domingo, 3 de setembro de 2023

4978) Quatro mentiras do bem (3.9.2023)




1
D. Hosana Silveira, 61 anos, dona de casa, foi até a feira livre de um bairro próximo, numa sexta, à procura de alguns ingredientes para o almoço de sábado. Fez as compras habituais em algumas barracas de vendedores já conhecidos, mas na última, a de melancia, teve uma decepção. “Tive um problema e só recebo amanhã,” explicou seu Arnaldo, alto, bigodão de ponta, prestativo. “Que pena,” disse ela, “meu cunhado vem almoçar com a gente amanhã, e ele adora”; mas comprou  algumas frutas menores e despediu-se. Depois que guardou tudo em casa, lembrou-se de uma quitanda perto da praça onde vira melancias tempos atrás. Foi, arriscando; e deu sorte, porque havia, e ela comprou logo duas, para se garantir. No dia seguinte, passava um pouco do meio dia quando tocaram no portão, e ela saiu e deu de cara com seu Arnaldo, retirando do bagageiro de uma moto uma sacola grande. “Quem me ensinou sua casa foi Seu Dão, o do peixe.” Afastou as duas alças da sacola e revelou duas enormes melancias. “Trouxe logo duas, pra garantir,” disse todo animado. “Meu Deus do céu, seu Arnaldo,” exclamou D. Hosana. “Salvou meu almoço! Quanto é?...” 
 
2
Bittencourt Juvino da Mota, 70 anos, metalúrgico aposentado, colaborador de semanários e tabloides trabalhistas, conhecido como “Bité do Sindicato”, intelectual auto-didata, amante dos livros e da música popular brasileira (“mas só a autêntica”), um auto-proclamado marxista-leninista, que rompera aos 19 anos com os pais ao se proclamar ateu e perseguidor de Papas, costumava de vez em quando tomar uma cervejinha de leve no bar do colega Damásio , lembrando os velhos tempos. Certa noite estava lá, perto da hora de fechar, quando elevou-se dos fundos do bar um alarido de choros femininos. “É a filha da cozinheira que o menino está com febre,” explicou Damásio, “não tem nem uma semana de nascido”. Os dois foram até o quarto dos fundos. Sentada na cama, uma moça magrinha de cabelos desgrenhados segurava ao colo um bebê minúsculo envolto num trapo, enquanto uma mulher idosa murmurava, debulhando um terço. A mocinha ergueu para os dois homens um rosto de lágrimas escorrendo. “Seu Damásio, o bichinho vai morrer pagão!”  Bité aproximou-se, tocou no peito arquejante do bebê, viu como os olhos já meio que se reviravam. Viu uma caneca de lata junto do filtro, derramou ali dois dedos de água, pegou na asa dobrando o indicador esquerdo, mandou que todos se afastassem. Perguntou o nome do menino; era Natanael.  Mergulhou o indicador direito no líquido, e fez o traçado regulamentar na testa que ardia em febre, dizendo: “Natanael, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.” Todos murmuraram: “Para sempre seja louvado.” E a mocinha beijou a mão de Bité. 
 
3
Hélio  Fernando de Sousa, 54 anos, comerciante em Patos (PB), acompanhava com vibração a campanha da Seleção Brasileira na Copa de 2014. Apesar das performances pouco convincentes do time de Felipão, ele estava confiante no Hexa, conforme dizia a sua esposa Dona Rute e a todos os amigos. Em 7 de julho, ao voltar para casa às pressas (tinha esquecido uma pasta de documentos que precisava apresentar no fórum) perdeu o controle da direção, colidiu em dois outros carros e espatifou o seu Pálio de encontro a uma árvore. Gravemente ferido, foi conduzido à UTI de um hospital local, onde permaneceu sedado. Dois dias depois, mesmo com seu estado se agravando, recuperou a consciência e reconheceu Dona Rute, perguntou que dia era. “Já teve o jogo Brasil x Alemanha?”, perguntou. Dona Rute, que na véspera assistira taciturna o jogo inteiro, na esperança de um dia comentar os detalhes com o esposo, disse que sim. “O Brasil ganhou?...” disse ele. E ela respondeu, com um sorriso: “Ganhou de dois a zero.” “Eu sabia,” disse ele, e fechou os olhos. Minutos depois mergulhou num coma profundo do qual nunca veio a retornar. 
 
4
Leila Gonçalves, 28 anos, recepcionista, não cabia em si de felicidade após seu casamento com Djalma “Dêja” Antunes Ferreira, 33 anos, professor da rede pública. A grana era curta mas o amor não tinha mais tamanho, porque os dois tinham gostos e temperamentos harmônicos, conversavam muito, e estavam naquela fase inicial do casamento em que a alma se abre para o universo e o corpo só pensa numa coisa, que aliás estava mais que satisfatória para ambos. Leila era boa de receitas e gostava de cozinhar de vez em quando para ele (por questões de agenda e horário, durante a semana os dois comiam no trabalho). Certo fim de semana, Dêja acordou no bom humor de sempre e extraiu dela a promessa de que ficaria deitada até que ele a chamasse à sala. Quando o fez, ela se deparou com a mesa posta, uma terrina de arroz, outra de salada, outra de batatas, e uma travessa com dois enormes e suculentos bifes. Cobriu-o de beijos, sentaram-se, comeram, e a certa altura ele disse: “Seja honesta, seja amiga. Ficou bom?” Ela, que até então mastigara em silêncio, ergueu para ele dois olhos puros e límpidos de mulher apaixonada e disse baixinho: “Môzinho, está delicioso.”