segunda-feira, 30 de setembro de 2019

4508) Eu me lembro - 16 (30.9.2019)




1
Eu me lembro do tempo (por volta de 1960) em que a gente morou na Vila dos Motoristas, atrás do Estádio Presidente Vargas. Quando o Treze jogava à noite, a luz dos refletores clareava a rua inteira e a gente aproveitava para jogar uma pelada noturna. Meu pai me levava para o jogo e a gente ficava nas cadeiras cativas, onde ele tinha duas (acho que eram números 58 e 59). Por trás das cadeiras havia uma parede com cobogós onde eu escondia pedaços de papel amassado dos pacotes de amendoim, e os reencontrava miraculosamente no jogo seguinte. Uma vez o Treze fez um gol e ao erguer os braços eu bati com o cotovelo nos óculos de um rapaz meio calvo que estava na cadeira vizinha, derrubando-os e quebrando. Seu Nilo pediu desculpas e se ofereceu para pagar, o rapaz disse que não era nada. Anos depois, por volta de 1978, meu pai foi chefe de gabinete do reitor da Universidade Regional do Nordeste, José Cavalcanti de Figueiredo – o rapaz dos óculos.



2
Eu me lembro da Livraria Universal, que ficava no térreo do Edifício Palomo, na Maciel Pinheiro: era a loja da direita, de frente para a calçada. Era uma mistura de papelaria com livraria, meio estreita e apertada, mas a estante de livros era excelente, tinha todas as novidades da Civilização Brasileira e da Zahar. Quando eu estudava à noite no Estadual da Prata, um funcionário da livraria, Clímaco, era meu colega de turma. Ficamos amigos e quando eu chegava na livraria ele já me fazia um sinal: “Chegou livro de cinema!” – e me levava direto para os pacotes recém-chegados da Biblioteca Básica de Cinema, da Civilização; eu tinha todos.



3
Eu me lembro que, estranhamente, havia algumas ruas de Campina Grande, ruas até bastante centrais, por onde eu nunca andava, e que continuaram desconhecidas para mim até a idade adulta. Lembro do Palácio do Bispo, aquele belo casarão onde funcionaram (ou ainda funcionam) secretarias da Prefeitura. Eu ouvia falar nele desde pequeno mas nunca soube onde era, e quando o vi pela primeira vez, já com mais de 25 anos, tive um susto em descobrir que um “palacete” como aquele existia na cidade. Foi o que vim a chamar depois de “momento philipkdickiano”, uma súbita irrupção de algo impossível no meio de um espaço aparentemente conhecido.



4
Eu me lembro de quando eu tinha uns 8 ou 10 anos e meu pai me levou para assistir uma noite de luta-livre no palco da Rádio Borborema, transformado em ringue. A programação tinha 3 ou 4 lutas preliminares e uma luta principal. Numa das preliminares tinha um lutador chamado Ferrinho, e quando ele foi derrotado a platéia gritava em coro: “Ferrinho enferrujou! Ferrinho enferrujou!”. A luta principal era entre Máscara Negra e Touro Novo. Este último era um lutador moreno, troncudo, que entrou no “ringue” com um roupão vermelho e ficou se exercitando; ficou de costas para a platéia e atrás do roupão estava escrito: TOURO NOVO – CAMPEÃO BAIANO. Alguns segundos depois um gaiato gritou lá de trás: “Pode virar, a gente já leu”. Máscara Negra era um cara branco, meio magro, de calção preto e a necessária máscara no rosto. Claro que torci por ele. Touro Novo o pegou pra limão e ganhou a luta sem muita dificuldade. Eu voltei para casa perplexo, porque me parecia impossível que um cara chamado Máscara Negra pudesse ser derrotado por um simples mortal.


5
Eu me lembro que uma noite a gente estava bebendo no galeto de Benedito, que ficava na rua João Pessoa, naquele trecho depois da Siqueira Campos, quando a rua começa a se elevar rumo à subida do Monte Santo. A gente levava violão e ficava cantando forrós e sambas, mas contava os dinheiros antes, pra saber até onde podia ir a conta, e se a noite ia ser somente de cerveja ou se a certa altura dava para se distribuir entre todos um galeto com farofa amarela, arroz e vinagrete. Nessa noite a gente já estava há mais de uma hora cantando e quando se fez uma pausa aproximou-se Benedito, o dono, trazendo duas garrafas de cerveja em cada mão, já abertas, e colocou em cima da mesa. A gente protestou, dizendo que não tinha pedido, e ele indicou com o polegar: “Foi o doutor ali quem mandou servir.” A gente olhou e viu no fundo do salão o poeta-tribuno Raymundo Asfora, ladeado por duas beldades da noite, erguendo o polegar em sinal de positivo e dizendo: “É só pra não pararem de cantar”. A noite foi longe.


6
Eu me lembro de uma vez em que meu pai e minha mãe, com alguns amigos, foram a uma festa à noite no Gresse, o clube dos oficiais militares (“Grêmio dos Subtenentes e Sargentos do Exército”) , que na época era um dos mais animados; na adolescência inteira brinquei muito carnaval ali. Nessa noite eles foram em dois carros, e quando acabou a festa, de madrugada, voltaram para continuar bebendo lá em casa. Acontece que um dos motoristas estava completamente de pileque. Meus pais não dirigiam (uma prudência que eu herdei), bem como as outras pessoas. Um motorista, dois carros. E Louro, um amigo deles que estava ao volante, trouxe os dois carros alternadamente, do Gresse até nossa casa no Alto Branco. Dirigia uns 30 metros, puxava o freio de mão, voltava correndo, pegava o outro carro, passava uns 20 ou 30 metros do primeiro, parava, voltava correndo.... E assim chegaram, sãos e salvos.



