sábado, 12 de abril de 2008

0370) A conexão Campina-Liverpool (27.5.2004)




(Estação Velha de Campina Grande)

Dizem os detratores de Campina Grande que nós, campinagrandenses, somos mentirosos incorrigíveis. É uma calúnia. O que ocorre é que cultivamos o saudável hábito intelectual de ter opiniões próprias a respeito de tudo, o que inclui a criação de versões próprias sobre os fatos.

O mundo visto do alto da Serra da Borborema é meio diferente. Historiadores ortodoxos como Gibbons ou Spengler revisariam muita coisa que escreveram, se ganhassem uma bolsa para trabalhar um ano no campus de Bodocongó.

Uma história que sempre me perseguiu foi a lenda urbana, contada e recontada no Calçadão, no abrigo da Praça da Bandeira, ou nas mesas do Caldo de Peixe, de que durante o “boom” do algodão de Campina Grande, entre as décadas de 1930-1940, Campina e Liverpool eram cidades rivais no comércio algodoeiro, sendo Liverpool o primeiro centro exportador e Campina o segundo.

Isto começou um dia a me deixar com a pulga atrás da orelha. Liverpool, centro exportador de algodão? Onde diabo se plantava tanto algodão na Inglaterra? Todos os rocks e blues que eu conhecia falando em “cotton fields” eram americanos, não ingleses. Tinha alguma coisa de errada nessa história, e não adiantava consultar Gibbons nem Spengler.

Tempos atrás eu estava conversando com Bolívar Vieira, meu antigo companheiro na banda Os Sebomatos. Como bom beatlemaníaco, Bolívar, depois de se formar em Antropologia na UFPb, foi fazer pós-graduação em Liverpool. Interrogado, dissipou minhas dúvidas.

Na verdade, Campina era, sim, um grande centro exportador do algodão do Cariri (algodão forte, de fibra longa, muito valorizado). Esse algodão não saía pela Paraíba, saía pelo porto do Recife, direto para o porto de Liverpool, que era um porto recebedor (e não exportador). De Liverpool era remetido para as indústrias têxteis de Manchester.

O comércio era feito, na verdade, entre o Cariri paraibano (produtor de algodão) e as indústrias de Manchester (produtoras de tecidos), através da cadeia Campina-Recife-Liverpool.

Nos capítulos 5 e 6 do seu livro Guerreiro Togado, Pedro Nunes Filho mostra a origem dessa cadeia comercial:

“Com o recrudescimento da Guerra da Secessão, a produção algodoeira dos Estados Unidos despencou. (...) A Inglaterra foi o único país europeu que se interessou em desenvolver a produção algodoeira no Brasil. O algodão transformou-se num gênero tão indispensável àquele país, como o próprio pão. (...) A Associação de Manchester passou a empenhar-se pela universalização da cultura algodoeira em todos os lugares onde a terra e o clima fossem adequados.”

Liverpool tornou-se o centro alimentador de Manchester após a construção da ferrovia entre as duas cidades em 1830, quando os tecidos representavam mais da metade do valor das exportações britânicas.

A conexão Campina-Liverpool era na verdade uma conexão Cariri-Manchester, que certamente teve profundas repercussões na história do rock britânico, assunto que abordarei em breve.





0369) A importância da Indonésia (26.5.2004)




Conheceram-se num coquetel num espaço cultural. Ela não era bonita nem gostosa, mas tinha um jeito interessante; ele era meio gordo e tinha barba grisalha, mas ela o achou vagamente simpático. Estavam num grupo maior, que se dispersou e ficaram só os dois, prolongando o assunto anterior, sem saber que assunto novo puxar. Ela falou meio por acaso que já tinha ido à Indonésia. Ele se espantou: “É mesmo? Eu também. Passei 15 dias lá. Você gostou?” Ela deu um gole, comentou: “Olha, é quente demais, mas de noite fica ótimo. As pessoas são legais. Taxistas e garçons são muito atenciosos, mas você tem que controlar, se não eles tiram muita liberdade. São muito informais. Gostei da comida, tem uns pratos apimentados que são o máximo. A cidade era linda, principalmente a parte antiga... Os teatros, são muito kitsch, sabia? E os cybercafés são a melhor coisa que há... O que foi? Falei bobagem?” Ele estava de boca aberta. “Não acredito. Você acaba de resumir tintim por tintim um artigo que escrevi descrevendo Jacarta.” Ela riu, meio sem jeito: “Vai ver que eu li teu artigo e não lembrava.” Ele: “Não, eu nunca publiquei. Mas tenho ele impresso, lá em casa. Quer ir dar uma olhada?”

