sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

1399) A arte das sombras (7.9.2007)


(Fred Eerdekens, "Minimum")

Ando pensando seriamente em encerrar esta coluna aqui no jornal e abrir um blog na Internet. Não é por nada não, é porque aqui no jornal não existe como inserir ilustrações. Fico eu pregando no deserto, comentando quadros ou desenhos que não dá para anexar, discutindo músicas sem poder fornecer um MP3 para download, e assim por diante.

Tô brincando; não vou parar com a coluna, mas há coisas que dependem de uma ilustração concreta, senão parece que eu estou inventando. (Já percebi que alguns leitores acreditam mais na minha imaginação do que na minha honestidade.) Um bom exemplo disto é um saite que descobri via BoingBoing: “Shadow Sculptures”. Basicamente é o seguinte: você pega objetos aleatórios e forma com eles um amontoado que, iluminado lateralmente, produz na parede uma sombra exata de algo que não está ali. Aqui (http://www.instructables.com/id/ERTLALRF46WOFDE/?ALLSTEPS) ele mostra o passo-a-passo da construção da sombra de um gato, sentado, com a cabeça virada para o lado. Em princípio, parece simples: você prega um papelão na parede, esboça a silhueta da sombra, fixa uma lâmpada acesa a certa distância (anotando tudo, para o caso de alguém da família mexer na lâmpada enquanto você foi comprar SuperBonder na esquina), e vai amontoando e colando objetos aleatórios que forneçam a forma desejada.

No mesmo saite tomei conhecimento da obra de Fred Eerdekens, um artista que pega essa mesma técnica e vai um passo adiante. Nas obras dele (algumas das quais podem ser vistas aqui: http://architectradure.blogspot.com/2006/11/shadows-of-objects.html) é utilizado o mesmo princípio: objetos aleatórios produzindo sombras significativas, como uma obra em que uma enorme mola espiral, levemente deformada, pendurada do teto em posição horizontal, projeta na parede a palavra “minimum”. Erdekens tanto usa a sombra direta do objeto quanto o contrário: uma sombra maciça com ranhuras por onde a luz passa, formando palavras.

Como em tudo na vida, podemos tirar disto uma lição metafísica (de um significado que vai além das coisas materiais) e cibernética (do modo como causa e efeito se influenciam mutuamente). Pensem num filme, por exemplo. Quando a gente vê um filme projetado numa tela, é uma beleza, parece uma coisa que já nasceu pronta. Um daqueles casos filosóficos em que a mera existência leva a supor uma necessidade, ou seja, algo que é tão “assim” que não poderia ser de outro modo senão assim. Ledo engano, meu amigo. O que você está vendo na tela é o produto de um aglomerado caótico de orçamentos, contratações, ensaios, cronogramas, testes, bate-bocas de executivos, deslocamentos da equipe, filmagens e refilmagens, madrugadas inteiras tentando colar pedaços que não combinam, milhões de pequenos pepinos de som e de luz sendo resolvidos a toque-de-caixa... Um evereste caótico mas que resulta naquela silhueta rabiscada no papelão, e que se intitula “Cidadão Kane” ou “Deus e o Diabo na terra do Sol”.

1398) Castro Lopes (6.9.2007)



Uma das figuras mais curiosas na história do nosso vernáculo foi o Dr. Castro Lopes (1827-1901), um filólogo que era meio invocado com a quantidade de palavras estrangeiras adotadas em nossa linguagem corrente. O doutor morreu em 1901, quando o grande referencial para quem queria ser “chic” no Brasil era o francês; hoje, o referencial para quem quer ser “cool” é o inglês. Se vivesse hoje, o doutor cairia fulminado por um enfarte antes de uma semana, ao ver como nosso idioma está absorvendo, sem digerir, um imenso vocabulário vindo de fora.