(a sede do Gresse)


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

4507) O Palco e o Telão (27.9.2019)




(James Taylor, Rock in Rio, 1985)


Eu conto alguns fatos da minha biografia sabendo que muita gente não vai acreditar, mas isso até me libera para contar sem preocupação.

Um desses episódios aconteceu no “Rock In Rio 1985”, quando eu praticamente entrei no palco durante o show de James Taylor.

Esse show, pelo que me lembro, foi na mesma noite dos shows de George Benson, Al Jarreau e Elba Ramalho. Os artistas tinham direito a levar para os amplos camarins um certo número de convidados, e Elba me chamou, como minha amiga e “madrinha” – um ano antes, ela havia gravado meu “Nordeste Independente” em parceria com Ivanildo Vila Nova.

Ficamos lá, tomando Malt 90 (era a cerveja patrocinadora, oferecida no camarins), e vendo os shows pela TV.

A certa altura da noite eu fui ao banheiro. Os bastidores de grandes shows desse tipo são um vasto labirinto de paredes de compensado e fórmica, sobre chãos ressoantes de madeira com pisos emborrachados. Todos os corredores são iguais, principalmente depois da décima lata de cerveja. O cara vai andando, perguntando, e dobrando. Duas à esquerda, desce uma escada, uma à direita, sobe outra... Um dia chega.

Na volta do banheiro comecei a procurar o caminho do camarim, com a cabeça zunindo e o som estrondando em 360 graus. Errei o caminho a certa altura, subi umas escadas mais longas do que as que tinha descido. De vez em quando algum segurança de terno preto estendia a mão numa tentativa de perguntar onde eu pensava que ia. Mas eu estava de crachá, tenho cara de gringo, e caminhava sorridente e altivo, com uma autoconfiança que somente o álcool e seus complementos podem proporcionar.

Eu tinha certeza absoluta de que estava retornando ao camarim cheio de amigos, e estava ali como convidado, e como artista, visto que alguma música minha iria ser tocada mais tarde... Por que hesitar? Ultrapassei sorridente a última barreira de seguranças, que se abriu à minha passagem como se eu fosse quem pensava que era.

Subi uma última escada de metal... e me vi na lateral do palco, que se abria ofuscante e tonitruante à minha direita. Eu estava a 3 metros de um baixista com uma barba maior do que a de Marco di Aurélio, e a uns dez metros do meu ídolo, o poeta de “Fire and Rain”. Dava pra ver as gotas de suor na careca.

Claro que segundos depois um armário engravatado e persuasivo me pegou pelo braço, me trouxe para baixo, escutou minhas explicações fornecidas no mais puro yázigi, e me encaminhou paternalmente para o corredor onde a paraibada em peso me esperava. (Nenhum deles acreditou na minha história, claro. Nem é preciso.)

Esse pequeno flagrante da vida real tem importância para mim porque, apesar de já ter cantado em teatros, em ginásios, em praças repletas de gente, eu nunca acho que isso tenha um sido um show de verdade, visto que era um show meu. Show de verdade foram aqueles 15 ou 20 segundos em que fiquei suspenso a dez centímetros do solo pelo casulo pulsante de decibéis que se escuta no círculo de retornos de um palco. E olha que o som de Baby James era um som mansinho, nem chegava perto do pessoal que tocara na véspera, uns tais de Queen e Iron Maiden.

Este intróito serve para colocar uma coisa interessante no mundo do Big Show, que é a superposição de dois imaginários fortíssimos da humanidade, que são A Imagem e A Presença. Nosso inconsciente pessoal e coletivo se deixa arrebatar fortemente por essas duas mágicas.

Por que vamos ao cinema? Por causa da magia da Imagem. Por que vamos ao teatro? Por causa da magia da Presença.

No cinema não estamos nem aí para o fato de que estamos olhando para uma superfície plástica refletora. Para nossa imaginação, é como se ali estivesse o espaço sideral com uma batalha de espaçonaves, ou o sertão de Cabrobó, ou um pub inglês cheio de gente cantando, ou o rosto de Bibi Andersson olhando pra gente.

No teatro, não temos que fantasiar presenças: o que estamos vendo é o que estamos vendo, tudo aquilo ali é de carne e osso e existe fisicamente no mesmo plano de realidade que nós. Se a gente der um grito, os atores escutam. E qualquer coisa imprevista que ocorra (um ator que cai e quebra a perna, ou fogo no palco, ou uma crise de hilaridade em todo o elenco) aconteceu de verdade, é a vida presente.

E os grandes shows de hoje em dia conseguem satisfazer esses dois imaginários. Quando fui, por exemplo, à Praça da Apoteose para ver os Rolling Stones e Bob Dylan cantando juntos “Like a Rolling Stone”, meu olho ia alternadamente do palco para o telão e do telão para o palco.


(Bob Dylan e Rolling Stones, Praça da Apoteose, 1998)

No telão, eu via os dedos esquerdos do guitarrista me mostrando o acorde correto, via as rugas de concentração no rosto do bardo, via os sorrisos de cumplicidade na hora do vocal colado ao microfone, via todos os detalhes inacessíveis da performance que se dava a cem metros de onde eu estava.

