sábado, 30 de dezembro de 2023

5017) Resoluções para 2024 (30.12.2023)



(Saul Steinberg, 1949)


Tirar a poeira que provavelmente se acumulou por trás dos livros nas prateleiras da estante. (Ou pagar alguém para fazê-lo, o que está mais próximo ao reino das possibilidades.) 
 
Fazer uma consulta no oculista; trocar as lentes dos meus óculos, mais arranhadas do que o escudo de Sir Lancelote; e, talvez, parar de ler os livros como se lesse em Braille com a ponta do nariz. (Bem, devo estar exagerando, mas a miopia está tão avançada que a olho nu não distingo entre enxergar e exagerar.) 
 
Entregar aquele texto atrasado, mas não esquecido. (Desculpa aí, amigos, mas o que nasce de parto natural tem seu ritmo próprio, e ainda não se inventou a cesariana literária.) 
 
Dar uma nova chance a pelo menos um terço dos livros que no ano passado não passaram no Teste do Primeiro Capítulo. (Sim, sei que o critério é brutal, mas trata-se de uma pilha com cerca de quarenta ou cinquenta obras, e nestas horas não sou mais o intelectual diletante e complacente, sou segurança-de-boate com dentes de titânio e tatuagem de Chuck Norris no bíceps, e só tem acesso quem fizer por onde.) 
 
Responder todas as mensagens ainda não respondidas, assim que for capaz de decidir se devo fazê-lo por ordem cronológica, por ordem alfabética, ou por ordem de importância. (E, neste último caso, retomar os originais dos meus Prolegômenos a uma Taxonomia Hierárquica das Motivações Subjetivas dos Meus Assim-Ditos Semelhantes, interrompida na página 638 no início da pandemia.) 
 
Investigar mais a fundo o dúbio acidente de automóvel que vitimou o escritor Albert Camus, nos primeiros dias de janeiro de 1960, e que muitos dizem ter sido um crime premeditado. (Paul Auster é um dos que defendem essa tese polêmica.) 
 
Pesquisar com detalhes o meu projeto antigo de criar na Paraíba uma reprodução do “Caminho de São Tiago de Compostela”, começando em João Pessoa (Ponta do Seixas) e indo até Cajazeiras, a última grande cidade paraibana, num trajeto feito a pé. (Calcular número de quilômetros por dia, possíveis paradas, albergues, etc.) 
 
Escrever um livro de contos intitulado “Praça de Alimentação”, com pequenas cenas, diálogos, etc., ambientados nas respectivas praças de alimentação de dez shoppings de cidades brasileiras, com detalhamento de descrição suficiente para serem identificados, mas sem dizer quem é quem. (O livro será um best-seller absoluto, porque irá impactar lucrativamente na frequência a esses recintos, e receberá um impulso comercial extra sempre que uma das praças for identificada sem sombra de dúvida.) 
 
Escrever uma biografia de B. Traven. (Já que ninguém sabe quem foi ele ao certo, embora sua obra literária seja famosa, qualquer biografia tá valendo.) 
 
Desencaixotar aquela parte da mudança de 2019 na qual ainda não tive ânimo para mexer. (Principalmente porque muitos livros sumiram na mudança, quem me garante que não estarão ali? Questão de lógica elementar!...) 
 
Redigir o piloto daquela série de TV que será um grande sucesso, “Dennis vs. Sheldon”, em que o Pimentinha dos gibis encontra o Young Sheldon, o futuro protagonista da série The Big Bang Theory. (Verossimilhança cronológica à parte, claro, porque esse detalhamento diegético fica para esse pessoal pentelhante e catador-de-lêndeas, os sheldonianos da vida real.) 
 
Separar as camisas em que é preciso pregar botão. (E mais uma vez me verei diante do dilema: aprender a costurar aquela cruzinha que sustenta o botão, ou continuar terceirizando? Fortes emoções nos próximos capítulos.) 
 
Aprender a fazer mágicas. (Sim, muitas pessoas transbordantes de solidariedade dirão que eu “já faço mágica com as palavras, etc etc...”, mas meu sonho é fazer mágica com baralho, lenço, pombo, jarro dágua, etc.) 
 
Passear nas três linhas do VLT do Rio, que praticamente não conheço ainda. (Eu não moro no Rio de Janeiro, moro no meu apartamento.) 
 
Baixar aquele software que atribui uma nota musical a cada tecla deste meu teclado de escrita, e registrar a melodia-aleatória correspondente a meus poemas mais conhecidos. (Ainda estou em dúvida se solto as melodias no YouTube e ofereço um prêmio a quem descobrir, mas isso vai bagunçar minha rotina, melhor não.) 
 
Traduzir o Eugene Onegin de Pushkin sob o título de Eugene, Oregon, mantendo o formato de “soneto pushkiniano”, e ambientar a história no noroeste dos EUA, uma história tipo aquele Paterson de Jim Jarmusch. (Pode parecer uma violentação à arte do poeta russo, mas muito pior do que isto foi o que fez Vladimir Nabokov!) 
 
Todos os dias trancar a porta do escritório, pegar o violão, e improvisar sextilhas sobre temas aleatórios durante 30 minutos. (Só começar a gravar a partir do quinto mês.) 
 