O problema com o Dr. Castro Lopes é que suas soluções para os problemas eram piores do que os problemas em si. Diante das palavras importadas de países contemporâneos como Inglaterra ou França, o doutor sugeria criar palavras novas importando radicais linguísticos da Grécia e de Roma. O que me lembra a famosa frase de Jorge Luís Borges, de que todo mundo aceita influências dos clássicos mas ninguém gosta de dever nada aos contemporâneos. (Tem razão: os contemporâneos cobram.) Vai daí que o doutor não gostava da palavra “abajur” (do francês “abat-jour”), e sugeria “lucivelo” (de “luci”, luz, e o verbo “velar”). Convenhamos que de todas essas palavras nenhuma é mais simples e intuitiva do que o popular “quebra-luz”. Hoje, ao que parece, todas dançaram, sendo substituídas por “luminária”.

Algumas tentativas do doutor não foram tão mal assim. Por exemplo, consta que ele propôs “cardápio” no lugar do francês “menu”. Não tenho como quantificar essas coisas, mas eu diria que a disputa entre os dois termos está hoje pau-a-pau, mais de um século depois. Embora “menu” (com pronúncia abrasileirada e tudo, “menú”) tenha migrado inclusive para o campo de Informática (“o menu do Windows”), pode-se dizer que “cardápio” é um termo de uso corrente, que todo mundo entende, e que dispensa análises estruturais para decifrar seu significado.

Mas o doutor propôs “ludopédio” em vez de futebol, “convescote” no lugar de piquenique, “cinesíforo” ao invés de chofer. Nenhuma pegou. Qualquer aparecimento delas num texto atual é apenas como citação, como neste artigo, mas ninguém diz “Chame o cinesíforo e vamos embora”. Outras criações do doutor são de uma implausibilidade que impressiona. Ele não gostava do galicismo “galocha”, e propôs substituí-lo por “anidropodoteca”. Como diria Bussunda: “Fala sério!”

Muita coisa que vemos na política internacional de hoje é resultado de quando a mentalidade Castro Lopes assume plenos poderes. O Iraque é uma ficção política, três retalhos de mapa costurados entre si, batizados com um nome e entregues à própria sorte. A Palestina e Israel, idem idem. A região da Cachemira, entre Índia e Paquistão, também. As superpotências inventam países como um filólogo inventa palavras, e os usuários de ambos que se virem. São soluções de gabinete, possíveis de defender numa tribuna, mas que não se encaixam na vida real. E mais cedo ou mais tarde a vida cobra.

1397) Adeus às armas (5.9.2007)



Tenho aqui nas minhas anotações duas notícias que li no “Globo” do dia 7 de agosto passado. Na página 30, na seção Internacional, lê-se: “110 mil fuzis AK-47 e 80 mil pistolas foram perdidos pelos americanos no Iraque nos anos de 2004 e 2005. O Pentágono reconheceu que não sabe o que aconteceu com 30% de todas as armas que os EUA distribuíram para forças iraquianas de 2004 até o começo deste ano”. Notem que estamos nos referindo ao Departamento de Defesa do país mais rico e teoricamente mais bem aparelhado do mundo.

Isto deve nos consolar um pouco do que sentimos ao ler na coluna de Luiz Garcia, à página 7 do mesmo exemplar: “Em 15 anos 1.539 armas da PM do Rio acabaram nas mãos de bandidos. Outras 928, quase todas pistolas Taurus, de fabricação nacional, foram vendidas individualmente a policiais, e também acabaram indo dormir na casa do inimigo”.

É auto-sugestão minha, ou existe uma simetria perversa entre estes dois fatos, além de um cruel simbolismo cósmico-freudiano? Os americanos não conseguem fazer com que os iraquianos se matem uns aos outros em benefício dos EUA. Eles se matam pelas rivalidades étnicas e religiosas que alimentam há séculos; mas a verdade é que vai ser muito difícil fazer com que matem quem os americanos determinam.

A mesma coisa é a guerra dos morros cariocas. Por um lado, alguns PMs não vêem motivo para matar sujeitos que são da mesma cor e da mesma origem social que eles para proteger os interesses dos “bacanas” que vivem nas coberturas de luxo. Por outro lado, veja-se a quantidade de armas surrupiadas dos quartéis para o tráfico, e a quantidade de espiões que o tráfico manda se alistar na PM ou no Exército para facilitar o acesso a armas, munições, informações, know-how. É uma guerra difícil, porque grande parte da força de repressão é recrutada exatamente nas mesmas favelas, nos mesmos bairros populares, nos mesmos conjuntos habitacionais onde fervilha o crime. Existem amizades, existe convivência, existem cumplicidades formais ou informais, e cedo ou tarde o sujeito fardado “se faz de doido” e beneficia outro sujeito que teoricamente é seu inimigo, mas que na prática é seu vizinho de bairro ou conhecido de botequim.