Daqui a trinta anos estarão repetindo para os filhos como se conheceram. Ao contrário do que martela a propaganda, beleza física e apelo sexual não exercem um papel decisivo no deflagrar desses encontros pessoais. Ajudam a botar a bola em jogo, sem dúvida, mas não fazem os gols decisivos. O gol decisivo, muitas vezes, é feito por um aspecto cada vez mais raro: duas pessoas perceberem que pensam sobre as coisas de maneira parecida. Parece até uma contradição dizer isso, porque o que mais se critica em nossa sociedade é a padronização dos gostos, a repetitividade das informações, a ausência de novidade... Mas é justamente este o problema. Cada um de nós sente que a única possibilidade de manter um diálogo é repetir clichês; começa a achar que o único refúgio possível é o lugar-comum, as manchetes do dia, a última moda da mídia. Quanto mais falamos o que realmente achamos das coisas, menos encontramos alguém capaz de acompanhar nossa conversa. Somos ilhas de isolamento unidas por pontes cujo pedágio é o papo-furado.

Não estou dizendo que a saída é ambos gostarem das mesmas coisas – ambos votarem no PT, torcerem pelo Palmeiras, preferirem comida chinesa à japonesa, serem fãs de Charles Aznavour ou dos Paralamas... Não me refiro à uniformidade de gostos, mas a mentes que funcionam de modo parecido. Mentes capazes de olhar para uma coisa e enxergarem essa coisa, intuitivamente, espontaneamente, de maneira parecida. Quando esse flash telepático brilha simultâneo em duas mentes, não passa despercebido. O mundo oscila entre a banalidade geral e a singularidade incomunicável. Quando duas pessoas olham para, sei lá, a Indonésia, e vêem a mesma coisa, isto não passa em branco.

0368) Vai acabar em pizza (25.5.2004)



Imaginemos um país onde a pizza foi proibida. Autoridades sanitárias e policiais se reuniram e chegaram à conclusão de que pizza vicia, faz mal à saúde, incrementa o colesterol, etc. Ademais, as autoridades estão preocupadas com o crescimento irrefreável das pizzarias, envolvidas numa verdadeira guerra pela conquista de novos clientes. Medidas drásticas precisam ser tomadas. E a pizza é colocada fora da lei.

Parece um golpe de morte no comércio de pizza, mas, à medida que passam as semanas e os meses, o Governo começa a perceber uma coisa engraçada. Todo mundo continua comendo pizza. Os fornos das pizzarias trabalham a pleno vapor. Os motoboys da entrega continuam chispando rua-acima-rua-abaixo com suas caixas de papelão fumegantes, atendendo a uma demanda que não só não diminuiu, como não pára de aumentar. As autoridades, preocupadas, coçam a cabeça. Isso não estava nos planos. Imaginavam elas que, uma vez que o Decreto de Proibição da Pizza fosse publicado no “Diário Oficial”, esta enérgica medida iria virar o jogo. Os pizzaiolos de todo o país, amedrontados com uma atitude tão viril da parte das autoridades, abandonariam essa indústria-e-comércio que lhe rende bilhões, vestiriam seus pijaminhas de aposentados, e passariam a se dedicar ao dominó e à pesca de lambari.