E aí meus olhos largavam o telão e corriam para o palco, aquele quadradinho remoto e iluminado lá no extremo oposto da multidão ululante, e com isso eu confirmava a Presença, o fato de que não era uma simples transmissão de TV, era real, eu e aqueles caras estávamos existindo no contexto do mesmo fato, no mesmo espaço, no mesmo tempo. “É de verdade, e está acontecendo agora.”

O grande show, portanto, virou uma forma de arte bicameral, onde temos a experiência do cinema (a Imagem) e a experiência do teatro (a Presença), ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.  É por isso que todo mundo paga e não reclama.




(Rolling Stones, Praia de Copacabana, 2006)








segunda-feira, 23 de setembro de 2019

4506) W. J. Solha e a Decifração do Mundo (23.9.2019)




Saiu mais um volume de uma série de livros-poemas que W. J. Solha vem publicando, e que até o momento inclui: Trigal com Corvos (Viseu, Portugal: Palimage, 2004), Marco do Mundo (João Pessoa: Ideia, 2012), Esse é o Homem (João Pessoa: Ideia, 2013), e agora Vida Aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019).

Aqui, meu comentário sobre o primeiro livro:

Solha pratica na poesia o verso-largo de Walt Whitman, Allen Ginsberg, Álvaro de Campos: a linha caudalosa e discursiva que só se interrompe ao fim de um fôlego. Um verso livre e indomesticável que tanto pode se alongar por trinta palavras como ser cortado de uma em uma.

Mais curiosa do que sua métrica é o seu uso da rima, que ele usa geralmente como rima interna, em posições não-fixas, mas reiteradamente fazendo comentários sonoros. No terceiro livro ele tem ampliado o uso de reticências para destacar essas rimas internas:

O... cúmulo, não ser mais que um hífen no meio de duas datas,
num túmulo! (p. 38)

Seu texto é torrencial, incessante, praticamente o mesmo fluxo nos três livros, a mesma voz que se interrompe ao fim de um volume e anos depois, em outro, recomeça de onde parou. Seu tema é A Decifração do Mundo, a tentativa de entender a natureza, a cultura, a civilização, o destino coletivo da humanidade e o destino pessoal desse indivíduo que pensa e escreve sem parar para respirar.


(Philip K. Dick, por Richard Crumb)

Philip K. Dick disse, em algum dos seus textos metafísicos, que a mente humana absorve Significado como uma esponja absorve água. Nossa mente precisa de sentido para existir, precisa impor um padrão inteligível a tudo que vê, como aquelas pessoas que enxergam formas animais nas nuvens, nas manchas de lodo numa parede, no borrão de tinta de um cartão Rorschach.

W. J. Solha, que é romancista, ator, artista plástico, vive à cata de sentido, de correspondências, de padrões, de rimas visuais ou sonoras em meio à proliferação caótica de coisas no mundo. Vive à cata de um elemento a partir do qual todo o resto possa ser enquadrado, definido, “inteligido”.

E... nossa sorte
é que a bússola aponta todas as direções
no que só nos mostra
o norte!

A catadupa de referências a personagens eruditos (pintores, compositores, romancistas, cientistas, filósofos) pode dar a impressão errada de que se trata de um poema embebido de saber livresco. Mas é acima de tudo o saber direto, intuitivo, total, que o poema celebra; o que ele chama de “saber não-saber”:

E há os povos de tartaruguinhas a sair dos ovos e a emergir
da areia,
na praia, em que,
sob o comando da Terra (pros gregos, “Gaia”),
disparam pro mar,
sem saber, sabendo que... sabem
nadar.  (p. 12)

Há dois aspectos (aparentemente contraditórios) com que me identifico nesse ciclo poético de Solha. O primeiro é a sensação de pertencimento a uma certa aristocracia do espírito, a uma elite capaz de encontrar, assimilar e entender o que há de elevado e refinado na cultura, seja a pintura renascentista, seja a poesia épica da antiguidade, o teatro shakespeariano, a arquitetura gótica ou barroca, a física teórica, a música sinfônica. Sim, tudo isto foi feito para nós, foi feito para que gente como nós o aprecie.

Pouco importa se mais da metade da espécie humana não liga para essas coisas. Que fiquem em paz, cuidando do que lhes interessa. Essas obras foram feitas para quem gosta, para quem é capaz de dar a vida por elas.


(W. J. Solha, no filme “O Som Ao Redor”)

Por outro lado, me identifico com um viés oposto: somos intelectuais de origem plebéia, sem pedigri, sem heráldica, sem sobrenomes compostos, sem quadros a óleo dos antepassados enfileirados num corredor da Ala Oeste da mansão. Somos plebeus mesmo, pés-rapados interioranos, gente que precisou trabalhar desde cedo com coisas de que não gostava, e sempre soube que teria pouquíssimas chances de uma graduação em Harvard e de uma pós-com-bolsa em Cambridge. O Monte Olimpo fica ali, a uma caminhada de distância, mas parece que nosso destino será o de ficar aqui na Arcádia mesmo, pastoreando cabras, tocando nossa flautinha e colhendo azeitonas.

Menos mal; estamos em boa companhia. Tem outros autores em quem eu identifico essa energia incontrolável que movimenta as engrenagens dos poemas de Solha. Henry Miller, por exemplo. Injustamente rotulado de pornográfico porque ousou falar de sexo na sala-de-visitas literária, Miller é na verdade um vulcão de energia vital capaz de por tudo se interessar, tudo procurar, tudo absorver.



