sexta-feira, 21 de junho de 2024

5074) A foto do instante irrepetível (21.6.2024)



(foto: Stanley Forman, 1975, Prêmio Pulitzer)

 
Um dos subgêneros mais interessantes da Fotografia é a famosa foto do “Instante Irrepetível”. A foto de algo que estava acontecendo diante do fotógrafo, ele clicou, e aquele brevíssimo segundo ficou capturado para sempre. 
 
São aquelas fotos que a gente olha e pensa: “Caramba... um segundo antes, ou um segundo depois, e seria impossível ter feito esta foto.” 
 
Dizemos também: “Puxa vida, que sorte haver um fotógrafo por perto, para captar um momento fugaz como esse!...” 
 
É o que acontece com a foto no início deste texto, em que Stanley Forman captou a queda de uma adolescente (que morreu) e um garoto (que sobreviveu), quando uma escada de incêndio se partiu ou se desprendeu de seus suportes, a julgar pela imagem.  Um segundo a mais, e não haveria foto. 



(foto: Robert H. Jackson, 1962, Prêmio Pulitzer)
 
 
Outro bom exemplo é a foto acima, de Robert H. Jackson. Ela também ganhou o Prêmio Pulitzer de melhor foto do ano, e registra o instante em que Jack Ruby matou a tiros Lee Oswald, o presumido assassino de John Kennedy. Não é uma foto “artística”, mas é o equivalente fotográfico a um furo de reportagem. 
 
Fotos desse tipo são feitas por profissionais que estão o tempo todo com a câmera pronta e engatilhada. Sua tarefa é estar atento, perceber a situação que se arma à sua frente, erguer a câmera, apertar o botão no momento certo. 
 
Comigo não vai acontecer nunca. Mesmo que eu veja a dez metros de altura um disco-voador com a bandeira do Treze, vou ter que parar na calçada, enfiar a mão no bolso da calça, tirar o celular, ligar, premir a impressão digital, tocar no ícone da câmera, erguer o aparelho... e a esta altura o Ovni já sumiu, ou ergueu uma bandeira do Campinense. Perdi a foto. 






(fotos: Josef Koudelka) 

 
Estas duas fotos do mestre Josef Koudelka mostram instantes assim. O menino praticamente deitado em cima do burro e os homens soltando foguetões são provavelmente cenas com que ele se deparou, fez uma porção de cliques e escolheu divulgar o que lhe pareceu mais bacana. Acredito que sejam fotos espontâneas, sem interferência dele. Talvez as pessoas nem percebessem que estavam sendo fotografadas. 
 
É diferente de uma “foto provocada”, como esta abaixo, do mesmo Koudelka, em que percebemos com clareza a interação provocativa, até brincalhona, entre o fotógrafo e os fotografados: 



(foto: Josef Koudelka) 


A foto “do instante” nem precisa ser uma grande foto, do ponto de vista da luminosidade, enquadramento e outros recursos. Às vezes é meio borrada, ou meio inclinada, mas não importa – é o registro do momento!  Um instante que nunca vai se repetir, e que alguém registrou. 
 
Será que é? Porque depois que a gente se acostuma com os truques e as espertezas dos fotógrafos, a gente começa a desconfiar. OK, essa pessoa estava ali, fez esse gesto... Mas será que não foi tudo combinado? Será que o fotógrafo não concebeu essa cena na cabeça, e depois conseguiu pessoas dispostas a “posar” com essa aparência de casualidade? 
 
Não é preciso que o modelo da foto seja alguém contratado pelo artista. Pode ser gente da rua, pessoas que não o conhecem, ou que nem sabem estar sendo fotografadas. É o caso das fotos abaixo, de Henri Cartier-Bresson, um craque nessa captação dos momentos bonitos do cotidiano. O fotógrafo vê uma poça dágua lisa como um espelho. O que faz ele? Fica discretamente de emboscada, esperando o pulo inevitável dos transeuntes. 






