quarta-feira, 30 de julho de 2008

0478) As almas crepusculares (30.9.2004)




(estátua de Nathaniel Hawthorne)

Quando um dia eu tiver tempo, ou energia, ou inspiração, vou escrever um livro de 400 páginas dedicado ao estudo de um certo tipo de escritor que denomino “as almas crepusculares”. São aqueles indivíduos silenciosos, introspectivos, com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior, que passam a vida inteira mergulhados nos livros ou nas suas próprias meditações, e cuja obra reflete essa condição de alheamento. 

Em geral são sujeitos puritanos, com pouco contato com mulheres. A maioria nunca se casou, vários deles mantiveram-se praticamente virgens até a morte, e outros conseguiram encontrar uma esposa compreensiva o bastante para aceitá-los e manter-se ao lado deles a vida inteira, cuidando deles, sem atrapalhar.

Um deles foi Jorge Luís Borges, um dos sujeitos mais tímidos que a extrovertida cultura argentina já produziu. Sua vida sexual foi menos movimentada do que a de muitos bispos norte-americanos. Morou a vida inteira com a mãe, lendo livros de filosofia e tecendo labirintos mentais. 

Outro desses foi H. P. Lovecraft, o mestre das histórias de terror, que afirmava ser uma alma do século 18 perdida no século 20, e cujo principal contato com o mundo eram as cartas de 20 ou 30 páginas que mandava para os amigos. 

Não devemos esquecer de Nathaniel Hawthorne, mergulhado no coração puritano na Nova Inglaterra, um recluso que disse certa vez: “Me transformei num prisioneiro dentro de um calabouço, e mesmo que a porta estivesse aberta teria medo de sair.” 

Não está muito longe deles o nosso Augusto dos Anjos com seu temperamento sombrio, mergulhado numa vida imaginativa de rara intensidade. Ou Franz Kafka; Cornell Woolrich; J. R. R. Tolkien.

Não estou radicalizando, não afirmo que esses sujeitos nunca tiveram vida social. Estou colocando-os num extremo de uma escala que no extremo oposto tem indivíduos sanguíneos, extrovertidos, saudavelmente animais, intensamente gregários: gente como Hemingway, Neruda, Henry Miller ou Vinicius de Morais. 

Também não digo que estas “almas crepusculares” fossem somente homens: basta pensar em Virginia Woolf ou Emily Dickinson.

Chamo-os “crepusculares” não apenas pelo clima de melancolia e solidão que cercou as suas vidas, mas também porque todos viveram naquela “Twilight Zone” em que realidade e fantasia pouco se distinguem. Todos cultivaram o hábito da introspecção, dos longos dias de solidão meditativa, da leitura e escritura de textos voltados para o seu próprio mundo mental. 

Não foram homens de ação, não foram adeptos de intensas atividades físicas, não cultivaram o prazer sensual, as aventuras amorosas, a variedade de experiências sexuais. Contentaram-se com o celibato, ou com um casamento sisudo e sem surpresas. Pareciam pedir ao mundo físico à sua volta que andasse na ponta dos pés, que não fizesse barulho, que os importunasse o mínimo possível, porque eles se sentiam no umbral de outro mundo, que só eles viam, e onde se sentiam muito mais em casa.




0477) “The Modern Word” (29.9.2004)



Dos saites dedicados à literatura da Web, um dos meus preferidos é o que um americano chamado Allen Ruch, fã de ficção científica e de literatura moderna, criou em 1995 sob o nome de “The Libyrinth”. Ao descobrir a World Wide Web, Ruch (que também se assina com o apelido de The Great Quail, “A Grande Codorna”) percebeu que não existiam, na época, muitos saites voltados para a obra de alguns dos seus escritores preferidos: Garcia Márquez, James Joyce, Jorge Luís Borges... Em vez de acender um cigarro e se queixar da falta de cultura da população internética, Ruch criou um saite para falar justamente destes autores. O nome “The Libyrinth” é uma homenagem ao que ele considera os dois símbolos desse tipo de literatura: a Biblioteca (“Library”) e o Labirinto. O foco recai em autores cuja obra mostra um uso criativo e experimental da linguagem e uma ruptura com as formas tradicionais do realismo literário.

O saite passou a ser patrocinado anos depois; tornou-se um enorme Portal, e adotou o nome “The Modern Word”, sob o qual pode ser encontrado (http://www.TheModernWord.com/themodword.cfm). A chamada “Coleção Principal” consta de 7 saites com uma gigantesca massa de informações sobre 7 autores: “Porta Ludovica” (Umberto Eco), “Macondo” (Garcia Márquez), “O Jardim das Veredas que se Bifurcam” (Borges), “Apmonia” (Samuel Beckett), “A Cabeça de Bronze” (Joyce), “O Castelo” (Kafka) e “Spermatikos Logos” (Thomas Pynchon). Cada um destes saites subdivide-se em numerosas seções, contendo críticas, ensaios acadêmicos, fotos, cronologia, bibliografia, etc.

Quem se interessa por estes autores encontra na “Modern Word” material de leitura para o resto da vida. Há uma equipe que alimenta o saite com novos textos que saem pelo mundo inteiro. Também interessante é a seção denominada “Scriptorium”, onde outros autores merecem páginas específicas, mas de menor extensão. No “Scriptorium” são abordados autores que futuramente poderão ter saites maiores em The Modern Word, os que já têm muito material na Web, e os que ainda não têm uma obra grande o bastante que justifique todo um portal consagrado a ela. Em todo caso, a seleção vai desde alguns dos melhores autores da ficção científica (Philip K. Dick, Stanislaw Lem, J.G. Ballard, etc.) até bons ficcionistas contemporâneos (Kobo Abé, Primo Levi, Robbe-Grillet, Michael Ondaatje, etc.) O leitor mais magnânimo pode conferir no “Scriptorium” minhas modestas contribuições, as páginas que fiz sobre dois de meus escritores favoritos: Raymond Queneau e Georges Perec.

No meio da balbúrdia de bobagens que é a Web, saites onde informação confiável é filtrada e ordenada são uma verdadeira bênção. The Modern Word pode não ser o maior, o mais variado ou o mais erudito dos saites literários, mas é um exemplo de como é possível encontrar, mesmo na Biblioteca de Babel, um belo livro que se lê com prazer até o fim, ou o infinito.

0476) A régua de cada um (28.9.2004)








Sou um consumidor voraz de cultura-de-massas (leia-se: histórias em quadrinhos, filmes, TV, pocket-books). Tenho críticas a fazer a esse tipo de produção, mas também tenho numerosos elogios. E procuro criticar dentro dos pontos de referência da própria cultura-de-massas. Se leio um livro policial mal escrito, eu não digo: “Fulano não escreve tão bem quando Henry James ou Proust”. Digo: “Fulano não escreve tão bem quanto Raymond Chandler.” Para criticar a indústria cultural não é preciso recorrer a Shakespeare ou a Beethoven. Quem faz isso é o pessoal erudito e preconceituoso, que tem medo de se contaminar lendo ou ouvindo essas obras bárbaras, e, como não tem uma visão geral daquilo que está criticando, só consegue criticá-lo utilizando parâmetros que não têm nada a ver. A literatura de cordel, por exemplo, está cheia de folhetos medíocres, mas de nada adianta dizer que são medíocres comparados aos versos de João Cabral; se são medíocres é porque não alcançam o nível de um Delarme Monteiro ou de um Manuel Camilo.

Não acredito que exista em Arte um critério universal do que é Bom, Belo, ou Importante. Não existe, e ponto final. Temos dezenas de critérios diferentes, que podem ser aplicados tanto a um quadro de Van Gogh quanto a um quadrinho de Ziraldo, e que vão se superpondo, uns somando, outros diminuindo, até a gente poder atribuir um valor relativo a cada obra. Dizer que Van Gogh é melhor do que Ziraldo, ou vice-versa, é bobagem. É como dizer que laranja madura é melhor do que calças jeans. Cada artista pertence a numerosas categorias: época, lugar, estilo, técnica, universo temático, etc. Em cada uma delas, seu trabalho pode ser confrontado com o de diferentes pessoas. Comparar Ziraldo e Van Gogh é meio complicado porque os dois só têm em comum o fato de ambos trabalharem com artes visuais. Já uma comparação entre Ziraldo e Jaguar como cartunistas e quadrinhistas, brasileiros, e da mesma geração, é bem mais sensata. Comparar Ziraldo com Ângelo Agostini, quadrinhista brasileiro de cem anos atrás, já fica um pouquinho mais difícil; e assim por diante.

Será que dá para comparar, por exemplo, a obra de Elino Julião com a de Tom Jobim? São brasileiros, são músicos populares, são contemporâneos um do outro... Mas mesmo assim tem algo aí que não me convence. Não são farinha do mesmo saco. Fazem Música Popular Brasileira, mas os departamentos em que trabalham ficam a quilômetros de distância. Dizer que Tom é melhor porque sua música é “mais complexa, mais rica, mais sofisticada” é tão injusto com Elino Julião quanto dizer que este é melhor do que o maestro porque sua música “é mais espontânea, é mais de-raiz, é mais popular”. Músicas diferentes cumprem funções diferentes, e por causa disto públicos diferentes as procuram por motivos diferentes – ou um mesmo público (eu, por exemplo) procura cada um em diferentes momentos. Difícil medir ambos por uma régua só.