Ganhar bem muito dinheiro, comprar as casas onde já morei em Campina Grande, e cedê-las às autoridades para que sejam transformadas em bibliotecas públicas. (Para ser totalmente realista, a parte mais provável desta proposição é o seu trecho inicial.) 
 
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 








quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

5016) Drummond: "Romaria" (27.12.2023)




("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 
 

As romarias ou peregrinações são eventos curiosos, onde há de tudo – mortificação do corpo, diversão, penitência, passeio, busca da transcendência, busca do gregarismo, jornadas espirituais íntimas, afirmações coletivas de união em torno de uma fé. 
 
Penso nisto quando avalio toda a variedade de peregrinações, inclusive os caminhantes de Santiago de Compostela e os romeiros dos Contos de Canterbury de Chaucer.
 
Histórias de peregrinações são sempre “road movies”, filmes (ou romances) de estrada, de tudo que acontece aos peregrinos durante um trajeto fixo, mítico, carregado de significação em cada pedra, em cada árvore.
 
A romaria é uma forma reduzida de peregrinação – muitas vezes se dá no interior de uma mesma cidade, ou na direção de uma cidade vizinha; mas o espírito é quase o mesmo. 


 (J
uazeiro)  
 

As romarias cristãs dos brasileiros têm um pouco desses formatos tradicionais, como têm um pouco de tudo. 
 
Minha mãe fazia romaria todos os anos para o Juazeiro do Padre Cícero, geralmente na época do Dia dos Finados. Era um grupo de gente idosa e super animada; anualmente faziam uma vaquinha e alugavam um ônibus com motorista para levá-los ao Horto do Padrinho. Iam cantando de Campina Grande até o Cariri cearense. Levavam lanche, marmita, farofa. Chegando lá, rezavam, tiravam fotos, reencontravam amigos distantes, pagavam promessas antigas, faziam promessas novas, e voltavam felizes da vida. 
 
Eu já tinha minhas fumaças agnósticas, mas adotava uma postura filosófica e dizia: “Deixa, é o Woodstock deles.”
 
Pensamos na romaria como uma caminhada só de sofrimentos, talvez porque nos venha a imagem dos peregrinos auto-flagelantes, que caminham chicoteando as próprias costas e deixando um rastro de sangue. Mas toda romaria é heterogênea. Há os masoquistas, os comerciantes (romaria é como carnaval de rua, está cheia de gente com isopor vendendo alguma coisa), os festeiros, os compungidos e circunspectos, os que estão aproveitando aquela chance de sair do confinamento doméstico... 



("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
Gilberto Gil fez um dos melhores retratos na clássica “Procissão” (1967):
 
Olha, lá vai passando a procissão
se arrastando que nem cobra pelo chão...
As pessoas que nela vão passando
acreditam nas coisas lá do céu...
As mulheres cantando tiram verso,
os homens escutando tiram o chapéu,
eles vivem penando aqui na Terra
esperando o que Jesus prometeu. 
 
A procissão de Gil sempre me evocou visualmente, por motivos óbvios, aquela multidão de pedintes andrajosos que em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha) avança ao longo daquele buñuelesca escadaria do Monte Santo, seguindo o profeta Sebastião com seu burel esfarrapado e sua cruz que não passa de dois galhos esquálidos atados com cordas.


 
("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
Diferente é a “Romaria” que Carlos Drummond de Andrade incluiu em seu livro de estréia (Alguma Poesia, 1930). O retrato feito por Drummond é mais rico, mais variado, tem algo das procissões auto-punitivas, tem algo das procissões festivas, chega a parecer uma festa-de-largo ambulante, mas não deixa de exibir seu elenco de devotos maltrapílhos que lembram os mendigos de Viridiana ou de Los Olvidados.
 
Existe mortificação física (espinhos, pedras) mas em compensação as romeiras têm coxas, os homens cantam sem parar, joga-se baralho, fumam-se cigarros, é dia de festa. 
 
É curioso que um poema assim talvez fosse a oportunidade para um poeta cético e modernista dirigir alguma crítica ao excesso de fanatismo. O poema de Drummond parece criticar o excesso de festa, é como se dissesse: “Pessoal, vamos devagar, isto aqui não é quermesse!”. Mas... no Brasil tudo que tem multidão vira quermesse. 



("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
E os inesgotáveis pedidos! Pedem a Deus tudo quanto não têm, e não é pouco. Talvez o pedido mais patético e sutil seja o desse leproso (outro personagem buñuelesco), que traja uma opa (casacão comprido), agita um estandarte, e pede a Deus para ser curado – mas não da doença, e sim do amor que sente e ninguém retribui. 
 
   
***********************  
 
Romaria
              A Milton Campos

Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.
 
Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.
 
No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha um estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
 
Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa.
 
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.
 
Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.
 
Senhor, meu amo, dai-me dinheiros,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não pissui.
 
Jesus me Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.
 
Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.
 
Os romeiros pedem com olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade.
 
 
 
 
 




domingo, 24 de dezembro de 2023

5015) Natal 2023 (24.12.2023)



("A Arena", 1950, Maria Helena Vieira da Silva)


1
... e torno ao labirinto de onde escapo
sabendo que não há lado de fora:
labirinto do Hoje, o Aqui, o Agora... 
Du bist so schön, ó glorioso instante!
Meu desejo é que o tempo desencante
a si mesmo, e distenda seu elástico
transformando um só dia num fantástico
sempre-agora – incessante, inacabável...
É pecado sonhar? É condenável
brincar de crer no que não pode ser? 
 