(Henry Miller)

Poucos autores do século passado tiveram uma atitude tão vital (não encontro outro termo), de se jogar de corpo inteiro em tudo quanto a vida oferecesse. Miller lia espantosamente muito, mas nunca foi um desses eruditos passadores-de-pente-fino capazes de escrever vinte páginas sobre as diferentes acepções de uma palavra grega. (Não digo que isso seja inútil – estou apenas questionando quem diz que inútil é ler Henry Miller.)

Foi sempre um sujeito comum, um empregado dos correios, aguentou trezentos empreguinhos estupidificantes, foi sustentado pela mulher que fazia programas com caras ricos, tudo isso para manter seu projeto literário. Foi, no dizer, de J. G. Ballard (A User’s Guide to the Millenium), “o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual da classe trabalhadora (...), um Proust proletário, noção que formou a base de toda sua carreira.”

Toda a obra literária de Henry Miller, da melhor à pior, é estuante desse prazer vital, em que trepar e filosofar são basicamente a mesma coisa, a ser feita com uma energia avassaladora, alegre e sem culpa.

O outro autor “plebeu” que eu reencontro em Solha (como em mim mesmo) é Colin Wilson, cujo defeito maior como escritor deve ter sido escrever demais, publicar demais, embarcar demais em qualquer idéia mirabolante (geralmente no campo da paranormalidade) capaz de despertar sua grande qualidade: uma curiosidade inesgotável pelo Universo.

(Colin Wilson)

Desde o clássico O Outsider (1956) Wilson defende a teoria um tanto visionária, talvez mais próxima da literatura do que da filosofia, de que a mente humana sofre sérias limitações do seu potencial mas poderia, se devidamente organizada, assumir poderes quase sobre-humanos.

O Outsider analisa escritores (Dostoiévski, D. H. Lawrence), artistas (Van Gogh, William Blake), pensadores-aventureiros (Lawrence da Arábia, Gurdjieff) para expor sua visão de que o Outsider, o estranho, o estrangeiro, o intruso, é o indivíduo de grande potencial que acaba entrando em choque permanente com a sociedade. Em muitos casos, torna-se um criminoso, e vai daí que os melhores romances de Wilson sejam romances policiais como Ritual nas Trevas (1960), A Gaiola de Vidro (1966), O Matador (1970), Necessary Doubt (1964) etc.

Neste último, um personagem diz:

Olhe, eu sempre pensei na consciência humana como uma espécie de luz néon com motor fraco. Sabe quando a gente liga uma dessas luzes e ela tenta acender e não consegue... A luz tenta saltar ao longo do tubo, começa a brilhar nas duas extremidades, pisca por um momento... e depois se apaga. Pensei que o orgasmo sexual era a mesma coisa: uma tentativa de consciência real. Mas não posso deixar de imaginar que qualquer dia destes a luz vai se acender ao longo do tubo, e de repente teremos atingido a consciência verdadeira.

Esses momentos de iluminação (que Freud chamava de “experiências oceânicas”, e Jung de “experiências numinosas”) são raros porque vivemos numa espécie de sonambulismo-do-cotidiano, conversando, comendo, trocando de roupa, trabalhando, movidos por um piloto automático que nos impede de pensar com toda a profundidade que poderíamos.



Wilson aplica essa teoria e seus desdobramentos ao escrever sobre o mundo do crime (Order of Assassins, 1972), o ocultismo (O Oculto, 1971), o sexo (Origins of the Sexual Impulse, 1963), a religião (Religion and the Rebel, 1957), a literatura fantástica (The Strenght to Dream, 1962) e assim por diante. Sua obra, em sua parte mais bem realizada, produz um efeito euforizante que nos faz imaginar que “as possibilidades, como sempre, são infinitas”.

E esse mesmo Wilson era filho de um sapateiro, estudou irregularmente aqui e ali mas foi basicamente um auto-didata que lia quantidades enormes de livros e aos catorze anos já tinha escrito um Manual Geral de Ciências em vários volumes. Um plebeu de origem, sem graus acadêmicos significativos: um sujeito que (como eu mesmo) se educou nos salões das bibliotecas, nas enciclopédias encadernadas e nas coleções de fascículos vendidas em bancas.

Plebeus de origem mas aristocratas do espírito, destinados a viver numa cultura (os EUA de Miller, a Inglaterra de Wilson) dominada em grande parte por cavalgaduras engravatadas incapazes de entender um silogismo ou de explicar por que uma lâmpada elétrica acende.

E no entanto, que importância tem isso?  O universo está à sua (à nossa) disposição. A vida está aberta para quem sabe pensar,

feito o balão
que,
como num jogo,
se eleva,
no que leva o fogo
que o leva.  (p. 64)




sexta-feira, 20 de setembro de 2019

4505) "Grande Sertão: Veredas" em cordel (20.9.2019)




(foto: Maureen Bisilliat)

O romance Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, já teve adaptações para o cinema (pelos irmãos Santos Pereira), para a televisão (por Walter Avancini), para o teatro (por Bia Lessa) e certamente teve muitas outras – estou citando apenas as primeiras que me vêm à memória.

A literatura de cordel, principalmente a das décadas mais recentes, tem adaptado uma enorme variedade de obras literárias. Entre elas algumas coisas que nos anos 1970, quando comecei a estudar a sério essa produção editorial, seriam impensáveis.