0475) O Inseto e a Morena (26.9.2004)




Philip K. Dick (que uma escritora norte-americana chamou “o nosso Jorge Luís Borges”) dedicou boa parte de sua obra a discutir uma questão básica: “O que é humano? O que nos faz humanos? Como distinguir um ser humano de uma máquina?” 

Este último problema gerou livros como Blade Runner, Caçador de Andróides. Dick, que era um intelectual por conta própria, lia extensivamente obras de filosofia, religião e ciência, tentando encontrar um caminho nesse labirinto de conceitos. Seus livros de ficção científica são comentários dessa luta interior que acabou por matá-lo de um derrame aos 54 anos. 

Numa série de ensaios reunidos após sua morte no livro The Dark-Haired Girl (Willimantic: Mark V. Ziesing, 1988), Dick sugere duas imagens (que se repetem ao longo de seus livros) para descrever o Humano e o Não-Humano.

Para ele, Não-Humano é quem é incapaz de compartilhar emoções com um humano. Uma pessoa sem empatia ou sentimentos é igual a um robô, uma máquina. Criaturas assim eram para PKD uma fonte de medo, de ameaça. Seres implacáveis, distantes, máquinas de reflexos condicionados. 

Ele chama a essas criaturas “The Mantis”, o Louva-A-Deus, o inseto sem emoções que agarra e devora os que lhe surgem pela frente. Em seus livros, essas criaturas são os andróides frios e indiferentes; são os agentes das forças de repressão de um país totalitário; são os viciados em drogas. 

Quando você encara um viciado em heroína (dizia Dick) vê que ele tem olhos de inseto. São duas aberturas de vidro fosco, sem calor, sem vida, que olham para você e calculam quanto podem obter vendendo cada peça de roupa que você tem, para comprar droga. Para um viciado, você não existe. Um viciado não tem alma. Não que ele a tenha vendido: mas ele comprou algo que a devorou.

O Humano, para PKD, é A Morena, “the Dark-Haired Girl”. É a figura feminina que encarna o amor, a sensualidade física, a alegria de viver, e a compaixão – no sentido original de “com+passion”, a capacidade de compartilhar emoções e sentimentos alheios. 

Dick projetou essa imagem em muitas das mulheres por quem se apaixonou: Kathy, Jamis, Linda (na juventude), ou Tessa, uma de suas esposas. É uma imagem que ele identifica também nas “Pietàs” da arte cristã: a Virgem que segura ao colo o Cristo retirado da cruz, o princípio feminino eterno que sobrevive à morte do próprio filho. 

Diz Dick: “Cristo pode morrer na cruz, e a raça humana continua; mas se Maria morrer, tudo está acabado.” 

Dick não idealizava gratuitamente as mulheres (ele é especialista, também, em personagens femininas “insetóides”), mas via nessas mulheres especiais, mulheres “de bom coração”, o que a raça humana produziu de melhor.

O mundo fantasmagórico de Dick girava em torno destas figuras. A Coisa com olhos de inseto clicando as mandíbulas e arrastando-se com pernas de metal para nos devorar; e a Morena que (como ele disse de sua ex-esposa Tessa) “era capaz de levar um grilo doente ao veterinário para que o grilo pudesse cantar novamente”.







segunda-feira, 28 de julho de 2008

0474) Retorno imediato (25.9.2004)


Deu na TV há poucos dias. Um cara foi apanhado fazendo uma prova, se não me engano num concurso da Ordem dos Advogados do Brasil, com um ponto eletrônico no ouvido. Alguém de fora do prédio soprava para ele as respostas. Ao ser descoberto, o sujeito engoliu o ponto eletrônico! Até agora não sei o que aconteceu com ele, se fez uma cirurgia para extrair o troço, ou se esperou que a Natureza resolvesse um imprevisto dessas proporções. Para mim, bastaria este “tresloucado gesto” para provar que o sujeito não regula bem, mas tem mais. Interrogado pelas autoridades, ele confessou que tinha pago 15 mil reais pelo golpe, e que depois da prova pagaria mais quinze.

Hospício nele, né, pessoal? Eu posso encher laudas de sugestões sobre maneiras melhores de gastar 30 mil, em vez de engolindo engenhocas eletrônicas. Um exemplo: separar 5 mil para as despesas do mês, e passar seis meses estudando para a tal prova, em tempo integral (com folgas para ir à praia, namorar, tomar cerveja). Com uma vantagem adicional: depois de passar na prova o conhecimento adquirido continuaria intacto. Pelo plano do nosso trambiqueiro trapalhão, ele pagaria 30 mil pelo uso do “gadget” durante algumas horas, e depois de passar na prova retornaria à estaca zero, ou seja, continuaria analfabeto em ciências jurídicas (o que ele evidentemente é). Parece o personagem de Tom Cruise em De Olhos Fechados, achando que não ia ser flagrado como penetra numa festona como aquela.

Há duas lições neste episódio. Lição 1: os jovens de hoje não sabem pensar a longo prazo, estão sendo criados numa cultura da ação rápida e do retorno imediato. Estudar seis meses? Para quê, se eu posso armar um trambique que vai me dar o mesmo resultado e só vai me ocupar durante seis horas? O mundo é rápido, a vida é curta. Um cara de vinte e poucos anos não pode se dar o luxo de passar seis meses estudando. Quando eu tinha dezoito anos a moda era a tal da “leitura dinâmica” ou “leitura diagonal”, que possibilitava você ler um livro de 300 páginas em uma hora. Depois vieram os tais dos “cursos intensivos”, tipo o saudoso “Artigo 99”, em que você estudava um ano e cumpria os três anos do Segundo Grau. E assim por diante.

Eu chamo a isto a solução “Professor Pardal”. Professor Pardal tinha uma pílula para tudo: pílula para aprender chinês, pílula para jogar basquete, pílula para conquistar garotas. Para qualquer habilidade ou talento em que alguém estivesse interessado, havia uma pílula instantânea que fornecia exatamente aquilo. É o sonho dourado da cultura baseada na indústria, na publicidade e na competitividade. O sujeito não entende bulufas de Direito, mas logo aparece alguém que lhe oferece a Pílula Jurídica: você paga 30 mil, engole ela, e vira Rui Barbosa por uma manhã.

E tem a Lição 2: como diz uma antiga lei da Física Aplicada, um otário e seu dinheiro são forças que se repelem. Pense num jeito fácil de arrancar 30 mil dum camarada rico e burro!

0473) “Clube da Luta” (24.9.2004)



No filme Clube da Luta um jovem executivo (Edward Norton) vive como um zumbi, comprando roupas de griffe e mobília da moda, e investigando acidentes de automóvel para avaliar se vale a pena fazer um “recall” (tirar o carro do mercado). Ele freqüenta grupos de ajuda para pacientes de câncer somente para abraçar desconhecidos e chorar em seu ombro. Sua vida se resume a isso, até o dia em que ele encontra um sujeito meio maluco (Brad Pitt) e juntos os dois fundam um clube-da-luta, um lugar onde homens se reúnem para brigar de socos, quebrar a cara um do outro, e, assim, sentirem que são homens de verdade, e não apenas peões no jogo burocrático das grandes corporações. O filme é de uma improbabilidade generalizada: o roteiro é cheio de buracos, os maus-tratos físicos parecem não deixar fraturas nem cicatrizes, mas é um delírio talentoso. Incomoda, é questionável, mas vale a pena ver.

O tempo todo me lembrei um livro escrito por uma mulher. Em A Vida Íntima de uma Esquizofrênica – Operadores e Coisas (Imago, 1972), Barbara O´Brien conta a história arrepiante de sua própria crise esquizóide. Ela trabalhou numa corporação onde os funcionários eram capazes de qualquer sacanagem para obter uma promoção ou para prejudicar um colega. Quem já trabalhou em repartição pública ou nessas “empresas modernas e competitivas” de hoje sabe do que estou falando. Um dia (o livro é de 1960) ela acordou com três desconhecidos no seu quarto: um garoto, um homem idoso, e um ser sobrenatural. Os três se apresentaram como seus Operadores, ou seja, eram eles quem manipulavam a mente dela. Como ela estava com problemas, eles, a contragosto, decidiram tornar-se visíveis e manipulá-la diretamente. Desse dia em diante, as vozes dos Operadores não pararam mais de dar-lhe instruções.