2
Falar do Tempo é luta e é prazer,
bastidores e palco, treino e jogo.
Alguns dizem que o Tempo é como o fogo;
tanto destrói quanto ilumina e aquece. 
Outros dizem que o Tempo se parece
a um Olho que rói tudo que observa:
a carne, o chão, a água, o bicho, a erva,
a beleza, a verdade e a memória...
Corrosiva visão que cria a História:
soma do que esquecemos e lembramos. 
 
3
Por piores Natais nós já passamos!
Vamos então sorrir no que há sorrisos,
fantasiar trenós, renas e guizos
como fantasiamos hobbits e ETs...
Nada melhor do que “Era uma vez...”
pra reduzir o peso do real.
O peso do existir, ser material,
ter doenças, incômodos e achaques,
ficar sujeito à dor, aos piripaques,
às síndromes de nomes estrangeiros... 
 
4
São duzentos milhões de brasileiros
cada qual com seus corpos e seus traumas,
todos sonhando que possuem almas
e que todas vão ter segundas-chances...
Pobre de mim, que li tantos romances
e aprendi a descrer da crença alheia...
O mundo é sem Aranhas. É só Teia,
mero desenho e possibilidade;
não existe arquiteto ou divindade,
existe o espaçotempo – e a matéria. 
 
5
Sendo assim, o Natal é coisa séria;
futebol, carnaval, apendicite,
Grammy e Oscar, Nobel e dinamite,
todas as ilusões desta existência!
Tudo é sério: o humor e a ciência,
o ser e o nada, o cu e a cueca,
o deus de Roma e o alá de Meca,
a reza, a rosa, a prosa e a poesia,
a honestidade e a patifaria,
o fato, o fóton, a foto, o selfie, o fake... 
 
6
Todo palácio vale um milk-shake!
Um mendigo equivale a um senador!
Um vampiro de filme de terror
não é menos real que o cineasta.
O Real é tufão que tudo arrasta,
ventania que varre o mapa-múndi,
poeira que nos cega e nos confunde,
o tempo, o vento que nada perdoa...
Tudo é real onde existir pessoa,
esse espelho-do-ser chamado gente. 
 
7
E o Natal acontece novamente!
E Boas Festas a quem merecê-las.
“Alforje ao ombro, recolhendo estrelas”,
eu retorno, à maneira de Seu Nilo,
e de astro em astro vou enchendo um silo,
e com esperança aguardo o ano seguinte,
e brindo com meu vinho sub-20
à saúde de todos, todas, “todes”...
Irão me achar no camarim dos “roadies”
onde a conversa é mais interessante. 
 
8
Errar é humano? Eu sou judeu errante,
andarilho da idéia. I am the walrus.
Minha estrada é moebius-ouroboros,
o meu chão é de vácuo e é de vento,
um mar de mármores em movimento,
vagalhão congelado que goteja...
Pois venha o tempo, e o que vier, que seja!
Isto aqui não é sangue, é vinho tinto.
Chego à saída deste labirinto,
empurro a porta onde se lê: da capo... 
 
 





quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

5014) O filme de Samuel Beckett (21.12.2023)




Um dos filmes mais modestamente enigmáticos da História do Cinema é a improvável parceria entre o dramaturgo Samuel Beckett (Prêmio Nobel de Literatura 1969) e o ator Buster Keaton, o rei das comédias-pastelão do cinema mudo. Film (1965) dura apenas 22 minutos, pode ser visto online, e não tem nenhum diálogo, o que de certa forma corresponde ao currículo do ator principal (Keaton) e ao temperamento do roteirista (Beckett).
 
O roteiro foi esboçado por Beckett em 1963, e a filmagem aconteceu em New York, em 1964, com a presença do autor – a única viagem de Samuel Beckett aos Estados Unidos. 
 
O diretor do filme, Alan Schneider, tinha experiência apenas teatral, tendo dirigido numerosas montagens da obra de Beckett, inclusive a estréia de Esperando Godot no EUA, em 1956. Film é sua criação cinematográfica mais conhecida.




O filme é a narrativa puramente visual, num ambiente urbano meio em ruínas, da aparente fuga de um homem encapotado (Keaton), em plena luz do sol, procurando ocultar-se às vistas de outras pessoas e trancando-se num quarto, onde aparentemente mora.
 
Sempre perseguido pela câmera (que entra com ele no quarto), o homem passa a bloquear tudo que pareça estar observando-o. Coloca cobertores vedando a janela, o espelho, depois cobrindo a gaiola onde há um papagaio, e até mesmo o aquário onde um peixinho parece vigiá-lo. Numa cesta no meio do quarto há um gato e um pequeno cão; o homem leva cada um deles até a porta e os empurra para o corredor. 
 
Nste trecho há a única ação que um fã de Buster Keaton pode identificar com suas comédias tradicionais, porque ele põe o gato para fora, vem buscar o cão, e quando abre a porta para livrar-se do cão o gato entra de novo. Isso se repete algumas vezes – é uma gag clássica do cinema mudo.