Naquela época, eu não imaginava ver cordelizações das peças de Shakespeare (já tem, por Stélio Torquato), nem dos contos de Edgar Allan Poe (já tem, por Evaristo Geraldo e Rouxinol do Rinaré).

E tem cordelização do Grande Sertão, por Edmilson Santini.



As principais dificuldades para quem quiser fazer qualquer adaptação desse romance são:

1) o gigantismo do texto, com centenas de personagens e dezenas de episódios;

2) a complexidade da linguagem;

3) a riqueza de subtemas sugeridos a cada passo, em áreas que vão desde o romance de cavalaria até a fauna e flora sertaneja, desde o misticismo oriental até as guerras sociais da Primeira República.

Dá pra botar isso tudo num cordel? Não, não dá. Mas dá para fazer o que Edmilson Santini (ator, educador, poeta cordelista atuante no Rio de Janeiro) fez. Fazer um panorama geral da história, e acompanhar de perto a linguagem poética.


(Edmilson Santini)

Porque a linguagem de J. G. Rosa é acima de tudo poética, no trato com a palavra (as incessantes escolhas verbais, processo criativo que ele pregava com devoção), com a frase, com as sonoridades, com as conotações etimológicas.

Podemos esquecer (nesta análise) as qualidades imensas que ele tinha como romancista, e cuja largueza não dá para formatar dentro do cordel.

Nesse ponto, Santini constrói seu cordel (em estrofes variáveis, mas sempre próximas das formas “canônicas”: sextilha, septilha, décima, parcela) num trabalho minucioso de cortar-e-colar, onde as frases de Rosa são trazidas para dentro do versos e rimadas com as do novo autor. 

Abençoadamente, Rosa escrevia muito em redondilhas maiores implícitas. Sua prosa é toda ritmada. Na maioria dos casos, é só cortar – a frase já está com métrica perfeita.

O folheto de 44 páginas se abre assim:

Desta rima a gente parte
Entre a fala e o papel.
Tem sertão em toda parte,
Desenredo em carretel:
Deus e o Demo na Rua,
À luz do sol e da lua:
São Veredas em Cordel. (p. 1)

Os personagens são introduzidos com um pé no romance original e outro no folheto:

Sou protegido de quem?
De um Sertanejo Pajé,
Compadre Meu Quelemém,
Quelemém de Góis, que é...
Meu Quelemém de Cardéque,
Seu sorriso é um pléque-pléque:
Alpercatas de Sumé... (p. 1)

O mesmo se dá com os cenários famosos:

Liso do Sussuarão?
Nem não pude acreditar!
Como alguém atravessar,
Vivo, um Inferno, socavão,
Buraco-chã, grande vão...?
Chão ali tem parentesco
Com rastejante grotesco
Tão grande se emenda em si
Vida em vago corre ali
Liso do Inferno Dantesco. (p. 8)

Uma das regras da adaptação é: “Ninguém está reproduzindo a obra original, pois isto, além de impossível, é desnecessário.”

Adaptar é captar algo da forma, e algo da chama.

É, no caso de obras literárias, escolher um diapasão (toda grande obra tem um diapasão diferente para diferentes camadas: enredo, personagens, linguagem, simbolismo, retrato social, etc.).

A adaptação de Santini vibra na mesma frequência da linguagem rosiana, o que não é pouco, e o fato de se dar nas fórmulas do cordel ajuda a fazer brotar certas pulsações poéticas (em rima e métrica, principalmente) existentes no original, e que muito admiradores de Rosa não percebem, porque são leitores-de-romance sem formação poética. Sem ouvido pronto para perceber as sutilezas propriamente poéticas.



E não é só a escolha verbal ou a cadência do verso. A prosa de JGR é visual, captadora de presenças físicas, o que a torna cinematográfica. Eis a inesquecível passagem em que Riobaldo, menino, vê chegarem de madrugada na fazenda os jagunços armados até os dentes, quando ouve pela primeira vez a canção de Siruiz:

Como quem surge da quina
Da noite, vem da cozinha,
Meu Padrinho, uma lamparina,
Acesa à mão o encaminha:
Abriu a porta, e um desabado
Chapelão, cinema alado,
Me botou pasmo: Lá vinha...

Cinco homens, dez esporas,
Pés semeando poeira,
Dedos quantos, quantas horas,
De caminhada, canseira...
Vi um tal que, pelo vulto,
Pressenti pacto no oculto:
A sombra encheu cumeeira... (p. 14)

Os episódios secundários são pulados por cima, mas o folheto acompanha passo a passo a trama principal de traições, trocas de chefia, perseguição e vingança final. E a linguagem corre junto. Hora de tiroteio, prosa de tiroteio:

E tome lá, cabroeira!
Tome tiro, tome broca!
Broca de mato de loca...
De louca guerra, crueira...!
Cranco de nó de madeira...!
E foi que foi, na escora
De cada pé de pau-tora,
Raiz de cruzado jogo,
Saiu do chão, botou fogo:
Mundo danado caipora...! (p. 26)

Hora de poesia, prosa de poesia:

Noite de toda fundura,
Em Diadorim pensando.
No céu li a Escritura
Das estrelas, soletrando...
Quem disse que ler estrelas
No Sertão não nos faz vê-las,
Por escrito alumiando...? (p. 38)

Existe uma forma meio preguiçosa de escrever cordel, que é a tentativa de ficar perto do vocabulário, do tom, da forma-da-frase do cordel tradicional. Eu mesmo faço isto às vezes, geralmente por mero motivo prático – escreve-se sem pensar muito, “ao correr da pena”, pensando apenas na clareza do dito e na rima do escrito.