Não é o que ocorre. O tráfico de pizza toma conta das cidades. As pizzarias cresceram muito, enricaram. São corporações financiadas por grandes grupos econômicos, e contam inclusive com uma boa representação parlamentar. É impossível fechá-las: iria mexer com interesses poderosos. Por outro lado, a população continua preocupada com o colesterol e tudo o mais. Pede providências. O que faz o Governo? Diz à polícia que prenda os motoboys. Cria-se assim, nesse país imaginário, a situação meio kafkeana da proibição de um gigantesco comércio de pizza que atende a dezenas de milhões de comedores de pizza, e onde os únicos perseguidos são os motoboys que fazem a entrega a domicílio.

Enquanto este absurdo fundamental não fôr corrigido, nada vai mudar. Quando existe demanda e existe oferta, é inútil tentar suprimir os canais intermediários. Se esse comércio específico incomoda por algum motivo o Estado, cabe ao Estado controlar e reduzir a Oferta, e controlar e reduzir a Demanda. Não se controla um comércio jogando-o na clandestinidade, mas trazendo-o à luz do dia, onde pode ser vigiado e publicamente discutido. Clandestinidade é um perigo, ainda mais num país com uma imensa população desqualificada e ociosa, uma polícia sub-paga e desaparelhada, uma justiça que quando não é sobrecarregada é morosa ou venal, e elites acostumadas a pensar que são donas do mundo. De nada adiantam os recordes nos índices de matança dos motoboys. Se não se mexer nas duas pontas do processo, daqui a pouco não se comerá naquele país outra coisa senão pizza.

0367) Baby forever (23.5.2004)



(João Hamilton Tardivo)


Perto de onde eu moro há uma pet-shop. Meu lado armorial se rebela contra essas expressões americanizadas, mas meu lado tropicalista reconhece que é muito mais simples dizer pet-shop do que “loja de animais de estimação”. É curtinho. Parece um acrônimo, uma sigla. Gosto de palavras curtas, monossilábicas, e nisso a língua inglesa é insuperável, com jatos sintéticos de som que encerram idéias complexas: flash, clip, round, quark, blurb... Palavras assim são sólidas, como um pequeno receptáculo onde a significação está bem compacta, bem socadinha. São o contrário de palavras como “disponibilização” ou “anticonstitucionalidade”, crivadas de afixos, frouxas como uma correntinha de clipes.

Mas, voltando à pet-shop: acho que a mesma ternura que sentimos pelas palavras pequenas nos é despertada pelas criaturas pequenas. Toda vez eu paro e fico olhando, nas vitrines, aqueles cachorrinhos rechonchudos, virando bunda-canastra uns por cima dos outros, trocando tapinhas, dando aquelas mordidinhas de mentira que eles dão, ou simplesmente rolando pelo chão, arreganhando as patinhas pro ar e olhando para a gente através do vidro, com aqueles olhos marrons e líquidos, como se dissessem: “Oi! Eu tô tão feliz! E o senhor?”

Eu estaria mais feliz, companheiro, se não soubesse que você, como todos os outros, vai crescer e transformar-se num sabujo desmedido e malcheiroso, com aquele rosnado de maus-bofes. Devia haver um remédio para evitar que cachorrinhos crescessem. Um genérico-de-DNA qualquer que bastasse a gente todo dia pingar umas gotas no leite para garantir que nossos filhotinhos continuariam filhotando pela vida afora, sem risco de virar um desses cérberos ameaçadores que me espreitam todo dia quando ando pela calçada, doidos que o dono se distraia um pentelhésimo de segundo para voarem na minha garganta e fazerem comigo o que Bush está fazendo com o Iraque.