Se nunca leu uma história de terror, meu camarada, leia esta, até porque não é ficção: os hospícios estão cheios de gente que vive nela. Não descreverei a vida de pesadelo que Barbara O´Brien viveu nos anos seguintes, nem a maneira espantosa como se auto-curou sem ninguém saber. O livro dela é um clássico. Mas observei que Clube da Luta tem uma estrutura parecida. Um sujeito vive no interior de uma empresa baseada na competição interna, na hierarquia, no cinismo, no consumismo, na violência psicológica gratuita. Para fugir dali, funda um grupo de marginais que se espancam mutuamente para se sentirem mais humanos. Logo-logo o clube vira uma entidade paramilitar de skinheads parecidíssima com a própria empresa onde o cara trabalhava. Predatória, egoísta, visando ao lucro, desprezando o cliente e o público em geral. A ideologia do “destruir para consumir” chega rapidinho ao “destruir por destruir”. O “Projeto Destruição” do filme é uma versão adolescente, esquizóide, tresandando a testosterona mal absorvida, do pesadelo yuppie dos EUA de hoje. Um país esquizofrênico e agressivo; só não sei se, como Barbara O´Brien, conseguirá se curar sozinho.

0472) A bênção da solidão (23.9.2004)




(ilustração de Banksy: http://www.banksy.co.uk/)

Li há alguns dias a entrevista de um escritor afegão, Atiq Rahimi, que mora em Paris. Perguntaram-lhe se ele gostaria de voltar a viver em seu país e ele respondeu: 

“Não, porque lá não existem cafés abertos durante a madrugada, onde você possa sentar sozinho, ficar tomando café e escrevendo. Em países assim, não se tem direito à solidão, porque a vida em família e a vida social nos obrigam a estar o tempo todo em contato com outras pessoas.”

Senti um imenso alívio lendo isto, porque às vezes penso que sou o único ser humano que consegue ficar sozinho sem cair em depressão. Aqui na Zona Sul do Rio, para dar só um exemplo, a maioria das pessoas só existe em grupos, só existe em público, só existe sob a massacrante luz dos holofotes da atenção alheia. 

Conheço pessoas incapazes de irem sozinhas a um restaurante, a um cinema. Só andam com uma “entourage”. Deixadas a sós, não saberiam o que fazer, porque não há ninguém olhando. A solidão, para elas, é uma maldição pior do que a morte, porque a morte tem o atenuante da inconsciência. Um morto não sabe que morreu, mas um camarada desses, sozinho, fica com medo de estar morto.

Vi muitos anos atrás um filme de guerra tcheco ou iugoslavo em que centenas de prisioneiros eram amontoados num imenso galpão, um vasto espaço único onde aqueles homens todos dormiam amontoados em camas ou colchões colocados um ao lado do outro. Era um vozerio constante, uma agitação interminável; imaginem um espaço do tamanho de um hangar, tão superlotado quanto um porão do Carandiru. 

Pois um dos prisioneiros não agüentou aquilo, foi até o ângulo formado por duas paredes, esticou um cordão entre dois pregos, e pendurou ali um pedaço de pano. Por trás desse arremedo de cortina ele se sentava todos os dias. Para que? Para delimitar um espaço onde ele pudesse ter a ilusão de estar só.

Eu não sou um desses misantropos a quem a companhia humana incomoda. Pelo contraríssimo! Meu ambiente preferido é mesa-de-bar. Mas existem momentos em que a gente precisa estar sozinho, sem gente por perto, sem TV, sem música tocando, sem nem sequer a voz miudinha de um livro a nos dizer alguma coisa. 

Sentar num terraço e olhar para um pedaço de muro. Ou caminhar de madrugada, com as mãos nos bolsos, pela cidade-fantasma adormecida. O que resta de nós, quando ninguém nos vê? Resta aquilo que somos depois de todas as fatorações, depois que eliminamos tudo que é reflexo da presença alheia em nós.

É por isso que o mundo da TV ou do show-business está cheio de gente que tem crise existencial e entra para a Seita do Lótus Iridescente, ou coisa parecida, só para ter uma desculpa (diante de si mesmos) para se trancarem num quarto meia hora por dia, sem falar com ninguém, sem ver TV, sem escutar o walkman. “Estou descobrindo meu verdadeiro Eu!”, bradam elas, felizes. Eu desejo bom Nirvana a todos, aqui da minha janela, olhando a hera avançar pelo muro.





0471) Corpo fechado (22.9.2004)



O filme de M. Nigh Shyamalan, Corpo Fechado (Unbreakable) mostra Bruce Willis no papel de David Dunn, um sujeito aparentemente invulnerável. Dunn é o único sobrevivente de um acidente de trem que mata centenas de pessoas. Ele não apenas sobrevive, mas escapa sem um arranhão sequer. Preocupado com isto, ele examina seu passado e percebe que jamais perdeu um só dia de trabalho por causa de doença; sua esposa não se lembra de tê-lo visto doente jamais, e o próprio namoro dos dois começou a partir de um acidente de carro em que se envolveram, e do qual David, pra variar, escapou ileso. Logo aparece um tal de Elijah Price (Samuel L. Jackson) com uma teoria mirabolante mas (é um filme) inevitável. David é um herói. Um sujeito superior, com poderes maiores do que os dos humanos normais, e sua missão na Terra é proteger os outros.

O filme tem desdobramentos que não caberia analisar nesta página, mas o tema do “corpo fechado” é mostrado aqui de maneira quase realista. O filho de David “compra” sem pestanejar a versão de que o pai é um herói, e uma das melhores cenas do filme é aquela em que o garoto aponta um revólver para o pai (a quem idolatra), disposto a enchê-lo de tiros e provar, assim, que ele é invulnerável. David nasce invulnerável, mas o “corpo fechado”, na maioria das culturas, é conseqüência de um ritual. Como não lembrar a cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol em que o cangaceiro murmura uma prece que irá fechar seu corpo contra os inimigos: “Eu, José, com o sangue de Cristo serei batizado... eu, José, com o leite da Virgem Maria serei borrifado...”

Ter um corpo fechado de fora para dentro (inacessível às armas dos inimigos) tem às vezes como contrapartida ter o corpo fechado de dentro para fora, ou seja, um corpo que não pode ter contato vital com o mundo exterior. Em muitas culturas, o homem cujo corpo torna-se invulnerável é proibido de ter relações sexuais, ou, caso as tenha, não consegue gerar filhos. Em torno dele há uma espécie de película protetora que a vida e a morte não conseguem romper. O contato com o mundo sobrenatural exige muitas vezes o fechamento do corpo (daí o voto de celibato, tão comum entre as religiões). Profetas, pitonisas e clarividentes também podem ter seus poderes enfraquecidos ou anulados se se dedicarem ao sexo.

Há um curioso contraponto entre os papéis de Bruce Willis neste filme e em O Sexto Sentido, do mesmo diretor. Ali, Willis parece um homem comum, inadvertido do fato de que é um ser sobrenatural, diferente de todos os outros. É curioso também perceber que na série Duro de Matar Willis faz o protótipo do herói que, mesmo acabando o filme todo retalhado, machucado, queimado, é claramente invulnerável, porque sabemos que ali, sim, trata-se de um filme onde é proibido ao herói ser derrotado. Pode-se dizer que o filme de Shyamalan é uma tentativa de teorizar o Bruce Willis de Duro de Matar.

domingo, 27 de julho de 2008

0470) Shell Scott (21.9.2004)



Numa entrevista recente, o jornalista e escritor Nelson Motta, que acaba de lançar um romance policial, diz: “Quando comecei a me interessar por romances policiais, comprava livros estrelados por um certo Shell Scott, provavelmente escritos por um brasileiro. Esse tipo de literatura é gibi sem desenhos. Estou tentando devolver ao mundo a alegria que Shell Scott me deu.” Grande Nelson Motta! Morro de inveja, porque compartilhei desta alegria, e não devolvi nada ainda.

Shell Scott era leitura obrigatória lá em casa entre 1960 e 1965, quando as Edições de Ouro lançaram uns 20 ou 30 livros seus. E não eram escritos por um brasileiro. Richard Prather, o autor, era um californiano (nascido em 1921) que depois de servir na marinha mercante estreou na literatura em 1950 com The Case of the Vanishing Corpse. Seus livros com o detetive Shell Scott vendiam uma média de um milhão de exemplares nos anos 50. Na década de 1970 ele moveu um processo contra seus editores, por causa de royalties, abandonou a literatura e foi plantar abacates.

Shell Scott é um detetive com 1,90 de altura, bronzeado, com cabelo louro-quase-branco cortado à escovinha. Suas aventuras são uma girândola de situações improváveis e engraçadas, onde ele divide seu tempo comendo belas mulheres e perseguido bandidos. São uma caricatura bem humorada dos policiais “noir” de Dashiell Hammett ou Mickey Spillane. Prather trouxe para a fórmula tradicional do detetive “noir” doses enormes de humor e malícia (Shere Hite, do Relatório Hite, posou para a capa de um dos seus livros quando era modelo). A Loura no Divã Negro acontece num acampamento nudista, onde Scott passa por uma série de saias-justas (se bem me exprimo) ao circular entre todas aquelas beldades; no fim do livro, ele foge num balão e aterrissa, nu, num prédio no centro de Los Angeles. Em Ela tinha aquilo ele descobre que há uma fortuna escondida no ataúde de um mafioso que vai ser sepultado, toma o volante do carro fúnebre, e dá início a uma perseguição onde dezenas de carros “seguem o enterro” no meio do tiroteio. Em A Glamurosa Dra. Lyn , um retrato imensamente realista (acho eu) da Babel de micro-religiões que é a Califórnia, Scott se disfarça de Mestre do Povo da Lua para se infiltrar nos rituais de uma Seita mística; o desfecho é de um surrealismo digno de Terry Gillian ou dos irmãos Coen.

