sábado, 24 de setembro de 2022

4866) É verdade esse bilete (24.9.2022)


O professor Douglas R. Hofstadter, um dos meus cientistas favoritos, propôs em seus livros (principalmente em Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid, 1979) o conceito de “strange loop”, que pode ser traduzido aproximadamente por “laço estranho”. Um loop é algum processo cujo fim se engata no começo, como uma serpente mordendo a ponta da própria cauda. Usa-se muito em música eletrônica – um loop musical é em geral um trecho de alguns segundos que se repete, ciclicamente. Toda vez que chega ao fim, começa outra vez.
 
O “laço estranho” proposto por Hofstadter é mais complexo. Na definição dele, ocorre quando movemos através de níveis superpostos, em que cada um é hierarquicamente superior ao que lhe está por baixo, e quando subimos ou descemos um nível percebemos inesperadamente que estamos de volta no ponto de onde partimos.
 
Aliás, essa sensação desconcertante de estar de volta, sem querer, ao ponto de partida, é muito explorada em filmes de terror por exemplo – pessoas que querem fugir de uma cidade mas todas as ruas levam de volta ao lugar ameaçador do qual querem se distanciar, por exemplo.
 
É uma situação uncanny, e digo isto porque Freud, em seu ensaio O Estranho (“The Uncanny”, 1919) relata uma vez, numa cidade da Itália, em que ele estava andando à toa, e percebeu que tinha entrado na zona do baixo meretrício local. Toda vez que ele pegava uma rua para se afastar dali, a rua fazia uma curva e o trazia de volta. Freud explica?...
 
O problema sugerido por Hofstadter, como falei, é mais complexo. Freud estava vagando num mesmo nível hierárquico, ou seja, num mesmo plano de realidade (a cidade italiana). Mas imaginemos dois planos diferentes. A gravura de M. C. Escher “Print Gallery” mostra um bom exemplo. Um homem, numa galeria de arte, contempla a gravura de uma cidade; em cada área do quadro os objetos são vistos num grau maior de aumento, de forma que o edifício mostrado na gravura exibe uma galeria onde um homem (ele próprio) contempla uma galeria análoga.


A gravura mostrada no quadro contém a cidade, o prédio e a própria galeria onde a gravura está exposta. Isto é um “laço estranho”. Nós retornamos, sem haver nenhuma quebra de continuidade aparente, ao ponto onde estávamos. Hofstadter chama isso de “tangled hierarchies”, hierarquias entrelaçadas – quando em tese deveriam ser isoladas uma da outra, gravura é gravura, realidade é realidade.
 
Um exemplo dos mais divertidos é o filme de Woody Allen A Rosa Púrpura do Cairo, em que se misturam duas hierarquias: o filme que passa na tela, os espectadores na platéia. Atores descem da tela para a sala, batem boca com os que continuam lá em cima, num sincronismo perfeito e sem a menor dificuldade de compreensão para o espectador.


Vou usar de modo um tanto livre esse conceito aplicado a textos. Os exemplos na ficção são inúmeros – livros onde de certa forma a “realidade interna” do livro é quebrada e o mundo do leitor se insinua lá para dentro (ou vice-versa – os personagens “vazam” aqui para fora.)  Mas vou usar alguns memes que aparecem recorrentemente nas redes sociais, alguns devem ser inventados, outros autênticos, não importa: importa que sugerem variantes ao conceito de “hierarquias entrelaçadas”.

 
O primeiro deles é o mais famoso, que usei no título. O garoto, ao que parece, escreveu de forma canhestra e infantil um bilhete para os pais. (Vamos supor, por hipótese de trabalho, que tudo ocorreu assim.)


SENHORES PAES. AMANHÃ NÃO VAI TER AULA POORQUE [sic] PODE SER FERIADO

ASSINADO: TIA. PAULINHA

É VERDADE ESSE BILETE

 

Existe aí uma tentativa ingênua de falsificar um comunicado oficial do colégio. Que já desmorona no aspecto material: o papelucho rasgado, a caligrafia denunciadora, etc. O garoto terá feito isto a sério? Ele chegou a acreditar que os pais acreditariam? Parece que quando chegou A Hora Da Verdade – a temível hora de botar no papel as nossas Grandes Idéias – a rebordosa da realidade bateu com força e ele foi percebendo a enrascada em que se metera.