Mas o cordel – como aliás, é sempre bom insistir, qualquer tipo de poesia ou de literatura – é feito por quem o faz, na hora em que está fazendo.

Cumpridas as exigências básicas (rima, metro, estrofe), no instante de escrever é cada qual por si, e com o que tem.

O Veredas – Versão em Cordel de Edmilson Santini mostra que o Romanceiro Popular Nordestino é como o Sertão rosiano: está em toda parte. E qualquer um pode entrar ali, porque ele impõe suas leis. As leis do Romanceiro e as leis do Sertão são poucas, mas são de ferro. O que vem depois disso, é o dom de cada um.







terça-feira, 17 de setembro de 2019

4504) A palavra Exu (17.9.2019)




Proposta Inicial: “Toda palavra é uma mensagem que pode ser decifrada, mesmo não tendo sido cifrada antes por ninguém.”

"Decifrar" pode ser também inventar uma intencionalidade a-posteriori. Não é a “descoberta”, e sim a invenção de significados. Decifrar não é apenas encontrar o que estava escondido, é criar o que não existia antes.

Uma caixa vazia e fechada, que a gente abre e no momento em que ela é aberta se enche de coisas.

Há muitos anos, na Bahia, tomei uma noitada de cerveja com o cineasta Miguel Borges, que divertiu todo mundo na mesa com interpretações onomástico-numerológicas do nome de cada um. Ele pegava cada nome, explicava (inventava) um significado, uma mensagem. A pessoa morria de rir vendo o truque, mas concordava que tinha tudo a ver com ela.

Sim, era o mesmo Miguel Borges que dirigiu As Escandalosas e O Enterro da Cafetina – ele também foi editor da “revista mística” Ano Zero e tinha uma certa propensão ao Realismo Fantástico.

(Infelizmente, as testemunhas da veracidade do que estou dizendo, Guido Araújo, Pedro Camargo, estão a esta altura debruçados numa varanda lááá de cima, me cochichando: “Não se preocupe, vai em frente, faz de conta que está inventando mesmo.”)

A palavra “exu”, por exemplo, que neste amanhecer sonolento se depara comigo numa página (a página de abertura) do livro novo de Luiz Antonio Simas, O Corpo Encantado das Ruas. Essa palavra contém o quê?

Ela contém um E, um X e um U.

É a palavra “EU”, só que no centro dela, cravado nela, dividindo-a, está um X, uma incógnita, o símbolo do desconhecido (uma quantidade que não sabemos qual seja) e do arbitrário (uma quantidade que nos permite decidir: “é tanto”).

No centro do Eu, dois machados cruzados, duas lanças, duas espadas, simbolizando o conflito, mas não apenas o conflito negativo (a guerra, a destruição), mas o conflito gerador, o cruzamento entre o macho e a fêmea gerando vida, o cruzamento entre duas lascas de pedra gerando fogo.

Esse X é uma encruzilhada no centro do Eu, assim como existe um grão de areia no centro da ostra. É em redor desse conflito incômodo que camadas sucessivas de luz começam a se sobrepor e a se irradiar.

O Exu (diz Simas) é “o mensageiro entre o visível e o invisível”. É o equivalente ao Hermes grego e o Mercúrio romano. (Essa analogia é por minha conta e risco.) Não é uma pessoa, é um portal que pensa, um portal ambulante com intencionalidade e algo de emoções humanas. Uma passagem e ao mesmo tempo um passageiro.

Como todo mundo sabe, o símbolo da cruz é visto por alguns como o instrumento de suplício em que Jesus Cristo foi sacrificado. E é visto por outros como a Cruz de Descartes, o eixo das abscissas e ordenadas, do X e do Y, do visível e do invisível.

O X e a cruz são o mesmo símbolo, em diferentes momentos de sua rotação. São o contato com o Incógnito, o Desconhecido, o Mistério Inefável.

Exu não é o diabo cristão, como muita gente insiste em vê-lo. O Diabo cristão é por um lado uma personificação (uma antropomorfização) do Mal, um Mal que de fato existe no mundo físico-espiritual. Mas no varejo ele acaba sendo o personagem preferido das correntes puritanas e repressoras, como um elemento contaminador que serve para envenenar tudo que torna a vida mais intensa e por isso causa medo. O sexo é coisa do Diabo, o riso é coisa do Diabo, a festa é coisa do Diabo, o prazer é coisa do Diabo, a comida saborosa é coisa do Diabo, a bebida é coisa do Diabo...

Essas coisas não são do Diabo, não são do Mal: são do Exu, são dessa contradição cravada em nós – a contradição entre o físico e o espiritual, duas forças que nos puxam em direções opostas e nos dilaceram, mas nesse puxar e dilacerar geram a energia que nos move.

Não podemos existir só no físico – nem só no espiritual. Temos que existir neste ponto onde os dois se encruzam, neste X. Neste cabo-de-guerra onde essas duas energias se enfrentam, como numa queda-de-braço onde centímetros de vantagem se alternam mas um é sempre incapaz de derrubar de vez o outro.