Os livros de Shell Scott são o equivalente literário a certas comédias policiais do cinema de hoje, estreladas por Steve Martin, Bill Murray ou Eddie Murphy. A violência (tiros, socos, perseguições) e o sexo (que é constante) são diluídos pelo humor. Estou dizendo isto tudo para tentar ampliar a ótima definição de Nelson Motta: “gibi sem desenhos”. Shell Scott pertence menos à literatura do que à tradição da comédia amalucada, que floresceu no teatro, no cinema, nos quadrinhos. Quem quiser julgá-lo comparando-o com Hemingway vai dar com a cara na porta.

0469) Precisa-se de chapeados (19.9.2004)



Quando eu era pequeno, no fim das manhãs de sábado ficava à janela, na rua Miguel Couto, esperando minha mãe chegar da feira. 

E lá vinha ela, a bolsa ao ombro, uma sacola de verduras e legumes na mão. Alguns passos atrás, vinha o chapeado, trazendo na cabeça um balaio que oscilava para cima e para baixo a cada passo. 

Quando a feira vinha muito pesada ele andava mais ligeirinho, as pernas meio flexionadas, a espinha reta, acelerando ao chegar perto de casa, como se dissesse: “Tá no finzinho... Tá já chegando...”

Do outro lado da rua, o dia inteiro, eu via os chapeados que descarregavam algodão no armazém de Araújo Rique. Eram negros imensos, com tórax de barril e cada rebolo de braço maior que o do Superman. 

Almoçavam sentados no meio-fio ou nos fardos de algodão, com o prato na mão esquerda e uma colher na direita; um prato daqueles teria me alimentado por uma semana. 

Reencontrei-os anos depois quando morei na Padre Ibiapina, e eles passavam o dia carregando e descarregando o açúcar de Artur Freire.

Os chapeados da feira tinham um detalhe que me fascinava: era uma meia bola de futebol, cortada, colocada sobre a cabeça como se fosse uma touca, para apoiar a rodilha. Eu admirava sua força física, admirava o profissionalismo que os fazia seguir a patroa feira-acima-feira-abaixo, sem reclamar. 

Quando chegavam em casa, ele arriava o balaio, sentava no batente que separava a cozinha do quintal, abanava-se, arquejante. Minha mãe servia água, servia um almoço, pagava, conversava, comentava a feira, o custo de vida. Ele almoçava e partia, balaio vazio às costas, para faturar mais um.

É deles que me lembro quando passo hoje diante das academias modernas. Vejo aqueles sujeitos rodeados de “equipamentos atléticos de última geração”, esfalfando-se pra perder barriga e ganhar músculos. 

Eu nunca me preocupei com músculos. Faço minha caminhadazinha periódica pensando em como estarão meus pulmões e meu coração daqui a 30 anos. O pessoal moderno quer ter físico de chapeado, quer o rebolo de braço, quer “o peitoral definido”, como dizem os canais de ginástica na TV a cabo, mas o que me chama a atenção é o absoluto desaproveitamento de tanto esforço físico. 

Eles correm horas seguidas em esteiras que não saem do canto. Passam manhãs puxando pra cima e pra baixo um peso enorme que “não inflói nem contribói”. Todo aquele imenso sacrifício serve apenas para torná-los bonitões, parrudos, “He-Men”.

Imagine só se a gente conseguisse convencer esse pessoal a usar de maneira mais produtiva tanta dedicação, tanto estoicismo. 

Carregando balaios de feira. Assentando tijolo em prédio. Descarregando contêineres em Cabedelo. Arrastando-cobra-pros-pés com uma enxada em plantações rurais. Limpando mato. Demolindo prédios condenados. 

Todos lucraríamos, porque eles ficariam atletões do mesmo jeito (com a vantagem adicional de pegar um bronze ao meio-dia), e o motor do Brasil talvez conseguisse pegar, mesmo no tranco.





0468) Coelho Neto (18.9.2004)



Toda semana, quando penso em preencher esta coluna, sofro um calafrio de pânico: “Não dá, não vai dar, não vou conseguir.” Tenho conseguido, em parte com a ajuda de Coelho Neto. Se Coelho Neto conseguia, por que não eu? Este respeitável cronista já foi considerado O Maior Escritor Brasileiro, como tantos outros que hoje empoeiram no arquivo-morto da Literatura. Era um dos autores favoritos de meu pai, que tinha em suas estantes uma longa fileira de títulos seus, editados por Lello & Irmão, de Lisboa. As crônicas de Coelho Neto abordavam muitas vezes assuntos, como a política de 1900, totalmente opacos para um leitor de 14 anos, mas o grande lance era o seu vocabulário, aparentemente inesgotável. Ainda hoje lembro de palavras suas (“imarcessível”, “sotopostos”) que não reencontrei em nenhum outro autor.

Suas crônicas e pequenas histórias estão reunidas em livros como Às Quintas, Velhos e Novos, Lanterna Mágica, Água de Juventa, e foram o meu primeiro contato com esta curiosa atividade humana que é escrever todos os dias. Logo em seguida tomei conhecimento da obra de Humberto de Campos, outro cronista inesgotável, contemporâneo de Coelho Neto (e maranhense, como ele). Não posso deixar de admirar a quantidade de texto que esses caras produziram na era do papel almaço, da pena e do tinteiro. Semanas atrás, numa exposição no Banco Santos, em São Paulo, vi um manuscrito original de Coelho Neto. Era a mesma letra miudinha, desenhadinha, que eu tinha visto na infância, no fac-símile de uma página sua na Enciclopédia Delta-Larousse. Além de escrever caudalosamente, o cara ainda o fazia com uma letra caligráfica, que nunca se alterava.

Seus romances realistas (Sertão, Inverno em Flor, Banzo, Miragem, O Rajá do Pendjab) nunca me interessaram muito, e não creio ter lido nenhum deles até o fim. Guardo deles uma colagem de fazendas no interior, pessoas tuberculosas, escravos sofredores, patriarcas despóticos, casamentos sombrios. Prefiro seus romances fantásticos, como Imortalidade, uma lenda medieval sobre o elixir da vida eterna, e Esfinge, uma curiosa fábula alquímico-esotérica sobre um casal de gêmeos que sofre um acidente e consegue sobreviver com a cabeça da moça sendo transplantada para o corpo do rapaz.

Seu melhor livro, dos que conheço, é A Conquista, crônica da juventude boêmia do Rio na década de 1880, durante a campanha abolicionista. É um “roman à clef”, com personagens históricos que aparecem sob seu verdadeiro nome (como José do Patrocínio) ou sob nomes supostos: Anselmo Ribas e Ruy Vaz (alter-egos do próprio Coelho Neto), Paulo Neiva (Paula Nei), Otávio Bivar (Olavo Bilac), etc. Já pensei em adaptá-lo para o cinema, transpondo a ação para a década de 1980, durante a campanha das “Diretas Já”, e mantendo seus divertidos episódios de poetas e jornalistas sempre na pindaíba, fazendo versos, namorando, pedindo dinheiro emprestado, e vivendo um momento histórico que não se repete.

sábado, 26 de julho de 2008

0467) Quero ver o espírito olímpico (17.9.2004)


(Cameron Clapp)

O leitor há de ler este título e estranhar: “Oi, lá vem ele de novo com Olimpíadas! Vire o disco, cidadão! A Olímpíada já acabou!” Ledo engano, meu camarada. Os verdadeiros Jogos Olímpicos começam hoje, dia 17 de setembro, em Atenas, reunindo 4 mil atletas de 144 países para disputar 19 modalidades esportivas. Você vai ver muito pouca coisa na imprensa, mas pasme: há coisas que acontecem de verdade, pertencem ao mundo real, e nunca aparecem no jornal ou na TV! Pois bem: é hoje a abertura dos “Jogos Para-Olímpicos” de Atenas, os jogos para pessoas que portam algum tipo de deficiência. Basquete em cadeira de rodas, atletismo para deficientes visuais, natação para amputados, e assim por diante. Na organização e logística dos Jogos trabalham 35 mil indivíduos, sendo 15 mil deles voluntários.

