quarta-feira, 17 de junho de 2015

3842) Giulietta de Fellini (17.6.2015)



Giulietta (L&PM, 1989) é o romance resultante do roteiro de Julieta dos Espíritos (1965), de Federico Fellini. A edição brasileira (tradução de José Antonio Pinheiro Machado) saiu simultaneamente com as edições italiana e alemã. O livro saiu 24 anos depois do filme; há muitos pontos de contato, a idéia geral do enredo, mas, no mais, livro e filme são diferentes.

Giulietta (a narradora do livro) é uma mulher tímida, sensível, com uma autoestima um pouco baixa, ansiosa para agradar o maridão rico, charmoso e infiel. As amigas são todas sofisticadíssimas, sensualíssimas, moderníssimas e ela as contempla embevecida e resignada. Ela descreve a mãe como “elegante, formosa, autoritária”, e vê-se logo que ela é a patinha feia da família. Giulietta participa de umas sessões espíritas meio fajutas, entre outras socialites (tema recorrente em Fellini: o misticismo-como-entretenimento) e começa a receber visitas de uma tal de Íris, um espírito que vem revelar-lhe alguns segredos da feminilidade.

Giulietta fica atarantada e jubilosa com as revelações. “Nós mulheres sérias nunca pensamos nessas coisas; temos a impressão de que esse tipo de coisa diz respeito, digamos assim, às putas.  E quando passam os anos, de repente percebemos que nos enganamos completamente e que a razão estava com elas, as putas. Muito mais importante do que manter a casa em ordem, do que ir ao cinema com o marido, do que garantir domingos divertidos em família... nós deveríamos ser... não digo que deveríamos ser mais putas... mas enfim, no fundo, é isso mesmo: ser mais putas”.

Essas idas-e-vindas ansiosas anunciam um renascimento que num filme norte-americano talvez resultasse em Giulietta se transformando numa “sereia vulcânica da Broadway”, mas Fellini opta (no filme e no livro) por outra solução. Como o filme veio antes, é impossível deixar de ver a personagem do livro sem as expressões da atriz Giulietta Masina: seu rostinho atento a tudo, os olhos ansiosos, meio dissimulados, o semissorriso permanente e oblíquo com que ela parece achar graça nas saias-justas em que se mete.

No último capítulo, ela pressente em sua paranóia que a casa está sendo assediada por soldados bárbaros, e que o marido a abandonou. Aparece então, num balão, seu avô ateu, barbudo, amante de uma dançarina, o mesmo que interrompeu anos atrás a pecinha católica em que ela era “queimada viva” pelos romanos, dizendo que aquilo era uma imbecilidade e uma violência contra a neta. É o Fellini livre-pensador, irreverente, libertário, ajudando Giulietta a fazer as pazes com o espelho. Comparar o filme e o livro é um exercício divertido e proveitoso.