Na adolescência eu olhava fascinado um livro que me foi muito importante, e que não reli desde então: Sexus de Henry Miller. E eu via o Exu dentro desse título. O sexo (cujo mundo eu estava adentrando pé ante pé, virginiano que sou) tinha cravado dentro de si esse diabrete irrequieto com o pau duro de fora, e quando eu prestava atenção via que o diabrete era eu.

Era o trupizupezinho que reencontrei anos depois numa xilogravura e usei como carimbo dos meus folhetos e livros de poemas. Um diabinho do bem, de asas, mas olhando de soslaio as coxas das moças. Um diabinho que dança. “Só posso acreditar num diabo que seja capaz de dançar”.


SEXUS é uma palavra que tem EXU no centro e dois S nas extremidades. Por que um S? O que diz essa letra? Quem dá a resposta é a sextilha famosa de Pinto do Monteiro:

Eu só comparo esta vida
à curva da letra S:
tem uma ponta que sobe
tem outra ponta que desce
e a volta que dá no meio
nem todo mundo conhece.

A Vida nas duas extremidades. O Eu dentro dela. E no centro do Eu esse X mercurial, instável, desequilibrante, arlequinal, ora rude ora terno, ora violento ora apaixonado, com duas correntes de energia que se cruzam e se reforçam uma à outra.

Não estou “viajando”, aliás são 10:55 da manhã e tudo que tomei foi meia garrafa de café, com um sanduíche de queijo. “Sexus” era uma palavra onde se cifrava esse sentido da vida como algo que tem no seu centro uma encruzilhada, o lugar das oferendas (a oferenda é o nosso corpo, que deixamos aqui para que o espírito possa subir – segundo a crença de muitos).

A prova de que não estou delirando é que o próprio Henry Miller sub-titulou aquela sua trilogia como “A Crucificação Encarnada”, “The Rosy Crucifixion”. Uma dessas expressões onde a forma traduzida é superior à original, porque “encarnado” não significa apenas “cor de rosa, avermelhado”, mas “transformado em carne”.


Assim diz, na página de abertura do seu livro, compartilhada em foto nas redes sociais, o autor Luiz Antonio Simas:

A ruas são de Exu em dias de festa e de feira, dos malandros e pombagiras quando os homens e mulheres vadeiam e dos Ibêjis quando as crianças brincam.

Tudo começa com o ipadê, o padê de Exu, a cerimônia propiciatória com farofa de dendê, cachaça (oti) e cantos rituais, para que Exu traga bom axé para as festas nos terreiros, cumpra seu papel de mensageiro entre o visível e o invisível, chame os orixás e não desarticule, com suas estripulias fundadoras da vida, os ritos da roda, aqueles em que os deuses dançam pelo corpo das iaôs (as filhas de santo). O padê de Exu também pode ser colocado na encruzilhada, lugar em que as ruas se encontram e os corpos da cidade circulam.

A encruzilhada é a crossroads onde se diz que os cantores de blues como Robert Johnson “fizeram um pacto com o Mal para aprender a tocar”. O que é uma falácia, uma calúnia. Nas encruzilhadas o único pacto possível é com o fluxo, o trânsito, a passagem, a travessia. A encruzilhada representa (entre outras coisas) o lugar onde o Bem e o Mal se cruzam, se tocam, se contaminam: a Vida.

E quem tem jurisdição sobre a encruzilhada é esse trickster, esse diabrete, esse anjinho da cara suja, esse palhacinho exuberante, exultante, exumado do fundo da terra e que ao ser trazido de volta à luz está eternamente vivo, transgressor, desarrumando o arrumado, viramundo virado, fechando um caminho aqui, abrindo outro acolá, ponto de energia ora em corrente alternada, ora em corrente contínua, cravado no centro do Eu do mundo.











domingo, 15 de setembro de 2019

4503) "O senhor acredita na realidade?..." (15.9.2019)




Uma vez, depois de uma mesa-redonda sobre temas ligados a religião, fé, etc., alguém me perguntou: “Por que você não acredita na existência de Outro Mundo?”, e eu disse: “Eu não consigo acreditar nem sequer neste, quanto mais num que eu nunca vi!...”

Um cético nem sempre é um cara aferrado à realidade. Às vezes é um cara que precisa de comprovações muito rigorosas. E se ele sente que o mundo de cá está em falta, o que dizer de um mundo com o qual ele nunca teve nenhum contato?

Não que eu seja tão cético assim, e na verdade tenho uma certa medula sertaneja que me leva a ser prático, aceitar as coisas como elas parecem ser, e botar açúcar no café, mesmo admitindo a possibilidade de que ambos não passem de ilusões berkeleyanas do meu espírito.

A respeito disso, tem uma história muito divertida a respeito dos filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap. Os dois estavam num congresso filosófico discutindo sobre o “phaneron”, um conceito grego que designa o conjunto de nossas percepções sobre o mundo. Quando existe uma certa regularidade nessas percepções, construímos uma “ficção lógica” para afirmar que qualquer coisa existe: uma pedra, uma cadeira, uma casa, uma pessoa...

Porque não sabemos o que é o mundo – sabemos apenas o que percebemos dele, mas pode haver infinitas coisas que não percebemos. O exemplo na linguagem comum é o vento, que a gente não vê, mas deduz sua existência pelas coisas que ele move. (A resposta mais simples a essa questão é que a existência do vento não é percebida pela visão, mas o é pelo tato, assim como há coisa que o tato não percebe mas a visão sim, como as estrelas do céu.)