Numa nota recente no blog “Boing Boing” (http://www.boingboing.net/), o jornalista britânico Stuart Hughes (BBC) registrava o fato de que nenhuma rede de TV dos EUA iria cobrir os Jogos Para-Olímpicos de Atenas. Isto apesar dos 200 milhões de espectadores (e cerca de 60-70 milhões de dólares de lucro) que a NBC teve cobrindo os Jogos Olímpicos recentemente encerrados. A nota do “Boing Boing” era ilustrada com a impressionante foto de Cameron Clapp disputando uma prova de atletismo, com duas pernas artificiais e sem o braço direito. Clapp, um garoto norte-americano de 18 anos, foi mutilado por um trem em setembro de 2001, mas recuperou-se e, com a ajuda de próteses mecânicas, tem participado de vários eventos esportivos. (Vejam as fotos e a história em: http://www.cameronclapp.com/home.asp) .

Por que motivo Jogos Para-Olímpicos não despertam o mesmo interesse que os outros? Mistério. As Olimpíadas nos fascinam por mostrar a nossa possibilidade de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de conseguir o que nunca foi conseguido antes. São um espetáculo de afirmação das possibilidades infinitas do corpo e da mente. Ora... então, meus camaradas, por que não democratizar essa admiração? Está uma coisa muito parecida com a democracia ateniense, onde todo mundo era muito livre, todo mundo era artista, todo mundo era filósofo... menos os escravos, que davam duro para sustentar aquele luxo todo.

A verdade é que as Olimpíadas “normais” nos mostram o lado bonito do corpo, e os Jogos Para-Olímpicos nos mostram os dois lados: a força e a fragilidade, a beleza e a feiura, a glória e a tragédia. É um tema pesado demais, e a indústria cultural talvez não esteja preparada para lidar com isto. Melhor fazer de conta que todo mundo é igual, que todo mundo é perfeito, que desgraças não acontecem e não precisam ser enfrentadas. Hollywood até que tem uma tradição de endeusar deficientes mentais (Forrest Gump, I am Sam, Rain Man...) mas a TV americana não quer mexer nessa área sensível: os deficientes físicos. Até mesmo entre os gregos, o único deus coxo foi arremessado para longe do Olimpo e trancafiado num subterrâneo.

0466) O plágio publicitário (16.9.2004)



(do saite JoeLaPompe)


Certas idéias são tão geniais que seria um crime não plagiá-las. Ainda mais num ambiente competitivo quanto o da publicidade, onde boas idéias não bastam, é preciso ter idéias geniais de manhã, de tarde e de noite, senão o cara perde o emprego. E é numa dessas que os Departamentos de Criação deixam de ser uma indústria (onde as coisas são criadas) para virar um comércio (onde pega-se o que já existe, e passa-se adiante). Folhear revistas e surfar na Internet acaba sendo uma tábua de salvação.

O saite francês Joelapompe (http://www.joelapompe.net/) faz um apanhado desses casos em que um publicitário pede uma idéia emprestada e esquece de devolver. São páginas e mais páginas de exemplos muito esclarecedores sobre várias coisas. Primeira: a imensa criatividade desse pessoal; é uma idéia bem-bolada atrás da outra. Segunda: a imensa cara de pau dos mesmos. Terceira: a imensa irrelevância da gente levar essas coisas muito a sério, uma vez que (o saite mostra) há idéias que recebem prêmio num Festival mesmo sendo uma “chupação” descarada de uma idéia já premiada no mesmo Festival. Ao que parece, lá na selva deles vale tudo.

Tenho uma teoria. Se você pega uma idéia alheia, deve retrabalhar essa idéia a tal ponto que o autor da idéia original tenha dificuldade em reconhecer a sua; ou então seja forçado a admitir que a idéia copiada por você é muito superior à dele. É o que acontece, por exemplo, na página 6 do saite. O “ping” é um anúncio da Toyota (de uma agência brasileira) mostrando um hipopótamo rio abaixo, seguido pelo carro. O “pong” é um anúncio do Land Rover, com a mesma idéia de mostrar o carro “navegando” rio abaixo feito um hipopótamo. Aqui, no entanto, vemos dois hipopótamos meio submersos, com as orelhas despontando dos lados da cabeça; e ao fundo, como se fosse um terceiro animal, o jipe, com os retrovisores dos dois lados, como orelhas. A “rima” visual, inexistente no primeiro anúncio, faz com que a cópia me pareça bem melhor que o original.

A verdade, contudo, é que não se trata de mau-caratismo ou preguiça. É que o meio publicitário é um dos mais propícios à propagação de memes (ver “Os memes”, 23.5.2003). Os memes são idéias que pulam de mente em mente, e que praticamente forçam os seus hospedeiros a passá-las adiante. Quando vemos três cartazes de filmes usando a famosa imagem do “E.T.” de Spielberg (a bicicleta voadora passando diante de uma enorme lua cheia) temos que admitir que o poder de uma imagem se sobrepõe a qualquer tipo de escrúpulo. Certas idéias são tão fortes que se apossam de nossa mente e não a deixam em paz enquanto não as passarmos adiante. Certas imagens nos impressionam a tal ponto que parecem ter se tornado parte de nós, e quando as reproduzimos é como se as tivéssemos inventado naquele instante. A cultura-de-massas substitui a cultura clássica. E vive da proliferação de memes coletivos, onde o conceito de Autor é substituído pelo de Transmissor.

0465) I see dead people (15.9.2004)

(foto do saite Haunted When It Rains)

Um dos meus filmes de terror favoritos, em tempos recentes, foi Os outros, de Alejandro Amenabar, aquele em que Nicole Kidman mora com os filhos numa mansão sombria lá no fim do mundo, cercada por um misterioso grupo de criados. O leitor há de lembrar uma cena em que Kidman descobre na casa um velho álbum de fotos mostrando pessoas de olhos fechados, estiradas em suas camas. A criada explica que ali naquela região era costume fotografar assim as pessoas mortas, antes de enterrá-las; uma espécie de última recordação.

Este detalhe me impressionou, porque existe aqui no Nordeste uma tradição parecida. Lembro de ter visto, quando era pequeno, várias dessas fotos de defuntos. Vi outras depois, em livros ou em documentários de cinema que reconstituem esses costumes. Algumas fotos mostram o defunto já no caixão, colocado de pé, apoiado à fachada da casa. Desde menino estas fotos me produziam um imenso medo, pelo modo palpável como a morte se tornava presente. Nunca tive muito medo de bobagens como vampiros, frankensteins ou lobisomens; mas ainda hoje a visão de um defunto amortalhado dos pés à cabeça me provoca um certo incômodo emocional.

Este incômodo, no entanto, não é forte o suficiente para me fazer afastar os olhos quando essas coisas surgem na minha frente. (É como aquela frase de Zeca Pagodinho: “O cigarro e a bebida são os maiores inimigos do homem, mas o homem que foge de seus inimigos é um covarde!”) Foi, portanto, com um misto de horror e fascinação que, após clicar um link pouco elucidativo, fui parar no saite “The History Broker”, com reproduções de daguerreótipos do século 19, o qual dedica páginas especiais a fotos de pessoas mortas. (Para quem tiver coragem, o endereço é: (http://www.rev.net/~hmcmanus/post/pm.htm).

É aquilo que Drummond chamava “um álbum de fotografias intoleráveis”. Não as descreverei; não porque sejam repulsivas ou aterrorizantes, mas porque são para ser vistas. São profundamente humanas, e revelam sentimentos que conseguimos reconstituir, por cima desse abismo todo de tempo e de espaço. A fotografia, então em vias de descobrimento, compensava o atraso da Medicina. As pessoas morriam muitas vezes de uma gripe, de uma febre, de uma comida estragada. Crianças, principalmente, tinham uma mortalidade muito alta. A invenção da fotografia parecia atenuar de algum modo a dor da perda.

Por outro lado, sabemos que entre alguns povos primitivos as pessoas não gostam de ser fotografadas, pois acham que a fotografia lhes captura a alma. Esse mesmo pensamento mágico parece estar por trás do costume de fotografar os recém-finados. Não é apenas para “lembrar de como eles eram”, é um pouco para manter sua alma aprisionada ali naquela imagem, evitar que vá embora para sempre. A foto era uma pequena maravilha tecnológica. O álbum era um limbo onde os vivos iam procurar “o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas.”

0464) Nem de menos, nem de mais (14.9.2004)


(livro-objeto de Brian Dettmer)

Duvido que venha um dia a existir um conceito único para definir uma grande obra literária. Os grandes livros são grandes por diferentes razões. Noutro artigo (“Os três tipos de romance”, 24.5.2003) falei que existem romances de idéias, romances de linguagem, e romances de história. São qualidades que às vezes se superpõem, mas mesmo quando isto não acontece, seria injusto negar grandeza a um livro só porque ele não nos satisfaz em uma dessas dimensões. Escrevendo sobre a obra de Flaubert, Michael Dirda avalia os prós e os contras de cada obra do escritor, e acaba concluindo que Um Coração Singelo e Madame Bovary são seus trabalhos mais bem realizados. Deste último, ele elogia “a rapidez e a economia narrativas”, e diz uma frase lapidar: “Se você segurar um exemplar de Madame Bovary e sacudir, não cai nada.”