Depois o homem manuseia e rasga algumas fotografias (que supostamente reproduzem sua vida desde a infância), e um desenho pregado na parede.  Por fim, a câmera (que estava sempre às suas costas) mostra seu rosto: ele usa uma venda negra sobre o olho esquerdo, e quando olha para a câmera vê-se a si mesmo, como se a câmera fosse seu “duplo”, vigiando-o sem parar.




No saite “UbuWeb” (o “YouTube da vanguarda”) há um relato do diretor Alan Schneider descrevendo o entusiasmo e o horror de alguém que está dirigindo um filme-de-verdade pela primeira vez. Exultante por estar trabalhando com dois dos artistas que mais admirava, ele lamenta a própria inépcia, a própria inexperiência, e faz comentários tipo: “O segundo dia de filmagem nos trouxe diferentes problemas, mas foi tão horrendo quanto o primeiro”.
 
A Wikipedia (na sua versão em inglês) tem um verbete surpreendentemente longo e opinativo sobre o filme. Um dos comentários mais interessantes é o que o compara ao poema de Victor Hugo “La Conscience”, em que o poeta compara a consciência humana a um olho sempre em vigia, um olho que nunca se fecha. Comparação que não deixa de me evocar a imagem do morcego, no soneto famoso de Augusto dos Anjos: 
 
A consciência humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
imperceptivelmente em nosso quarto!
 
O personagem de Buster Keaton consegue se livrar da janela, do espelho, do cão, do gato, do papagaio, do peixe, até mesmo dos rostos pintados ou fotografados que o contemplam: mas no final é forçado a reconhecer a presença, dentro do quarto, da câmera, que age como um sucedâneo dele próprio. A câmera que, como ele, só tem um olho. A câmera que, como o morcego, é ao mesmo tempo cega e dotada de um radar próprio. 




Não deve ter escapado aos críticos o fato de que o Olho é uma das mais antigas imagens de Deus, aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo vigia, tudo fiscaliza, tudo testemunha. 
 
Curiosamente (por uma dessas sincronicidades serendipíticas na vida de quem escreve) fui consultar online uma resenha de Andrew Sarris, um crítico que leio com proveito, mesmo que às vezes rilhando os dentes de irritação. Ele descarta Film como sendo “um fracasso completo” e observa, com agudeza, que por ser silencioso o filme abre mão da maior qualidade de Beckett como dramaturgo, que é o seu diálogo. 
 
Ao lado, porém, ele resenha o filme Marlowe (1969), dirigido por Phil Bogart, com James Garner no papel do detetive Philip Marlowe. E a certa altura diz:




Vejam só que adendo providencial. O detetive é “o cavaleiro andante do olho privado e da consciência pública”. Traduzo “private eye” (=detetive particular) ao pé da letra para manter essa equivalência: o Olho é a consciência controladora que nos segue, o drone, a câmera da vigilância. 
 
Dizem que no roteiro original de Beckett para Film aparecia uma citação do Bispo Berkeley, "esse est percipi" = existir é ser percebido. (O que lembra a máxima do grande Pudóvkin, cineasta russo: “O ator não-iluminado não existe”). Todos nós vivemos (diz a tradição) sob o olhar de Deus, e se sua atenção se desviasse de nossa pessoa por um segundo apenas, seríamos instantaneamente evaporados. (Não deixa de ser encantadora essa humaníssima capacidade divina para a distração.) 
 
O roteiro de Beckett prevê estes dois personagens, que ele chama de “E” (Eye = a câmera) e de “O” (Object = Buster Keaton). “E” sempre acompanha o personagem filmando-o pelas costas de maneira sorrateira e implacável; quando “O” percebe sua presença, encolhe-se, assustado, irritado, pronto para fugir. 
 
Fico imaginando se Beckett terá em algum momento pensado, trocadilhisticamente, em chamar um destes dois personagens de “I”, que seria ao mesmo tempo “Eu” e “Olho” (=eye). Um Eu todo encapotado em pleno sol de verão (como o “homem invisível” de Wells, que precisava cobrir-se de roupas para ninguém “vê-lo” e perceber que ele é invisível) e um Olho que o persegue voyeuristicamente, arrastando consigo todos nós, curiosos de saber por que, para aquele homem, ser visto é algo tão doloroso. 




Film é um desses trabalhos pouco visíveis mas que deixam ecos em obras mais conhecidas – basta lembrar o caso de Eraserhead (1977), o filme de estréia de David Lynch, que parece uma glosa e desdobramento de alguns temas deste curta.
 
A equipe técnica do filme inclui ainda o diretor de fotografia Boris Kaufman, russo de nascimento (como o diretor Schneider), e um dos grandes fotógrafos de cinema de sua geração, com trabalhos do nível de L’Atalante (1934), Sindicato de Ladrões (1954), 12 Homens e uma Sentença  (1957), O Homem do Prego (1964). 
 
Curiosamente, Kaufman era irmão do documentarista Dziga Vertov, o criador do “cinema-olho” soviético com filmes tipo O Homem com a Câmera  (1929), cujo título ecoa o do filme de Buster Keaton The Cameraman (1928). 