Pensando bem, devia ter um troço desses para os filhos também. A gente botava na mamadeira, e algum tempo depois na Coca-Cola, e eles ficariam a vida inteira com três anos de idade, dando aquelas corridinhas desajeitadas no parque, aquele risinho de rosto inteiro, e dizendo aquelas frasezinhas trôpegas de quem está fazendo suas primeiras incursões pelos jardins da sintaxe e da semântica. Que beleza, hem? Não cresceriam nunca, nunca virariam esses adolescentes rebeldes e peludos, ou esses adultos que acham que são donos do próprio nariz mas ainda nos pedem o dinheiro do táxi. Gotas. Umas poucas gotinhas diárias, ou uma papeleta homeopática antes do café da manhã, e nossos filhos seriam filhotes eternos, para nossa vaidade de pais e nossa futura ternura de avós, que é o que seríamos deles na velhice. Ninguém devia crescer, principalmente as crianças. Eia, cientistas! Precisamos inventar algo para que nossos serezinhos de estimação não venham a se transformar em gente como nós. Não sei se vale a pena.

0366) A Editora Vecchi (22.5.2004)



Alguém deveria criar uma coleção chamada “História das Editoras Brasileiras”. Cada volume contaria a história de uma das numerosas editoras que criaram não só o nosso mercado livreiro, mas também a nossa própria literatura. Nada mais justo. Escreve-se tanto sobre meros escritores! Nada mais justo do que registrar para a História a atividade humilde e subterrânea daquela meia-dúzia de sujeitos idealistas que enfiaram a mão no bolso e custearam a publicação de prosadores desconhecidos e poetas anônimos, fazendo com que hoje sejam adotados nos vestibulares e tenham estátua em praça pública.

Uma editora pela qual tenho uma curiosidade especial é a Editora Vecchi, fonte inesgotável de livros de aventuras na minha infância. Ficava à Rua do Resende, no 144, no Rio de Janeiro, e entre as décadas de 1950-1960 produziu dezenas de títulos que, a julgar pelas reedições, vendiam como água. Seu carro-chefe, pelo menos do meu ponto de vista, era a coleção dos romances policiais de Arsène Lupin, escritos por Maurice Leblanc, livros que lá em casa eram lidos com entusiasmo pela família toda. É possível que o sucesso de Lupin tenha sido suplantado pelo da coleção “Os Maiores Êxitos da Tela”, com as obras originais de filmes de sucesso: O corcunda de Notre Dame com Gina Lollobrigida na capa, Anastácia com Ingrid Bergman e Yul Brynner, Sissi com Horst Bucholz e Romy Schneider, além de A Dama das Camélias, Manon Lescaut e o Joana D´Arc de Jules Michelet.

Curiosamente, aos 10 anos nunca me interessei pela coleção “Os Mais Belos Romances de Amor”, que não obstante trazia títulos de George Sand, Ibsen, Alexandre Dumas. Minhas atenções estavam totalmente voltadas para a coleção “Os Audazes”, de romances de aventuras, onde li pela primeira vez Rafael Sabatini (O Cisne Negro) e Mark Twain (As aventuras de Huck), além das vidas de Robin Hood e Buffalo Bill. As antologias da Vecchi também eram excelentes. Ainda hoje tenho exemplares de Os Mais Belos Contos Policiais, Os Mais Belos Contos Alucinantes e dos dois Os Mais Belos Contos Terroríficos – e admito que meu conceito pessoal de beleza foi muito influenciado por títulos deste jaez.

Uma das melhores coisas da Vecchi eram as suas “artísticas sobrecapas em cores, do pintor Nils”. No melhor estilo das capas dos “pulp magazines” americanos, Nils preenchia a capa inteira com ilustrações em cores berrantes, cheias de movimento, com vários rostos e grupos de pessoas em planos superpostos, num estilo celebrizado depois pelo ilustrador Benício. A capa do livro parecia um poster de filme, e era cortada por frases como “Eletrizante aventura de Arsène Lupin”. A Vecchi marcou um período de transição da literatura de massas no Brasil, quando as novelas de entretenimento para consumo popular começaram a migrar das revistas mensais ou quinzenais, e a invadir o espaço nobre dos livros. É uma história fascinante, que merece e precisa ser contada.