É o ideal clássico da realização artística: uma obra onde tudo tem função, tudo tem propósito, tudo se justifica. Para mim, obras deste tipo correspondem a uma visão religiosa da realidade. Quando você acredita em Deus, está acreditando num princípio fundamental das coisas, que se relaciona com todas elas. Acreditar na existência de Deus é acreditar na intencionalidade do Universo (estamos aqui com uma finalidade qualquer) e em sua integridade – todas as coisas estão diretamente relacionadas com Deus: cada grão de areia, cada folha de relva.

A esta visão do Universo corresponde a visão idealizada de uma literatura que, no dizer de Jorge Luís Borges, é “um objeto artificial, que não sofre nenhuma parte injustificada”. Note-se que Borges ressalta o caráter artificial de obras assim, porque ele (um agnóstico) vê a Realidade como o contrário disto. A afirmação acima é feita no seu prefácio para La invención de Morel, o romance de ficção científica de Adolfo Bioy Casares. Neste texto (de 1940) Borges critica os chamados romances realistas, ou psicológicos, pelo fato de, tal como a vida real, serem informes, desconjuntados, repletos de elementos gratuitos e sem propósito. Borges, que tinha temperamento classicista, pensa que a literatura poderia eventualmente alçar-se acima deste caos, e realizar o ideal dos grandes clássicos: “Clássico é esse livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos, permitindo interpretações sem fim.”

Que beleza de visão! E que pena. Porque isto, por mais belo que seja, não pode servir como receita universal para a literatura. Basta pensar nas obras que tendem para o Barroco, onde as “partes injustificadas”, as repetições, as frases gratuitas, os episódios desconjuntados, servem ao propósito final da obra. Se sacudirmos um exemplar de Ulisses, do Grande Sertão, do Dom Quixote, páginas e mais páginas irão cair, ou ser levadas pelo vento. O Barroco é excesso, é transbordamento, é um derramamento e uma celebração do intelecto e da energia vital.

0463) A hóstia consagrada (12.9.2004)



Haley Waldman é uma garota de 8 anos que vive no estado de New Jersey, nos EUA. Sua família é católica, e há pouco tempo Haley começou os preparativos para a sua primeira comunhão. Durante o processo, sua mãe avisou a Diocese de Trenton de que a garota iria precisar de uma hóstia especial, que não contivesse trigo, porque sofre de uma doença que não lhe permite absorver sequer a menor quantidade de glúten, contido no trigo. (Chama-se “doença celíaca”, só pode ser tratada com dieta, e o leitor pode achar mais detalhes em: http://www.acelbra.org.br/2004/index.php).

Aí começou o drama. O pessoal da diocese fincou pé: a hóstia tem que ser feita de trigo, não se pode usar uma hóstia de arroz, como a mãe sugeriu. Foi criado um impasse. A mãe recorreu a um padre de uma paróquia vizinha, que concordou em usar a hóstia de arroz, e a comunhão foi realizada. Mas aí o Vaticano recusou-se a validar o sacramento. A mãe ficou mandando cartas aos jornais e às autoridades eclesiásticas. A Igreja manteve-se firme, dizendo que não podia ceder. E a briga continua.

Eu estudei em colégios católicos (as Lurdinas, e o Alfredo Dantas de Professor Loureiro), e até numa universidade católica, mas nunca comunguei até hoje. E me recordo dos terríveis pesadelos e das noites de insônia, quando nos ameaçavam com a comunhão. Digo “ameaçavam” porque para nós a perspectiva de receber Jesus era desse tamanhinho comparada com as catástrofes que podiam acontecer: a hóstia virar sangue, a gente morder a hóstia e ir para o Inferno, e assim por diante. Eu ainda não conhecia a expressão “relação custo-benefício”, mas achei melhor não correr o risco.

Diante desse impasse entre os dogmatismos dietéticos da Medicina e da Igreja, fico pensando que a menina deve estar passando por um purgatório ainda pior do que o meu. Achei de início que a Igreja é quem deveria ceder. A Transubstanciação, pelo que entendo hoje, ocorre como uma conseqüência do ritual, e não acho que Deus, se é tão Onipotente quanto reza a bula, se sinta impedido de receber a alma de uma menina inocente só porque a hóstia é de arroz. Uma das coisas que mais me comoveram em minha educação católica foi quando me disseram que qualquer pessoa, até eu, poderia batizar uma criança doente, tocando-a com o dedo molhado em água comum e proferindo a fórmula do batismo. Isto me pareceu da mesma ordem de grandeza moral do direito jurídico que permite a qualquer cidadão, sem ser formado em Direito, redigir seu próprio pedido de habeas-corpus. Qual o problema, então?

O problema (disse-me um amigo, que é ateu, cínico, realista) é que se liberarem hóstia de arroz (e se liberarem vinho sem álcool para ex-alcoólicos) daqui a pouco tem gente querendo estender esse direito em todas as direções, dispensar a hóstia e o vinho, e comungar usando Cheetos e Coca-Cola. A Igreja não é besta, e sabe muitíssimo bem do que este mundo de hoje é capaz.

0462) O Cinema Subterrâneo (11.9.2004)




O que é um cinéfilo? A resposta mais instintiva é dizer que é um sujeito que aprecia filmes-de-arte. Concordo, mas não é bem isto. Cinéfilo é um sujeito que ama o cinema, o fenômeno cinematográfico em toda sua extensão. 

Se ele é da minha geração pra cima, por exemplo, o amor que tem pelos filmes estende-se à sua lembrança dos cinemas como eram antigamente. 

Os tubos de ferro chumbados ao chão, à frente da janelinha da bilheteria, para ajudar a organizar a fila. 

Os displays de cartazes e fotos, embutidos na parede, protegidos por vidro, iluminados por fluorescentes. 

O som profundo do gongo, anunciando o apagar gradual das luzes e a abertura das cortinas para início da sessão (ritual que hoje, no Rio, se mantém no Cine Odeon-BR). 

O vendedor de balas e chicletes caminhando por entre as filas com sua caixa semicircular pendurada ao pescoço. 

O “pshhh...” coletivo ao aparecer na tela o “urubu” da Condor Films. A lua cheia, redonda, que se transformava no logotipo retangular da PelMex.

O cinéfilo não ama apenas as elucubrações de Bergman ou a grotesqueria de David Lynch: ele ama com fervor fetichista toda a parafernália de objetos, rituais e emoções que cercam o ato de ver um filme. 

Daí, não é de admirar que a polícia parisiense tenha descoberto dias atrás o que a imprensa chamou com bom humor de “o verdadeiro cinema underground”. Num dos incontáveis subterrâneos de Paris, no 16ème “arrondissement”, policiais descobriram uma vasta caverna que aparentemente era usada como sala de exibição de filmes, na área por baixo do Palais de Chaillot (perto da Torre Eiffel).

Os subterrâneos de Paris são vastos. Há um passeio turístico que percorre um trecho bem limitado, onde ficam algumas catacumbas históricas. Alguns saites fornecem visões interessantíssimas sobre este mundo de galerias, esgotos, verdadeiros labirintos de cuja existência a maioria das pessoas nem suspeita. 

Os policiais fizeram a descoberta enquanto patrulhavam um trecho dos mais de 200 km de galerias subterrâneas da capital. Na caverna, dezoito metros abaixo do chão, havia luz elétrica, três linhas telefônicas, circuito fechado de TV, e uma sala de exibição com 400 m2, equipamento completo de projeção, e uma boa quantidade de filmes, que iam de clássicos do “film noir” até títulos recentes. A um canto, uma espécie de bar, com bebidas. 

Ao retornarem três dias depois, com técnicos que iriam descobrir a origem do “gato” elétrico que iluminava o local, descobriram que a luz e os telefones tinham sido cortados, e havia um bilhete no chão: “Não tentem nos encontrar”. 

Nada contra o DVD, o “home theater”, os filmes baixados pela Internet. Mas é tão poético a gente descobrir que na cidade que nos deu Godard e Truffaut existe um grupo de inconformistas que, como os cristãos primitivos, recolhe-se ao fundo das catacumbas para apreciar sua ração diária de fotogramas.






quarta-feira, 23 de julho de 2008

0461) De Odessa a Beslan (10.9.2004)





A imagem de uma mãe carregando nos braços o filho pequeno, morto a tiros, é uma das mais impressionantes da cena do massacre na escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin. Quase cem anos depois (o episódio de Odessa ocorreu em 1905; o filme de Eisenstein é de 1925) a imagem se repete na escola de Beslan, invadida dias atrás por rebeldes separatistas chechenos. É bem verdade que o garoto de Odessa foi fuzilado pelos cossacos do Czar, que atiraram contra a multidão para reprimir um protesto pacífico; e que as crianças de Beslan foram mortas por fanáticos que combatiam o governo e o exército (teoricamente, os fanáticos deveriam corresponder aos marinheiros revoltados do Potemkin). Mas... faz diferença? Quando é o filho da gente que morre com um tiro, faz diferença se a bala veio do Governo ou da Oposição?