Há também o mundo microscópico, que era inacessível a nossa percepção, mas começou a fazer parte do nosso phaneron com o advento do microscópio, etc.


(Bertrand Russell e Rudolf Carnap)

Pois bem: certa vez os filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap estavam debatendo esta questão, perante um auditório na Universidade de Chicago, e a certa altura Russell perguntou:

-- Professor Carnap: nossas esposas vieram conosco, e estão presentes aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós dois, seus maridos?

Foi uma pequena molecagem da parte de Russell, que tinha aquele humor britânico fundado em muita gentileza e cara-de-pau. É um argumento aparentemente irrespondível, e que me lembra uma boutade semelhante de Ariano Suassuna, que dizia:

-- Eu não gosto de Kant [o filósofo] e um dos motivos é esse. Ele dizia que nós não podemos afirmar a realidade exterior, que aquele jasmineiro é uma coisa para mim, outra para você, outra para ele. Mais do que isso, ele acreditava que eu nem sequer posso provar que a imagem que eu tenho corresponde ao real. (...)  É muito fácil você discutir se aquele jasmineiro, se a imagem daquele jasmineiro corresponde ou não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu garanto que, se fosse uma onça que entrasse aqui, nem Kant iria perguntar se por acaso se tratava de uma correspondência com o real.
(Cadernos de Literatura, Instituto Moreira Salles, pag. 30)


O pragmatismo oncístico de Ariano ecoa o pragmatismo conjugal de Bertrand Russell. Tem certos aspectos da realidade que, por mais que a gente procure questionar filosoficamente, eles sempre dão um jeito de prevalecer e dizer, “pára com essa besteira, é claro que eu estou aqui.”

O mesmo problema – penso eu – pode lançar luz sobre o famoso Paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, que já fez correr muita tinta de penas ilustres como a de Jorge Luís Borges e a de Douglas Hofstadter (Godel, Escher and Bach). É aquela antiga pegadinha onde o filósofo tenta nos convencer de que numa corrida entre “o velocípede Aquiles” (como se diz em algumas traduções de Ilíada) e uma tartaruga aquele jamais conseguiria ultrapassá-la. É claro que consegue. Mas é mais difícil provar isso teoricamente do que na prática.

O que todos esses problemas envolvem é um detalhe que foi levantado com justiça pelo professor Carnap, naquele debate com Russell. Queixou-se ele de que Russell estava tentando ser engraçadinho às suas custas, pois na verdade não se estava ali duvidando da existência das esposas de ninguém. O que eles dois (e todos os filósofos) procuram é algum tipo de certeza filosófica, uma prova argumental de que isto em que acreditam é verdadeiro. Querem uma prova filosófica irrefutável de que o mundo é real; e essa prova não existe.


(Bruno Latour)

Um artigo de Ava Kofman no New York Times conta os percalços filosóficos de Bruno Latour, um filósofo da Ciência que vem passeando há muitos anos nesses labirintos. Ela abre o artigo narrando como Latour estava no Brasil em 1996, participando de um simpósio, e um ansioso psicólogo conseguiu levá-lo para um lugar discreto e desfechar-lhe a pergunta: “Professor, o senhor acredita na realidade?...”


Parece piada de leitor de Philip K. Dick depois de algumas cervejas. Mas isso é o café-com-pão desses filósofos, que se veem forçados a esmiuçar as menores coisas na tentativa de provar o que parece óbvio a todo mundo.

O trabalho de Latour envolve uma longa tentativa de provar que os fatos científicos não existem por si sós: eles são o produto de uma rede (networtk) de instituições e práticas e grupos e debates e consensos, que os tornam inteligíveis e aceitos. Se essa rede de apoios sócio-culturais se romper ou se esvair, fica fácil provar qualquer coisa. Até que a Terra é plana.

A consciência científica é uma consciência social, comunitária. Ela pode ser sacudida de vez em quando pelos terremotos de um novo “conceptual breakthrough”, uma ruptura de conceitos para abarcar uma visão mais ampla – como o que Einstein fez com a Física, ampliando (e negando em alguns aspectos cruciais) o universo de Isaac Newton.

Ela pode também ser sacudida por terremotos de obscurantismo, como parece estar sucedendo agora, com a ascensão de grupos semi-letrados manipulados por gente interessada na devastação do meio ambiente, por exemplo. Ou na (impossível) eternização do modelo energético baseado no petróleo e nos motores a explosão.

Esses grupos se aproveitam de um certo torre-de-marfinismo da própria comunidade científica e começa a questionar coisas absurdamente óbvias – se a Terra gira em torno do Sol, ou se de fato existem micróbios. E se propõem, principalmente para milhões de jovens inconformados com isto ou aquilo, como “questionadores do status quo científico”, como rebeldes perseguidos pelo mundo acadêmico.

Filósofos e cientistas são capazes de questionar a existência de uma esposa ou de uma onça, pelo mero esforço intelectual de explorar uma pergunta até o fim (coisa que os semi-letrados detestam fazer). E é irônico que agora sejam forçados a ignorar perguntas como “O senhor acredita na realidade?”, que em sua aparente ingenuidade é uma pergunta crucial, para explicar o que nunca lhes passou pela cabeça ter que explicar – que é preciso tomar vacinas contra o sarampo, ou que não existem alienígenas reptilianos disfarçados de políticos ou banqueiros. (Se bem que esta última imagem seja a metáfora mais adequada que nosso inconsciente coletivo já produziu sobre estas duas categorias profissionais.)