0365) Os piores lugares do mundo (21.5.2004)


(crianças de Serra Leoa)

Alguns anos atrás, a revista Time fêz uma curiosa matéria de capa intitulada “Os piores países do mundo”. Avaliando as condições econômicas, sociais e políticas de diferentes países – sempre, é claro, de acordo com os parâmetros econômicos, sociais e políticos que vigoram na grande imprensa norte-americana – os articulistas indicavam os piores lugares para viver, caso você pertencesse a algum grupo específico. Há países que são totalmente inviáveis até para um cobrador de impostos, para uma árvore, ou para um adorador do sol.

Vamos começar pelo mais óbvio. Qual o pior lugar para ser mulher? A pesquisa (julho de 2001) foi anterior à queda das torres gêmeas e à queda dos talibãs, mas já apontava o Afeganistão como o pior lugar para ser mulher, por motivos que hoje parecem bem claros. O pior lugar para ser criança é Serra Leoa, com seu alto grau de mortalidade infantil. O pior lugar para ser gay é a Arábia Saudita, onde existe até pena de morte para os “rapazes alegres”. Ninguém está a salvo: o pior lugar para ser um homem branco é a Rússia, com seus índices altíssimos de câncer, alcoolismo, suicídio e crime.

Pode parecer lógico que o pior lugar para ser pobre seja Angola, devastada por décadas de guerra civil. Mas ter dinheiro também não é vantagem, pelo menos na Colômbia – o pior país para os ricos, em função de alta criminalidade e freqüentes seqüestros. Ser presidente da República pode ser um bom negócio até no Brasil, mas não o é na Indonésia, onde violentos golpes de Estado são uma sangrenta tradição. E ser funcionário público, o sonho dourado de tantos brasileiros, pode ser bom aqui, mas não na Somália, país tribal onde a idéia de um Estado central é mais do que nebulosa.

Cada profissão tem seu purgatório, ou seu inferno, em algum setor do mapa-múndi. Ser jornalista, segundo a Time” é uma péssima escolha no Irã, cujo conceito de liberdade de expressão é ligeiramente distinto do que vigora em Manhattan. Ser um “net-head”, ou fanático por informática, também não é bom negócio na Coréia do Norte, onde a ditadura vê com imensa desconfiança até mesmo o uso do celular, quanto mais do PC e da Internet. Ser empresário em Cuba também não é uma boa opção; a Time vê essa perspectiva com os mesmos olhos sombrios com que considera o destino de quem é estudante em Burma ou uma minoria étnica nos Bálcãs. Não importa que grupo humano a gente considere, sempre haverá um lugar menos hospitaleiro do que qualquer outro. Bem que poderia haver um saite da ONU ou da UNESCO com um ranking permanente dos países de acordo com algumas centenas de critérios. Serviria para orientar os planos e as preferências de quem quer fazer turismo, procurar emprego ou conseguir bolsas de estudo.

Ah, ia me esquecendo. É péssimo ser uma árvore em Madagascar, ser um cobrador de impostos na China, e ser um adorador do sol na Grã-Bretanha. Acho que nem precisa explicar.

0364) Calvino e a consistência (20.5.2004)



(Ítalo Calvino)

Em 1984 Ítalo Calvino foi convidado para uma série de seis conferências numa universidade norte-americana. Chegou a preparar cinco delas, enumerando as qualidades que a literatura de hoje deveria deixar de herança para os próximos séculos, mas morreu em setembro de 1985, antes de escrever a sexta. 

As cinco primeiras (“Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”) foram publicadas sob o título “Seis propostas para o próximo milênio”. 

A sexta, cujo tema era “Consistência”, ficou em branco. O que iria dizer Calvino, nunca saberemos; sua viúva Esther Calvino lembra apenas que ele pretendia fazer menção ao conto “Bartleby”, de Herman Melville.

Peço licença, então, para dar como exemplo de consistência literária a obra do próprio Ítalo Calvino, que a Companhia das Letras vem publicando nos últimos anos. 

Conheci-a há cerca de 15 anos, quando encontrei na biblioteca da Cultura Inglesa, no Rio, uma tradução inglesa de Cidades Invisíveis, talvez o seu livro mais famoso, no qual o viajante Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan as cidades surrealistas que encontrou em suas andanças. 