 
(O Homem com a Câmera, 1929, Dziga Vertov)

 
O homem, a câmera, o olho: uma mitologia cinematográfica que poderia ser mais e mais estendida, sempre evocando a experiência religiosa de sentir-se vigiado por um Deus, ou a experiência de sentir-se investigado por um policial, ou a experiência de ser seguido e fotografado por fãs, jornalistas, paparazzi, curiosos...
 
Os três principais responsáveis por Film foram homens de vidas atribuladas, sujeitas a acidentes levemente absurdos, que parecem justificar retrospectivamente seus temperamentos paranóicos.



(Buster Keaton)
 

Buster Keaton trabalhou em centenas de comédias amalucadas, absurdistas, sempre correndo, caindo, chocando-se com objetos, pulando de edifícios, sendo espancado, atropelado. Diz-se que após sua morte o médico legista perguntou a sua esposa sobre a ocasião em que ele quebrou o pescoço, por volta do ano tal-e-tal. Ela desconhecia o fato – sabia apenas que durante uma filmagem naquele ano ele machucou o pescoço mas no dia seguinte foi trabalhar normalmente, mesmo reclamando. O pescoço curou-se sozinho.
 
Keaton assinou um contrato com o estúdio para cristalizar sua imagem como “o homem que não ria”. Nunca riu num filme. Raramente foi visto sorrindo em público.



(Samuel Beckett) 
 
Samuel Beckett era um misantropo permanentemente recluso, com poucos contatos sociais.  Embora seus amigos mais íntimos desmentissem certos mitos em torno dele, sua vida e sua obra são um longo obituário da comunicação humana. Quando tinha trinta e poucos anos, Beckett foi esfaqueado na rua por um desconhecido; durante o inquérito, perguntou ao atacante por quê fizera aquilo, e ele respondeu: “Não sei, senhor... desculpe”.




(Alan Schneider)
 
O absurdo também visitou o diretor Alan Schneider. Em 1984 ele estava em Londres, dirigindo uma peça, e atravessou uma rua com a intenção de postar uma carta para seu amigo Beckett. Esquecido de que a “mão inglesa” é ao contrário da norte-americana, ele olhou para o lado errado e morreu atropelado por uma moto.
 






segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

5013) Andrés Fava, avatar de Cortázar (18.12.2023)



 
Andrés Fava é um dos personagens do romance O Exame Final (“El Examen”) de Julio Cortázar, um curioso livro que Cortázar escreveu em 1950, pouco antes de deixar a Argentina em definitivo para ir morar em Paris. O romance ficou inédito durante a vida do autor, e só teve publicação póstuma (1986). 
 
Para essa publicação, Cortázar deixou uma nota em que dizia: 
 
(...) Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas. 
 
Julio Cortázar, esse simpático e otimista cronópio, a quem foi poupada a visão da Argentina de hoje.
 
Em paralelo a El Examen, surgiu em 1995 o Diário de Andrés Fava (no Brasil: Ed. José Olympio, 1997). A tradução brasileira é de Mario Pontes.
 
O diário roça apenas muito de leve pelos acontecimentos e personagens do romance, e consiste em reflexões de Andrés Fava sobre literatura, (principalmente), política, a vida em geral. São anotações, fragmentos, aforismos curtos, algumas argumentações mais concatenadas que se estendem por duas ou três páginas. 
 
Fava é claramente um avatar do Horácio Oliveira de O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”, 1963) – um homem jovem, preocupado o tempo inteiro com questões literárias e existenciais. Cortázar parecia não ter Oliveira, seu personagem mais famoso, em alta conta: em suas entrevistas com Omar Prego ele descreve o personagem como “um medíocre, sem nenhum talento especial”
 
Em todo caso, esses personagens são sempre parte de uma turma, um grupo de amigos (homens e mulheres) jovens, muito próximos, com variadas opiniões sobre tudo, desde a política até a estética. É sobre estas turmas que Cortázar escreve em Divertimento (1949, publicado em 1986), Rayuela (1963), 62: Modelo para Armar (1968), O Livro de Manuel (1973) – e em El Examen, onde Andrés Fava tem a função de coadjuvante e anotador.


 
Cortázar é um anotador compulsivo de fragmentos e reflexões curtas. O caráter fragmentário de Rayuela se deve em grande parte a esse método criativo por acreção, por acréscimo gradual de reflexões aleatórias:
 
Porque eu tinha, nas gavetas, em cima das mesas e em outros cantos de Paris, montanhas de papeizinhos e cadernetas onde, principalmente nos cafés, tinha ido anotando coisas, impressões. (...) Em Paris avancei, juntando todos aqueles papeizinhos e movido pelo que havia neles, que jamais tinham sido escritos com a intenção de serem um romance. Repito que escrevi esses papeizinhos em diferentes cafés, em épocas diferentes. Entre um papelzinho e outro podem ter-se passado cinco ou seis anos. 
 
(O Fascínio das Palavras, Julio Cortázar e Omar Prego, trad. Eric Nepomuceno, José Olympio, 1991)
 


É idêntico o modo de composição do diário de Andrés Fava, que em termos de enredo é o antecessor mais imediato de Rayuela. Pode-se simplificar a questão dizendo que enquanto o autor dividiu em dois livros autônomos a primeira narrativa (El Examen e o Diário), em Rayuela ele incrustou o “diário de reflexões” no corpo do próprio romance.
 