(fotos: Henri Cartier-Bresson) 


O fotógrafo fica à espera de que a foto aconteça, porque há um elemento (a poça dágua) que vai deflagrar a foto. Nas fotos abaixo, de Robert Doisneau (o autor da famosa foto do rapaz beijando a moça, em Paris, nas comemorações do fim da guerra), ele deixou a pintura da mulher nua, exposta na vitrine, como isca. E registrou as reações. 
 
Numa foto temos uma mulher indignada com “aquela pouca vergonha”; na outra temos uma mulher muito séria, mostrando outra pintura, enquanto o homem olha à socapa o quadro da mulher pelada. 





(fotos: Robert Doisneau) 


Essas lembranças me vieram à mente por conta de uma moda recente nas redes sociais. Fotógrafos registram quadros nas paredes do museus ou de galerias de arte, e na frente do quadro a presença de uma pessoa vestida nas mesmas cores, ou no mesmo estilo, ou reproduzindo, de alguma maneira, as formas do quadro que contempla. 
 
Tem vários exemplos; peguei alguns de autoria de Stefan Draschan: 








(fotos: Stefan Draschan) 


Isto é casual? É combinado? Pode ser qualquer uma das duas coisas. 
 
Para ser casual, seria preciso que o fotógrafo se postasse à frente de um quadro cujos elementos (cores, grafismo, etc.) pudessem aparecer nas roupas de alguém; ou ver a roupa de uma pessoa e segui-la museu afora, esperando por um quadro que “desse match”. 
 
Acho mais possível que sejam fotos construídas. Se fosse comigo, eu fotografaria algumas dezenas de quadros, expostos em lugares de fácil acesso, e mostraria aos meus amigos e amigas, sugerindo que arranjassem alguma roupa “rimando” com o quadro. 



(foto: Henri Cartier-Bresson) 

 
Isso é fake news, é charlatanismo, é má fé?  De jeito nenhum. É uma foto construída. Ela é feita para dar a impressão de foto casual, mas é um acaso fingido. O que conta ali não é a pretensão de ter flagrado um momento raríssimo, mas a revelação de uma simetria inesperada. 
 
Gostamos disso porque gostamos de tudo que rima, tudo que repete um efeito, tudo que cria uma semelhança entre duas coisas não-relacionadas. Não importa se foi aleatório ou se foi planejado, desde que o efeito pareça ser espontâneo. 
 
A pintura já fingia descobrir acasos. Veja-se este quadro de Norman Rockwell, “The Voyeur”. É uma cena imaginada e pintada com tinta a óleo, provavelmente durante dias inteiros, ou semanas. E no entanto seu charme principal é a aparência de espontaneidade, de descontração, de ser aquilo um momento fugaz da vida real que um artista registrou, não importa como. 



(Norman Rockwell, "The Voyeur") 

 
Algumas fotos parecem tão bem sincronizadas que fazem a gente erguer a sobrancelha, com desconfiança. Esta foto de Tomás de Micheli, em que Lionel Messi aparece com uma auréola angelical formada pela marca do pênalti, é certinha demais, conveniente demais. Já vi gente discutindo que foi posada pelo jogador, outros dizendo que a “auréola” foi feita digitalmente. 



(foto: Tomás de Micheli)

 
E daí? Não sei o que De Micheli argumenta em favor de sua foto, mas para mim o que vale aí não é o lado instantâneo, e sim o lado alegórico. Uma foto imaginada, planejada, executada para criar uma idéia; ela “parece” usar uma coincidência de posição, mas não é isto o seu valor principal. 
 
Um caso completamente diferente é o da foto abaixo, em que a camisa do rapaz e o forro do banco do ônibus são idênticos. Foto “armada”? Pode ser. Foto casual? Pode ser. Mas no caso de ser armada a foto não tem nenhum sentido simbólico ou alegórico como tinha a foto de Messi. É uma foto mais banal do que as fotos dos museus de Stefan Draschan. Uma foto cujo único foco de interesse é a igualdade entre os dois tecidos, e isso só teria graça verdadeira se fosse produto do Acaso.