O problema aumentou quando ele assinou o nome da professora do único jeito que sabia: “Tia Paulinha”. E em desespero de causa ele adicionou a frase que hoje é famosa: “É verdade esse bilete”.
 
Existe aí um “laço estranho” misturando várias hierarquias: o bilhete pretensamente real; os “furos”, evidentes até para o falsificador; a frase em-desespero-de-causa; e por último um fator extra-texto mas não menos importante – o bilhete (ao que parece), foi entregue, mesmo em plena auto-decomposição semiótica.
 
O segundo exemplo é outro que sempre me provoca uma risada de primeira-vez quando o reencontro nas redes sociais.
 
Também escrito num pedaço rasgado de um caderno escolar, o recado diz apenas:
 


Mamãe, a chave está debaixo do tapete.

Ladrão, vai à merda.

Claudete

 

Quem nunca deixou a chave de casa embaixo do tapete “Bem Vindo” à porta? Ou no vaso de planta do terraço? Ou no quadro-de-luz? Ou em cima da soleira da porta? As possibilidades, como sempre, são infinitas. (Eu preciso usar esta frase como meu epitáfio.)
 
Claudete começou a escrever o bilhete pensando em deixá-lo na porta, provavelmente, mas no próprio ato de rabiscar percebeu que não tinha muita diferença entre deixar a chave à mostra e deixar um bilhete revelando onde ela estava escondida.
 
A primeira frase do bilhete é uma informação que se auto-invalida no momento em que é recebida pela pessoa errada. Claudete se aperreou. Como revelar o local da chave à mãe, mas não ao possível ladrão? Ela deixou lá, e desabafou: “Ladrão, vai à merda”.
 
É um “laço estranho”, porque o bilhete se dirigia a duas pessoas, na certeza de que qualquer uma das duas que lesse impediria a outra de fazer o mesmo. E o fato de que o bilhete foi deixado no local (presumo isto, como hipótese de trabalho) é um “gesto informativo” a mais. Ela confiou que a possibilidade do bilhete ir parar nas mãos do ladrão era confortavelmente menor do que de ir para nas mãos da mãe. Deixou o bilhete, e mandou o ladrão à merda. (No que fez muito bem.)
 
O terceiro exemplo é também muito gozado, mas aqui não se trata de um recado, e sim de um diálogo via WhatsApp.
 


Ciço, acho que tô buchuda.

 

Watsapp informa: nosso cliente

não utiliza mais esse serviço móvel

para troca de mensagens instantâneas.

 

Deixa de ser ridículo! Eu sei

que é você! Você escreveu

Whatsapp errado seu imbecil!

Seja um Homem!

 

Informamos também que estamos

apresentando erros hortográficos

em nossa plataforma de mensagens.

 
Este é um diálogo literariamente sofisticado, no sentido de que as palavras dizem uma coisa mas ao mesmo tempo deixam transparecer de maneira cristalina o que está de verdade acontecendo entre as duas pessoas. A moça que inicia a conversa, Francisca, é uma pessoa pé-no-chão e nem um pouco boba, porque logo na primeira resposta ela percebe um erro e entende a manobra de “Ciço”.
 
Ela reclama, bota o cara no canto da parede. E aí percebemos a cara de pau de Ciço, que não se dá por achado, não dá o braço a torcer, e recorre ao “laço estranho” de fingir que é um sistema de respostas automáticas capaz de entender a acusação que lhe é feita por escrito. E quando ele recorre à mais improvável das comprovações (“hortográficos”), percebemos que na verdade Ciço não está querendo convencer a moça de que é o WhatsApp. Está apenas tirando o corpo fora da situação, com uma manobra metalinguística, mas deixando sua intenção muito clara.
 
Estes três exemplos mostram mensagens que se detonam a si mesmas, denunciando as próprias contradições ao entrelaçar diferentes hierarquias: diferentes vozes, diferentes origens do discurso ou diferentes destinatários.
 
Para encerrar, vai aqui um exemplo ilustre, que não sei se é verdadeiro porque o texto é atribuído ao escritor Marcel Proust, mas vem em inglês, e não em francês, como seria de se esperar. Mas enfim – tudo é literatura.

Minha Cara Senhora

Acabo de perceber que esqueci minha bengala

em sua casa, ontem. Por favor, tenha a gentileza

de entregá-la ao portador deste bilhete.

P.S. – Peço perdão por incomodá-la; acabo de

encontrar minha bengala.

Marcel Proust