Depois, saíram no Brasil os 3 romances da série Nossos Antepassados: O Visconde Partido ao Meio, O Barão nas Árvores, O Cavaleiro Inexistente, três fábulas fantásticas sobre personagens que só têm existência parcial.

Um dos livros mais importantes de Calvino é Fábulas Italianas, onde ele faz um apanhado dos contos folclóricos da Itália, como se fosse um Sílvio Romero ou Câmara Cascudo, mas reelabora muitos deles, interferindo no material colhido, numa espécie de parceria com a tradição oral. 

Se um viajante numa noite de inverno é o mais vanguardista de seus romances, uma história em ziguezague e cheia de recomeços, onde ele usa o próprio leitor como pretexto para interferir na narrativa. O castelo dos destinos cruzados, por sua vez, teve seu enredo determinado por cartas do Tarot tiradas ao acaso. 

Também são notáveis suas coletâneas de ficção científica (ou “fantasia cosmológica”) As Cosmicômicas e T Zero, com pequenas fábulas sobre a criação do Universo.

O estilo de Calvino combina a erudição e o humor de Umberto Eco com o senso do absurdo e a imaginação imprevisível de Julio Cortázar. 

Existe em seus textos um veio permanente de metalinguagem, de reflexão sobre o ato de escrever, mas acima de tudo ele é um excelente contador de histórias, um inventor de ambientes fantásticos, um criador de personagens excêntricos e divertidos. 

Talvez o saite mais rico sobre sua obra seja o da Emory University, em: http://www.emory.edu/EDUCATION/mfp/cal.html, com numerosas transcrições de seus livros, ensaios críticos, informações biográficas, e links. Outro saite rico em material é “Outside the Town of Malbork”, em http://www.italo-calvino.com/ , especialmente a seção de resenhas sobre sua obra.






0363) Serendipity (19.5.2004)



(Os 3 príncipes de Serendip)

Em 1754, o escritor inglês Horace Walpole criou a palavra “serendipity” para designar “a faculdade de descobrir acidentalmente coisas importantes ou necessárias”. A origem do termo estava num conto persa intitulado “Os três príncipes de Serendip” (era o antigo nome do Sri Lanka), príncipes que volta e meia estavam fazendo descobertas desse tipo. Não existe, ao que eu saiba, um termo em português para ele. Uma tradução aproximada seria “serendipidade”, que não soa bem. “Serendipismo” flui melhor no ouvido, embora o sufixo sugira mais uma prática contínua do que a ocorrência de sucessivos fatos isolados.

Nomes à parte, o fato é que o fenômeno existe, e ocorre muito, por exemplo, na pesquisa científica. Fleming descobriu a penicilina quando “o mofo deu” acidentalmente numa de suas culturas de estafilococos e matou as bactérias. Becquerel descobriu a radioatividade por acaso quando deixou alguns sais de urânio guardados numa gaveta onde havia folhas de papel fotográfico; ao revelar as folhas viu que o urânio estava liberando partículas que deixavam marcas no papel. Os exemplos são incontáveis, e mostram que o talento criador consiste, muitas vezes, em observar e interpretar corretamente um acontecimento inesperado ou uma consequência imprevista de um experimento.

Saber aproveitar as contribuições do Acaso não é mais do que reconhecer que grande parte da nossa vida é determinada por ele. Planejamento existe, e funciona; mas existe e funciona na mesma medida em que um barco, descendo um rio, consegue determinar a própria rota. O Acaso é um fluxo de acontecimentos que nos envolve e que nos arrasta consigo, queiramos ou não. Nosso livre-arbítrio consiste em percebermos em que direção esse fluxo está se movendo, e nos movermos com ele, procurando extrair o máximo de benefício e o mínimo de acidentes. O “rio do Acaso” pode ser uma correnteza tranquila e horizontal, mas pode ser um tumulto de corredeiras por entre pedras e curvas fechadas.