O diário de Fava traz reflexões sobre literatura:
 
Balzac – Martínes Estrada me faz lembrar em seu curso – trabalhava de catorze a dezoito horas por dia. Feliz dele, em que a suposta infelicidade do escritor-mártir (blablablá) aguentava semelhantes estirões. Tenho certeza absoluta de que ele se sentia felicíssimo escrevendo assim; que essa era a finalidade de sua vida, e que as saídas de casa representavam para ele algo assim como trocar a água do aquário, preparar os olhos e o coração para ir até onde Rastignac o esperava com impaciência. (p. 84)
 
Ter cuidado com o realismo ao escrever. Evitar a fauna do zoológico, convocar unicórnios e tritões, dando-lhes realidade. (p. 63)
 
A poesia quer ser metafísica, e às vezes consegue sê-lo com Lamartine e Valéry. A poesia inglesa é metafísica sem querer ser, surge no plano metafísico, que é seu céu e sua graça. Onde Mallarmé chega com seu último e extenuante bater de asas, Shelley já está naturalmente plantado como uma copa de árvore. (p. 37)
 
É difícil saber em que medida esses comentários são a visão pessoal do escritor Cortázar ou são a visão que ele atribui a seu personagem Andrés Fava. Em todo caso, é divertido vê-lo citar autores policiais em mistura aos clássicos:
 
Vagus quidam, como Petrarca dizia de um discípulo. Leio Suetônio, Tácito, Ellery Queen... (p. 63)
 
O termo em latim refere-se a um estudante que lê o que lhe cai nas mãos, sem se concentrar num só tema. Nas conversas com Omar Prego, o autor argentino deixa suas preferências muito claras:
 
Já a partir dos 16 ou 17 anos eu era um onívoro capaz de devorar os Ensaios de Montaigne, alternados com As aventuras de Buffalo Bill, Sexton Blake, Edgar Wallace, os romances policiais da época (fui um grande leitor de romances policiais) e os Diálogos de Platão. (O Fascínio das Palavras, p. 37)
 
Andrés Fava também não deixa de comentar obras de ficção científica:
 
Lido, já meio fora de hora, The Time Machine. Oh, pequena Weena, animalzinho humano, única coisa viva nessa história insuportável. Escrever musiquinhas, brincadeiras e cantigas de roda para Weena. Sentir que a levamos nos braços quando, sozinhos, atravessamos titubeando um aposento às escuras. (p. 22)
 
O autobiografismo criativo faz com que Cortázar atribua a Andrés Fava uma idéia que ele próprio iria desenvolver mais tarde no famoso conto “Continuidade dos Parques” (em Final do Jogo, 1964). Diz Andrés:
 
Não pude nunca escrever bem a história que mostraria essa imbricação da literatura e do objetivo, e ao mesmo tempo o voluntário afastamento daquela, que no fundo odeia o realismo. A idéia é a de um homem sentado em um sofá verde junto de um janelão dando para um parque, lendo um romance em que uma mulher encontra furtivamente o amante, que concorda quanto à necessidade de assassinar o marido para ficarem livres, e sobe a escada que a conduzirá ao quarto onde o marido, sentado em um sofá verde, ao lado de um janelão, lê um romance... (p. 107-108)
 

Andrés Fava é um avatar de Cortázar numa Buenos Aires sufocante, submersa pelo enorme vagalhão populista do peronismo. El Examen mostra, ao longo de duas noites e um dia, esse grupo de jovens estudantes, intelectuais, cheios de interesses literários e dúvidas existenciais, na Buenos Aires fantasmagórica, invadida por uma neblina escura que se assemelha a uma nuvem-baixa de antimatéria.
 
A “neblina” é o único elemento fantástico nesse romance de caminhadas urbanas sem destino certo, madrugada adentro. Equivale à proibição de ir à popa do navio em Os Prêmios (1960). A neblina escurece as ruas, os prédios, provoca acidentes de trânsito, obriga à interdição de avenidas. Andrés e seus amigos (Juan, Clara, Stella, o Jornalista, o esquisito e ameaçador Abel) andam por essa Buenos Aires ao mesmo tempo gótica e plebéia.
 
Cortázar exilou-se voluntariamente em Paris por não suportar a Argentina peronista, que ele considerava grosseira, cafona, pedante, apegada irracionalmente a conceitos abstratos de pátria, família, nacionalismo. El Examen narra, num capítulo quase surrealista, um enorme ajuntamento de pessoas que fazem fila numa praça para admirar uma relíquia, um osso – no qual muitos críticos viram uma prefiguração das multidões que dois anos depois formariam fila para ver o cadáver de Evita Perón. 
 
 





sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

5012) A palavra obrigado (15.12.2023)



 
Existe em nós um prazer maligno no ato de interferir na linguagem coletiva e estabelecer, “do nada”, que de agora em diante algumas coisas são proibidas e outras são obrigatórias.
 
Quando quem faz isto é o vizinho do lado, que se limita a bradar seus impropérios, tudo bem; o pior é quando quem faz isso é uma massa amorfa de gente ansiosa para aderir a uma moda qualquer e sentir-se significativa.
 