Certas guerras já estão perdidas antes mesmo de ser disparado o primeiro tiro, antes mesmo do primeiro soldado levantar do beliche e enfiar o uniforme. Estão perdidas; não porque o inimigo seja em número superior ou tenha armamento de melhor qualidade, não porque o Acaso ou o Destino tenham determinado algo de antemão. Estão perdidas porque são guerras que nunca deveriam ter começado. São situações em que, diante de um problema, alguém recorre à guerra sem perceber que ela será apenas a radicalização irremediável do problema. Como dizia Jorge de Lima, “há as naus que não chegam, mesmo sem ter naufragado; não porque nunca tivessem quem as guiasse no mar (...) mas simplesmente porque já estavam podres no tronco da árvore de que as tiraram”.

1396) A pedra no meio do caminho (4.9.2007)



Encontrei por vinte reais num sebo do Largo da Carioca o livro Uma pedra no meio do caminho – biografia de um poema de Carlos Drummond de Andrade (Editora do Autor, 1967), que algum tempo atrás estava à oferta na Estante Virtual por R$ 250,00. O livro consiste numa compilação minuciosa (e eu diria quase neurótica) de referências, em órgãos da imprensa e em livros, ao famoso poema de Drummond. A impressão que dá é que o poeta fez o livro graças a uma assinatura do Lux Jornal. uma famosa empresa que nos tempos pré-Internet recortava a nosso pedido (e pagamento), de todos os jornais, qualquer menção a um nome ou um assunto do nosso interesse.

São pouco mais de 400 itens reunidos pelo poeta, incluindo traduções, paródias, respostas, paráfrases; menções ao poeta e ao poema em crônicas, notícias, comentários políticos, resenhas, etc. O livro tem uma apresentação de Arnaldo Saraiva, analisando o poema e seu impacto. As respostas variam, desde as explicações filosóficas até a galhofa gratuita, desde a análise métrica até vituperações indignadas contra o Modernismo. Há trechos (contra ou a favor) de Vinicius de Morais, Sérgio Porto, Gilberto Freyre, Virginius da Gama e Melo, Lygia Fagundes Telles, José Lins do Rego... Dois sintomas se repetem insistentemente. O primeiro é a irritação dos articulistas diante da banalidade do tema. Eles se aborrecem com o fato do poeta estar prestando atenção a uma pedra, quando existem coisas muito mais importantes, mais dignas da inspiração poética. E outra é a briga dos críticos contra o uso da forma verbal “tinha” em vez de “havia”. Dizer em 1930 “tinha uma pedra no meio do caminho” era algo plebeu e agressivo para os ouvidos cultos dos praticantes e leitores da poesia.

Folheando este livro, entendi por que num poema Drummond diz ser, entre os poetas, “não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa”. O que se galhofou do poeta mineiro nessa época não está no gibi. O crítico Gondin da Fonseca é o que aparece mais vezes, fazendo todo tipo de provocação, deboche, imitação, demonstrando claramente o quanto a pedra o incomodou.

O livro tem seções temáticas: “Reação pelo ridículo”, “Não sai da cabeça”, “Os amigos da pedra”, “E os inimigos”, “Emoções de viagem”, “Troca de autoria”, “A pedra na administração pública / na advocacia / na economia / no esporte / na escola...”, etc. Na última seção, “O poema visto pelo autor”, vêm citações de artigos ou entrevistas do próprio Drummond, meio encabulado por ter causado tanta celeuma e dizendo que o poema nem é tão ruim nem tão bom quanto se diz. Ele também inclui o poema em prosa “O enigma”, de 1947, que aqui nesta coluna (“O obscuro enigma de Drummond”, 12.12.2004) já interpretei como uma resposta ao outro. O poema mostra o ser humano visto pela pedra-no-caminho, numa inversão de ponto de vista que me parece óbvia mas que nunca vi ninguém mencionar.