Em seu conto “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, Jorge Luis Borges fala de um mundo imaginário onde os desejos tornam-se reais. A expectativa de encontrar um objeto faz com que esse objeto passe a existir. Uma pessoa, por exemplo, perde um lápis e começa a procurá-lo. Outra pessoa também fica à procura. A primeira acha o lápis, mas se esquece de avisar isto à segunda; esta continua procurando, e acaba por achar outro lápis, idêntico ao primeiro. Essa curiosa faculdade permite aos povos desse mundo a criação de uma arqueologia imaginária. Operários são convocados para fazer escavações num sítio “arqueológico”, para procurar uma máscara de ouro (inexistente) que é descrita em detalhes. Acabam por encontrar um certo número de máscaras, ligeiramente diferentes umas das outras de acordo com o maior ou menor grau de imaginação das pessoas que as encontraram. O mundo de Tlon é o mundo da criação artística, onde algo que não existia passa a existir apenas porque o procuramos.



0362) Avestruz (18.5.2004)



O avestruz é um bicho injustiçado. Não admira que tenha uma aparência tão deplorável: é consequência de uma queda na auto-estima. Não venham me dizer que o problema é o pescoço, porque o da girafa é muito maior do que o dele. Só que o da girafa é proporcional, e chega a rimar visualmente com as longas pernas, rima esta reforçada pela bela malha de amarelo e negro que dá textura uniforme ao corpo inteiro da girafa. Já o avestruz, coitado, parece o resultado de um daqueles exercícios coletivos surrealistas, em que cada pessoa fazia um pedaço de um desenho, dobrava o papel, passava adiante; o desenho era continuado pelo próximo, sem nenhum deles saber o que o outro tinha desenhado. O resultado sempre saía parecido com um avestruz.

Diz-se que ele engole e digere qualquer coisa, especialmente relógios. Nunca entendi por que razão os relógios seriam menos digeríveis do que outros objetos, mas no universo dos quadrinhos e dos cartuns é sempre um relógio que vemos um avestruz engolir, quando o desenhista pretende ilustrar essa sua voracidade impune. Comparação que nunca é elogiosa. Nunca vemos alguém dizer: “Puxa, queria ter um estômago de avestruz, assim como você...” Não, é sempre o contrário: “Amigo, traga outro tiragosto... Esse aqui está intragável, você tá pensando que eu sou avestruz?”

Outra metáfora impiedosa é a que explora o propalado hábito do avestruz de esconder a cabeça na areia quando se sente em perigo. Enfiando a cabeça num buraco escuro, o avestruz julga que escondeu-se por completo. Reconheço que poucas imagens seriam mais adequadas do que esta para retratar comportamentos individuais e coletivos que vemos a torto e a direito; mas que parece uma marcação contra o pobre do avestruz, parece.

Quem é o avestruz, afinal? A resposta: a maior ave do mundo... e uma ave que não voa. Esta suprema ironia parece uma contradição, mas um instante depois percebemos que não, que é uma consequência inevitável. O avestruz não voa justamente por ser uma ave descomunal. A melhor carne da maioria das aves está no peito, onde ficam os músculos que movem as asas; a melhor carne do avestruz está nas pernas. Coitado.

Começo a achar que o avestruz é o Capitalismo. Em primeiro lugar, engole e digere tudo que aparece pela sua frente, e ninguém me tira do juízo que isto vai avariá-lo por dentro a longo prazo. Em segundo lugar, quanto mais cresce menos voa, quanto maior se torna mais perde a mobilidade. Em terceiro lugar, descobriu nas últimas décadas um excelente buraco onde esconder a cabeça: o mundo virtual das Bolsas eletrônicas. Inventando um dinheiro de mentira, ele esconde a cabeça no monitor virtual, onde os lucros se multiplicam por mágica, e deixa exposto lá fora o seu enorme corpo físico: a atividade produtiva. Um corpo sujeito ao terrorismo, à corrupção e à quebradeira econômica. O avestruz pode mandar no mundo hoje, mas amanhã não diga que eu não avisei.