Na minha infância, certas palavras eram consideradas de mau gosto. Eram termos plebeus, grosseiros, que gente direita não usava. Algumas tias minhas, quando em reuniões um pouco mais formais, com pessoas de fora da família, nunca diziam: “Fulana está grávida”. Diziam: “Fulana está esperando”.  Ou, melhor ainda: “Fulana está em estado interessante”. Minha curiosidade sheldoniana era: Grávida é palavrão? Não, elas me asseguravam. É que é mais educado dizer assim.
 
Me vinha à mente o exemplo (se não me engano) do Conselheiro Acácio, de Eça de Queiroz, que não dizia “vomitar”, e sim “restituir”, e fazia um gesto ilustrativo.
 
Há sempre um eufemismo que serve para mostrar o quanto somos refinados, bem-falantes, o quanto sabemos o que é delicadeza e não precisamos olhar no dicionário o significado de circunlóquio nem o de cerca-lourenço.
 
Um eufemismo muito em voga atualmente é “gratidão” no lugar de “muito obrigado”. Vários amigos e amigas com quem converso preferem essa forma. E me explicam. “Muito obrigado” passa uma idéia de que você se sente coagido, preso, se sente forçado a agradecer, está sendo obrigado a agradecer mas por sua vontade não agradeceria. Ao passo que “gratidão”, este mero substantivo, tem a clareza e a pureza de exprimir, sem subterfúgios, o que você está sentindo diante do gesto alheio.
 
É sempre divertido xeretar as origens dos termos, e me veio à idéia buscar as origens de “obrigado”, até porque me interessava saber se havia alguma relação etimológica com o verbo “brigar”. Quantas vezes dizemos “’Brigado!...”, “ ‘Brigadão!...” (Spoiler: não tem.)



 
Fui olhar no útil etymonline.com a palavra “obligation”, e eis que ela advém do latim “ob-ligationem”, que envolve a idéia de “ligar”, unir, prender através de um laço (concreto, ou simbólico); a idéia de vínculo através de um compromisso, de uma promessa, de uma dívida, de um pacto, e assim por diante.
 
Daí vem a interpretação corrente, de que você me fez um favor ou uma gentileza, e por isto estou ligado a você por esse vínculo de gratidão; é algo que nos une simbolicamente.
 
A crítica que se faz a “obrigado” talvez se origine de um certo desconforto quanto à nuance de “estou te devendo um favor” “estou ligado a você por uma dívida que serei coagido a pagar mais cedo ou mais tarde”.
 
Essa dívida é real? Para muita gente, sim. O favor é uma moeda perigosa, sujeita ao câmbio flutuante das relações de poder. Às vezes o sujeito me dá uma carona numa noite de chuva e meses depois pede meu carro emprestado para ir a um show de rock.
 
A questão de “pagar de volta um favor” transforma a arte de ajudar alguém uma espécie de agiotagem da bondade. Como dizia um sábio, “cuidado com quem lhe dá alguma coisa que você não pediu, porque cedo ou tarde vai lhe pedir alguma coisa que você não pretendia dar”.



(Theodore Sturgeon e Robert Heinlein)


O gesto de pagar de volta um favor qualquer é sempre um gesto positivo. Mas igualmente positivo é o gesto de pagar para diante, “to pay forward”, como dizem os norte-americanos. Dizem que Theodore Sturgeon, o grande escritor de More Than Human, estava uma vez numa pindaíba que dava dó. O igualmente grande Robert Heinlein, que estava com um ou dois livros na lista de best-sellers, ficou sabendo e mandou-lhe pelo correio um cheque que lhe zerava as dívidas. Sturgeon agradeceu e disse que pagaria de volta, quando pudesse. Heinlein disse: “Não precisa me pagar. Quando vir alguém que precisa, e puder ajudar, ajude. Pague para diante.”
 
Eu não me sinto manietado nem jungido quando mando meu muito-obrigado a alguém. A carga de significado desse agradecimento está mais na posição que ele ocupa no encadeamento do diálogo do que no sumo semântico de seus termos. Esqueçam os termos em si. Como diz um amigo meu, quando a gente chama um sujeito qualquer de filho-da-puta não está tentando ofender a mãe dele, uma santa senhora que não merece o filho canalha que tem.
 
Na minha cabeça, a palavra “obrigatoriedade” evoca idéias de autoritarismo, perda do livre arbítrio, cerceamento da liberdade. Curiosamente,  a expressão “muito obrigado” não carrega (falo de minha leitura pessoal) nenhuma dessas conotações. Por alguma tresleitura feita na infância, algum entendimento enviesado do que os adultos estavam dizendo, sempre traduzi “muito obrigado” por “muito agradecido”, e essa fórmula para mim encerrava a questão. Você me faz um favor. Eu reconheço, registro, agradeço, e boa tarde.
 
Eu nada tenho contra quem usa “gratidão”, e na verdade nem percebo mais. Digo “obrigado!” há décadas e espero continuar a fazê-lo por muitas décadas mais. Embora atualmente me veja dando preferência ao popular “Valeu!...”. Ele me parece uma versão mais informal desse termo, uma versão mais calça-jeans-e-camiseta. “Obrigado” ainda é um pouco camisa-social-de-mangas-compridas.