O que se passa na cabeça de sujeitos que dizem amar a Deus e explodem aviões cheios de civis inocentes, sujeitos que dizem lutar pela liberdade e massacram minorias étnicas, sujeitos que dizem defender a democracia e bombardeiam sem dó nem piedade cidades inteiras? Tem alguma coisa errada. Eu ainda acho que quem descreveu de maneira mais lúcida o que acontece com esse pessoal foi justamente Karl Marx, que deve dar umas trinta voltas no túmulo todo dia, devido às impropriedades que se cometem em seu nome.

Marx criticava no capitalismo industrial a alienação, o estranhamento, o distanciamento total entre o operário e aquilo que ele produz. Um operário numa linha de montagem se concentra no que está fazendo, e perde de vista o sentido humano daquele trabalho. Lembro de uma historieta que li num manual político anos atrás, sobre um sujeito que trabalhava numa indústria, onde sua função principal era produzir pequenas roldanas de metal, muito fininhas. Ele trabalhou ali durante anos sem saber para que serviam. Um dia, em casa, seu barbeador elétrico pifou, e ele o abriu, para ver se conseguia consertá-lo. E descobriu dentro do barbeador justamente aquelas roldanas que ele fabricava!

Trabalho alienado é todo aquele do qual perdemos o espírito e nos limitamos a seguir instruções ao pé da letra, sem entender, sem perguntar. É todo aquele em que a divisão do trabalho se sofistica a tal ponto que nenhum dos envolvidos tem a visão geral do que está acontecendo: aquilo vira um processo mecânico que se auto-executa às cegas, sem ninguém para corrigir-lhe os rumos quando ele se desvia do objetivo inicial. É muito irônico que hoje o mais grave exemplo de trabalho alienado seja a Guerra Revolucionária – cujas sementes Marx plantou. A Alienação nos revolucionários é o resultado de muitos fatores combinados, entre eles: hierarquização rígida, lavagem cerebral, incapacidade para o diálogo político, facilidade de aquisição de armas, militarização... Os separatistas pensam que estão fazendo uma Revolução. E estão apenas repetindo a escadaria de Odessa.

0460) Burocracia (9.9.2004)



A vida da gente é cheia de enfurecimentos periódicos; é algo como as secas do Nordeste ou as inundações da Índia. De tempos em tempos, lá vem de novo aquele flagelo, tão familiar, estragar nosso humor e nosso dia de trabalho. Um dos que me perseguem com mais insistência é a burocracia. A toda hora estou me deparando com algum bloqueio mental humano relacionado a documentos. Vou dar um exemplo. Ligou para mim um moça de uma gravadora de São Paulo, dizendo que precisava da autorização para uma música minha ser gravada. Anotei os dados (a música, o artista, o disco, a gravadora, o endereço) e mandei a autorização. Dias depois ela volta a ligar: “O senhor esqueceu de reconhecer a firma da autorização.” Expliquei que não tinha esquecido, tinha achado desnecessário. Mas ela fez finca-pé. É necessário, sim, tem que reconhecer, senão como nós vamos provar que a assinatura é sua?

Expliquei que o cartório onde tenho firma reconhecida fica no centro do Rio, e “reconhecer uma firma” para mim significa pegar um ônibus, pegar o metrô, andar dois quarteirões, esperar na fila, fazer o reconhecimento, caminhar dois quarteirões, pegar o metrô, pegar o ônibus. Não dá menos de duas horas. Se eu estivesse sem nada urgente, até faria. Mas naqueles dias eu estava “por aqui” de trabalho atrasado, e não dispunha de duas horas para fazer uma coisa que aos meus olhos era desnecessária. Mas eu ia dar um jeito.

O jeito que eu arranjei foi o seguinte. Eu tenho (virginiano que sou) uma porção de cópias de uma folha onde mandei xerocar frente-e-verso, e autenticar, minha carteira de identidade e meu CPF. Nessa folha estão, portanto, meus principais documentos, onde minha assinatura é claramente legível. Peguei uma dessas cópias, e escrevi a mão, embaixo: “Autorizo a gravação da música tal, pela gravadora tal...” Assinei, e mandei. Dias depois me liga a moça de novo. “O senhor desculpe, mas não é esse documento que nós precisamos. Precisamos é da autorização com firma reconhecida, e a firma não foi reconhecida.”

Para encurtar a novela: eu me recusei a reconhecer a firma, e disse que por mim a música não seria gravada. Pois sabem o que a moça fez? Ela pegou duas fichas de um cartório de São Paulo, mandou para mim pelo Correio, eu assinei as fichas, devolvi pelo Correio, e ela mandou reconhecer nesse tal Cartório a primeira autorização que eu tinha enviado. E essa desespero todo por quê? Era a escritura de uma mansão em Paris, de um prédio na Quinta Avenida? Era o recibo de uma herança de 100 milhões de dólares? Era um desses documentos que, fazem a independência financeira de um falsificador? Não. Era eu autorizando um artista (que é amigo meu) a gravar uma música minha. Olhe... eu não simpatizo com as pessoas que pirateiam discos, que sonegam direitos autorais. Mas é por estas e outras que as gravadoras, como os dinossauros, estão afundadas num pântano, de onde só sairão para os Museus do futuro.

0459) A eternidade dos pássaros (8.9.2004)




(o manuscrito do poema de Keats)

Um dos meus contos preferidos sobre Realidade Virtual (mundos criados em computador) é “In the Upper Room” de Terry Bisson (Playboy, abril 1996), cujo texto completo pode ser obtido em: http://www.freesfonline.de/authors/bisson.html

É a história de um cara que se perde no interior de um catálogo virtual da Victoria´s Secret, a famosa loja de lingerie. Nesse catálogo virtual, o cliente, em vez de folhear uma revista com fotos das mulheres usando aqueles trajes provocantes, “entra” numa mansão e percorre quartos onde encontra simulações de belas modelos trajando coisas mais provocantes ainda. 

Um crítico chamou a atenção para um detalhe que revela o caráter serial, repetitivo, mecânico daquele mundo. Diz o narrador: “I stood beside her at the window watching the robins arrive and depart on the grass. It was the same robin over and over.” (“Fiquei ao lado dela, observando os tordos chegarem e partirem do gramado. Era o mesmo tordo, que ia e voltava, ia e voltava.”) 

Esse passarinho, sempre o mesmo, revela a natureza artificial daquela paisagem; e o escritor destaca isto com sutileza, com o uso de verbos ( “arrive”, “depart”) que usamos normalmente para aviões, não para aves.

Que frio na espinha, que calafrio na alma não sentiríamos se percebêssemos, em nosso mundo real, que certos elementos se repetem em “loop” interminável, como os figurantes de filmes como Cidade das Trevas ou O 13o. andar

As pessoas acostumadas a jogar jogos em CD-Rom (de The Sims a Zoo Tycoon ou a Great Theft Auto) estão acostumadas à presença desses figurantes cibernéticos: pessoas, carros ou animais que estão sempre passando ao fundo, sempre os mesmos, cumprindo as mesmas ações e os mesmos gestos, para nos dar a ilusão de Vida Real.

O que não deixa de me trazer à memória a famosa “Ode to a Nightingale” de John Keats (1819), em que o grande poeta romântico sente-se desprendido da realidade terrena ao escutar o canto de um rouxinol, cuja beleza o liberta por alguns instantes das tristezas da vida e da fragilidade do corpo (Keats morreria de tuberculose dois anos depois, aos 26 anos). 

Ele se sente transportado para um plano fora do espaço e do tempo ao escutar aquela canção que, sem dúvida, é a mesma que os rouxinóis cantam desde que o mundo é mundo. Keats percebeu (embora não nos termos que aqui coloco) que um pássaro não passa de um corpo físico descartável que executa um software musical repetitivo, sempre o mesmo, e que nunca se extingue: “Thou wast not born for death, immortal bird!” 

O pássaro não morre, porque é um figurante virtual em nosso mundo; cada rouxinol de hoje é o mesmo que cantou na Antiguidade remota. O poeta percebeu que era o mesmo rouxinol que ia e voltava, cantando para indivíduos únicos, efêmeros, mortais, conscientes da existência do Tempo, e de que só deixariam na Terra a sua canção. 

O rouxinol de Keats continua cantando, mas me consola pensar que Keats também.









0458) Skull and Bones: a máfia de Bush (7.9.2004)


(a "tumba" que serve de sede à S&B em Yale)

Eu me interesso muito pelas “Teorias da Conspiração”, essas hipóteses mirabolantes segundo as quais o mundo é governado por irmandades ocultas, grupos de indivíduos poderosíssimos e mal-intencionados, que (segundo alguns) foram capazes de afundar o Titanic somente para que um cofre com documentos comprometedores, que vinha no porão de carga, não chegasse às mãos da Justiça dos EUA. Meses atrás vi na TV-a-cabo um documentário sobre uma dessas sociedades secretas: a “Skull and Bones”, que recruta estudantes da Universidade de Yale.

