 de junho de 2014

3518) "Histórias da Velha Totônia" (6.6.2014)




Veio parar nas minhas mãos um livro de José Lins do Rêgo que eu nunca tinha lido: Histórias da Velha Totônia (1936), uma coletânea de histórias de Trancoso que Zé Lins diz ter escutado, quando era menino, dessa velhinha que andava de engenho em engenho, contando suas histórias.  A 21a. edição de José Olympio é de 2010; como o livro é curtinho, sobre espaço para vários textos explicativos e para as ótimas ilustrações de Tomás Santa Rosa, da edição original.

Esse livro parece ter sido o inspirador de outro publicado no ano seguinte: Histórias de Tia Nastácia de Monteiro Lobato, muito mais conhecido, até porque Lobato tem um público infantil historicamente estabelecido, ao contrário de Zé Lins.  Presumir influências é sempre arriscado – pode ser que Zé Lins tenha ouvido falar que Lobato estava preparando um livro de histórias de Trancoso e resolveu adiantar-se, lançando primeiro o seu.  Em todo caso, o de Zé Lins tem apenas quatro histórias, contra 43 do livro de Lobato. (E há duas em comum: “O Sargento Verde” e “O príncipe pequeno”/”O homem pequeno”).

Comparando as histórias vê-se que Monteiro Lobato reproduz o conto da maneira mais despojada possível, mas Zé Lins (talvez por dispor de menos material) capricha no enchimento. O que em Lobato se resolve com “Um dia apareceu um moço, também muito lindo, querendo casar com ela”, dá a Zé Lins assunto para uma página inteira (em “O Sargento Verde”).  O autor literário, em geral, quando pega esse tipo de narrativa aumenta os diálogos, as descrições, etc. – aumenta somente o material acessório, até por um certo pudor de mexer no esqueleto, na estrutura narrativa.

No seu livro, Zé Lins se queixa se que “as velhas Totônias estão desaparecendo”.  O livro é de quase 80 anos atrás, e como o Nordeste ainda é cheio, hoje, de velhinhas contando histórias, podemos imaginar que no momento exato em que Zé Lins escrevia havia algumas Totônias (ou Nastácias) nascendo por toda parte.  A maior contadora-de-histórias paraibana, Luzia Tereza (1909-1983) tinha 27 anos quando o livro dele saiu, e certamente ainda não tinha aprendido a maior parte do repertório que a tornaria famosa.

O número dessas pessoas tende a diminuir, mas mesmo que diminua é possível fazer com que elas não desapareçam. Não se trata apenas de amparar e documentar as velhinhas que passam adiante as histórias da memória oral.  Mas fazer com que elas não falem só para os pesquisadores e os gravadores – falem para as meninas e meninos de hoje, as mocinhas e os rapazinhos de hoje.  Alguns deles, quem sabe, estarão daqui a 70 anos recontando a histórias de Luzia Teresa, de Tia Nastácia e da velha Totônia.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

3517) As perseguições (5.6.2014)




(O Bode Gaiato)

Basta ser nordestino para ser, de alguma maneira, superior a quem o não é. Estou sendo preconceituoso ou arrogante ao dizer isto?  Espero que não, porque o digo com a consciência tranquila de que o que os nordestinos são, filosoficamente falando, é algo
que independe tanto da minha opinião quanto da do meu interlocutor. Mas eu tenho, sim, o direito de falar que os nordestinos são superiores a todos os demais, assim como o torcedor do Bambala ou do Arimatéia pode dizer o mesmo de seu time, e qualquer filho de Deus pode dizer o mesmo sobre o Deus de quem é filho.

Gozações regionalistas muitas vezes se dão em paz quando feitas entre iguais, de parte a parte, cada qual ironizando as pretensões do outro e afirmando a grandiosidade de sua própria pátria.  Vira uma forma brincalhona de convívio, uma troca amigável de alfinetadas.  O perigo existe quando se dá numa relação vertical de poder, quando o que está por cima não apenas explora o trabalho do outro, mas, para manter esse estado de coisas, esmaga o seu amor próprio, faz com que ele primeiro despreze e depois odeie suas origens. Já vi muitos casos de nordestinos exilados que assimilaram sotaque, hábitos, cultura, valores, e apagaram da memória tudo que houvera antes.  Alguns por um verdadeiro trauma, por tática de sobrevivência.

Você manda um projeto para um órgão público ou para um edital de empresa no Sudeste, o projeto não passa, aí você diz: “Claro, eles não vão deixar um nordestino passar na frente dos outros.” Como existe o precedente de mil pequenas situações de preconceito, o sujeito insatisfeito expande isso para qualquer situação. Recusa-se a admitir que podem ter aparecido projetos melhores que o dele, por motivos totalmente diversos.  Recusa-se a admitir que o projeto dele pode não ser tão interessante assim para a empresa ou o órgão a que foi submetido, independente da origem geográfica.

O preconceito existe, como existe contra qualquer grupo que pareça exótico e possa vir a ser um antagonista; mas ele não está em todo lugar.  Às vezes ocorre mais por desinformação do que por antipatia. Às vezes a pessoa preconceituosa nem está em posição de produzir grandes estragos (embora os produza quando está).  A paranóia persecutória do nordestino o faz achar que nunca estão vendo a pessoa dele, estão reduzindo sua individualidade a um clichê pejorativo. É o problema de todas as minorias. O mundo inteiro não está fazendo uma grande Conspiração para marginalizar, exterminar, deletar os nordestinos da História e da Geografia.  A não ser... a não ser... que nós sejamos mesmo superiores a todos eles, e é por isso que não nos aguentam.