 



terça-feira, 12 de dezembro de 2023

5011) Um Louvre dentro de um Titanic (12.12.2023)




As leituras da obra de Jules Verne são hoje em dia, tanto tempo após sua morte (Verne morreu quando Machado de Assis ainda estava vivo), as mais variadas possíveis. Curiosamente, na França multiplicam-se as leituras místicas, ocultistas e esotéricas de seus livros, apelando para simbologia alquímica, magia ritual, sociedades secretas... A obra de Verne, vista por esse ângulo, renderia um novo Pêndulo de Foucault a Umberto Eco. 
 
Verne escreveu metodicamente, abundantemente, produzindo livros de aventuras empapados de ciência, com a regularidade de um mecanismo de relojoaria. Dois romances por ano. A leitura de seus livros em sequência nos revela a sua curiosidade sobre o conhecimento científico, o seu otimismo tecnológico, o seu senso de aventura “aconchegante e confortável”... 
 
Uma leitura específica que sempre me esclareceu foi a que Roland Barthes faz em Mitologias (1957) sobre o Capitão Nemo e suas aventuras (“Nautilus e Bateau Ivre”).




Barthes vê com olho esperto o Capitão Nemo e seus ideais de herói romântico; tendo rompido com a humanidade, ele na verdade nem quer destruir nem consertar o mundo, apenas afastar-se dele. 
 
A descrição de Barthes é toda cheia de simpatia irônica: 
 
A imaginação da viagem corresponde em Verne a uma exploração da clausura, e o bom entendimento que existe entre Verne e a infância não provém de uma mística banal da aventura, mas, pelo contrário, de um gosto comum pelo finito, que se pode encontrar na paixão infantil pelas cabanas e tendas: enclausurar-se e instalar-se, este é o sonho existencial da infância e de Verne. O arquétipo deste sonho é esse romance quase perfeito, A Ilha Misteriosa, no qual o homem-criança reinventa o mundo, povoa-o, fecha-o e nele se encerra, coroando este esforço enciclopédico com a postura burguesa da apropriação: pantufas, cachimbo e lareira, enquanto lá fora a tempestade, isto é, o infinito, uiva inutilmente
 
(Mitologias, Difusão Européia do Livro, trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer, p. 118)
 
Barthes estabelece um contraste interessante entre este herói romântico introvertido e os heróis românticos extrovertidos de tantos romances europeus de aventura, exploração e conquista. 
 
Jules Verne escrevia para jovens, e mantinha em seus enredos a pulsação excitante de toda aventura de peripécias. Outros autores, contudo, na época dele e depois dele, usavam essas aventuras em lugares exóticos para criar parábolas onde não enxergamos propriamente o entusiasmo colonialista de ocupar novos territórios, mas a narração de uma aventura geográfica com ressonância mais profundas – ressonâncias simbólicas onde as terras e as ilhas desconhecidas são as partes inexploradas da alma humana. 



Como René Daumal e seu famoso Mount Analogue (que tem como subtítulo “Romance de aventuras alpinistas, não-euclidianas, e simbolicamente autênticas”), em que um grupo de exploradores é arregimentado por um cientista com a finalidade de descobrir uma ilha misteriosa no Pacífico Sul, tornada invisível por uma anomalia gravitacional. 
 
Ou as excursões insólitas dos romances de Georges Perec (W, ou a Memória da Infância; A Vida, Modo de Usar) e Harry Matthews (Conversions), em busca de objetivos ligeiramente absurdos, demandas sem  utilidade aparente, em que o explorador sente-se como que obedecendo a uma força superior.
 
É um gesto aventureiro diferente do gesto de Verne com seu Capitão Nemo:
 
Verne não procurava de modo algum distender o mundo conforme as vias românticas da evasão ou de planos místicos de infinito: procurava incessantemente retraí-lo, reduzindo-o a um espaço conhecido e fechado, que o homem poderia em seguida habitar confortavelmente. (p. 119)
 
O que torna fascinante a obra do criador de Phileas Fogg é justamente a possibilidade de ver nela este duplo impulso. 
 
Por um lado, um impulso para fora, de aventura, descoberta e conquista, característico da literatura do século 19, de um colonialismo triunfante decidido a ocupar e mapear os menores recantos do mundo. E ao mesmo tempo a recusa a uma expansão infinita; o comodismo de dizer “pronto, game over,já conquistamos o mundo, agora vamos ignorar o resto”. 
 
Culturas como a Europa e os Estados Unidos de hoje se parecem com o “Nautilus” de Nemo, um imenso repositório de riquezas culturais arrecadadas por todos os cantos do mundo e remetidas para a capital do império. Um imenso Louvre ou Museu Britânico obtido através das conquistas militares, econômicas e políticas. 
 
E ao mesmo tempo um Louvre que está sendo remetido para dentro de um Titanic, de um receptáculo que mesmo gigantesco parece destinado ao naufrágio, fadado a suicidar-se pelo seu próprio peso. 
 
O gesto profundo de Júlio Verne é portanto, incontestavelmente, o da apropriação. A viagem do barco, tão importante na mitologia de Verne, não contradiz este gesto, muito pelo contrário: o barco pode ser o símbolo da partida; mais profundamente, é o sinal da clausura. O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. 
(p. 121)