A “Skull and Bones” tem interesse neste momento pelo fato de ter entre seus membros o nosso ilustre George W. Bush, presidente dos EUA, candidato à reeleição. Fiquei surpreso ao ver que Michael Moore, em seu filme Fahrenheit 9/11, não menciona este grupo, que parece ter uma verdadeira rede de membros espalhados em postos-chave dos EUA: no Governo, no mercado financeiro, nos serviços de inteligência como a CIA. Há um livro a respeito, Secrets of the Tomb: Skull and Bones, the Ivy League, and the Hidden Paths of Power, de Alexandra Robbins, que tem um saite em: http://www.secretsofthetomb.com/. E quem quiser informações ainda mais detalhadas pode ir ao saite: http://www.parascope.com/articles/0997/skullbones.htm.

Sociedades secretas costumam forjar vínculos emocionais muito fortes entre seus participantes, através de rituais de iniciação, que são testes de coragem, de capacidade e de caráter a que o neófito é submetido para ser considerado digno de pertencer ao grupo. Existem rituais periódicos de reafirmação e fortalecimento dessa união. Esses indivíduos, que têm origem social e formação ideológica semelhante, adquirem um vínculo implícito de lealdade. A “S&B”, fundada em 1832, tem entre seus membros indivíduos de algumas das famílias mais influentes nos EUA: Whitney, Harriman, Russell, Taft, Stimson, Lovett, Bush.

Não acho que esses sujeitos sejam satanistas, ou neo-nazistas, ou que tenham sofrido lavagem cerebral por parte de espiões alienígenas. Não é nada disso. Sociedades assim captam jovens brilhantes, ambiciosos, de famílias ricas, e criam entre eles uma cumplicidade que lhes será muito útil daí a algumas décadas, quando estiverem todos nos postos mais altos do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas, do mercado de capitais, da diplomacia, da indústria. Uma sociedade assim, na verdade, não manipula seus membros: é, sim, manipulada por eles. São eles que se servem dela, da lealdade tácita que ela gera entre seus participantes, para facilitar o jogo do poder, o tráfico de influências, a troca de favores, a concessão de pistolões, os acordos de interesses. Todos se conhecem (a “S&B” não tem mais do que 600 membros vivos), mesmo que não pessoalmente; e sabem com quem estão lidando. E, aliás, não adianta alguém ir se queixar ao Senador John Kerry. Ele também estudou em Yale, e também é membro da “Skull and Bones”.

terça-feira, 22 de julho de 2008

0457) O alfaiate cortando o pano (5.9.2004)




(Fausto, alfaiate)

Amanhã, dia 6 de setembro, comemora-se o Dia do Alfaiate. Acho uma besteira esses dias comemorativos, mas a profissão de alfaiate sempre me pareceu tão nobre quanto a de Alquimista ou a de Poeta. Tem tudo a ver. 

Quem tem umas belas páginas sobre esse ofício é Osman Lins, filho de alfaiate, em “Um dia que se despede do calendário” (em Evangelho na Taba), onde ele lembra com carinho as horas da infância que passou vendo o pai trabalhar, vendo seus utensílios: a grande mesa com gavetas, a almofada de alfinetes, os tocos de giz colorido, a pesada tesoura com tiras de brim envolvendo os aros do cabo, os manequins, as fitas métricas, as réguas.

Diz Osman: 

“Posso dizer que o vejo ainda, o brim estendido cuidadosamente na mesa, cantando com a boca fechada, traçando, com o auxílio de seus instrumentos, uma geometria cuidadosa e que lembrava certos desenhos dos meus livros escolares: os meridianos, o Zodíaco, as constelações.” 

Como não perceber, nestas cenas vividas com tanta intensidade, uma das fontes do rigor cósmico do autor de Avalovara?

Sou da geração das roupas compradas feitas, mas minha memória também guarda cenas de meu pai me levando a Seu Fausto ou a Seu Murilo (cujo filho Jerre viria a ser meu amigo aos 18 anos) para fazer “a farda nova” ou uma calça para o Natal. 

Lembro o jeito paciente com que eles tomavam medidas, lápis atrás da orelha, e faziam anotações cabalísticas num pedaço de papel; lembro os recortes de papel cobertos de linhas e números; lembro as estrelas de metal das carretilhas, deixando rastros pontilhados no papel ou no pano.

Louis Pauwels, outro escritor filho de alfaiate, diz: 

“Na fronteira da mística pura e da ação social, meu pai, preso à sua mesa de alfaiate mais de quatorze horas por dia – e vivíamos à beira da miséria – conciliava um ardente sindicalismo e uma busca da libertação interior. Nos gestos muito limitados e humildes do seu ofício, introduzira um método de concentração e de purificação do espírito a respeito do qual deixou centenas de páginas.” 

Em outro trecho de O Despertar dos Mágicos, Pauwels relata seu primeiro encontro com um alquimista, e as indicações que este lhe deu sobre a Grande Obra: “Nada além da matéria, apenas o contato com a matéria, o trabalho sobre a matéria, o trabalho com as mãos.” Ele compara a alquimia à jardinagem e à pesca, e a define: “Trabalho de mulher e brincadeira de criança.”

Certos ofícios humanos pressupõem um know-how milenar transmitido pelas gerações, uma tecnologia-do-conhecimento guardada e transmitida por corporações de homens dedicados, meticulosos, tranqüilos. 

O ofício do alfaiate, como o do alquimista ou o do poeta, está entre aqueles exercícios de aperfeiçoamento interno com modestos resultados físicos (um miligrama de ouro, uma sextilha, uma farda do Estadual da Prata...). São (para citar Osman) “os ofícios delicados, cujo sentido não está em produzir muito, e sim em produzir serenamente.”







0456) Estatísticas olímpicas (4.9.2004)



Um humorista disse certa vez que as estatísticas são como os biquínis: o que mostram é interessante, mas o que tentam esconder é mais interessante ainda. Todo cômputo estatístico obedece a critérios escolhidos por quem o organiza. Governos e oposições passam a vida inteira invertendo as estatísticas divulgadas pelos adversários, para mostrar que a situação é outra. E outro humorista disse que um estatístico é um cara para quem um sujeito com a cabeça num forno e os pés num “freezer” está, estatisticamente, em boa situação.

O Australian Bureau of Statistics, órgão do governo australiano, resolveu fazer uma estatística própria do quadro de medalhas olímpicas, que é organizado, como sabemos, em ordem decrescente do número de medalhas de ouro conquistadas. Os australianos estão animados com os Jogos Olímpicos, desde que os sediaram em Sidney-2000, conquistando um ótimo 4o. lugar. Agora, em Atenas, repetiram a colocação. Pois o pessoal do ABS propôs um critério: Que tal se a gente relacionasse o número de medalhas de ouro com o número de habitantes do país? Porque é claro que a China, com mais de um bilhão de pessoas, tem mais chances de produzir medalhistas do que Mônaco ou Andorra.

O saite onde estão estes cálculos tem um endereço quilométrico, que espero saia por inteiro aqui no jornal: http://abs.gov.au/Ausstats/abs@.nsf/57a31759b55dc970ca2568a1002477b6/be9f47591541e29eca256ef40004f25a!OpenDocument . Se não achar e quiser uma cópia, caro leitor, me mande um email. Porque nossos amigos austrais chegaram à conclusão de que o grande vencedor dos Jogos de Atenas não foram os EUA, e sim as Bahamas, que com pouco mais de 300 mil habitantes faturaram um ouro e um bronze. Em segundo lugar vem a Noruega, que com 4 milhões e meio de pessoas ganhou 5 ouros e 1 bronze. Em terceiro aparece (adivinhem!) a Austrália, que com uma população de 20 milhões ganhou este ano 17 ouros, 16 pratas e 16 bronzes.

É um conceito interessante, concorda? Eu acho que tem uma certa lógica, mesmo constatando que por este cálculo o Brasil cai de 18o. para 55o. lugar. O que me consola é ver a queda dos três primeiros colocados no ranking oficial: os EUA despencam de 1o. para 34o., a China de 2o. para 53o. e a Rússia de 3o. para 22o.

Tiro disto duas lições. A primeira é que por mais que uma conquista esportiva seja um valor em si, é sempre útil vê-la no contexto econômico e social da disputa. (Penso nisto sempre que vejo o São Caetano no campeonato brasileiro) A segunda é que a arte da estatística consiste em pegar um quadro de número frios, objetivos, organizados em fileiras e colunas... e observá-lo de todos os ângulos possíveis, até encontrar um que mostre aquilo que queremos ver. Que tal se a gente organizasse o quadro olímpico em função da renda per capita? Ou da quantidade de associações esportivas e atléticas? Ou do total de verbas investidas pelo governo? Quem sabe a gente não melhoraria esse 18o. lugar?