domingo, 30 de julho de 2017

4256) Chico Buarque: "Tua Cantiga" (30.7.2017)





Chico Buarque está prometendo disco novo para breve, e lançou uma canção como trailer, “Tua Cantiga”, em parceria com Cristóvão Bastos. O clipe pode ser visto aqui – ou revisto, porque a esta altura grande parte dos meus leitores já viu.


Chico, com seus companheiros de geração como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Edu Lobo, Egberto Gismonti, e tantos outros da MPB, é protagonista de uma espécie de seriado “The Walking Dead”. Cada um deles é enterrado publicamente todo ano pela crítica ou pela concorrência –  e não morre nunca. Em cada geração nova de músicos rebeldes e contestadores aparece um que o mata e enterra, e seis meses depois ele faz um disco e canta na missa-de-sétimo-dia desses talentos meteóricos.

Esta música nova tem uma bela melodia de Cristóvão Bastos, um arranjo delicado onde cada ruidozinho sabe o que está fazendo (arranjo e piano: Cristóvão Bastos; baixo, Jorge Helder; bateria e percussão: Jurim Moreira), e um clip simpático onde o camarada vem entrando e trazendo a câmera consigo, canta a música, sai pela outra porta, vai embora e deixa a câmera para trás.

É como se ele estivesse bebendo cerveja num bar nas vizinhanças, alguém mandasse um zap dizendo: “Prontos pra gravar, pode vir”, ele viesse, gravasse e fosse embora antes que a cerveja amornasse na mesa.

Não sou fã de Chico Buarque. Se fosse, teria escutado os dois ou três últimos discos dele – coisa que não fiz. Por que? Não sei, acho que com música acontece algo parecido com o que se dá com bebida. A gente vai numa loja e compra um vinho, ou uma vodka, chega em casa e guarda no móvel da sala. Um leigo perguntaria: “Oi, e não vai beber não?” A resposta seria: “Vou, quando a hora chegar”.

“Tua Cantiga” tem sido comentado de maneira divertida nas redes sociais. Tazio Zambi (PB) postou no Facebook: “gostei muito da música nova do chico buarque, "toca uma antiga".  É o trocadilho ideal, que busquei sem encontrar quando li o título.

Já Alex Antunes (SP) comentou, depois de dizer (meio surpreendentemente) que tinha gostado da música: “e essa notinha fora do cristovão bastos é o bicho.  :D  resume o babado.  Eu li isso antes de ouvir a música e pensei: “Mas que bobagem, o pessoal agora tá achando pelo em ovo, tá achando que uma notinha isolada ‘diz tudo’”.

Fui ouvir a música e me desdisse, dei control-z: a notinha tem tudo a ver, de fato. Por que? É uma notinha isolada, uma tecla aguda do piano, que aparece no clipe em 00:17, dando sinal que começou, e em 03:59, assinalando o fim. Detalhe que abre e fecha a música, serve de batidinhas-com-a-batuta para avisar a orquestra, e serve de ponto-final. E é dentro da harmonia uma nota meio angustiante; lembra aquelas notas de piano insistentes e ominosas na trilha de Eyes Wide Shut de Kubrick.

É uma nota solta, que me parece estar num canal diferente do canal do piano, vem de outra dimensão e é colada em cima. Não é um palavra a mais no texto, é uma ilustração.

Se eu fosse comparar com alguma coisa compararia com aquela nota única, inesquecível em timbre e em colocação mais que perfeita, aquela nota isolada de guitarra (surge pela primeira vez em 00:12) que se tornou a assinatura de “Hello Goodbye” dos Beatles.

Com relação à letra, é uma daquelas cartas de amor que Chico Buarque tem longa prática de escrever e de fato escreve como ninguém. Turbinado, inclusive, pelo prazer perverso de imaginar um milhão de brasileiras ouvindo, suspirando e imaginando por sua vez: “É pra mim que ele está dizendo isso... É a minha cara...” Chico Buarque é uma espécie de Machado de Assis, com público feminino cativo e permanente, dialogando com elas sem intermediários, e dirigindo em grande parte a elas esse meticuloso acariciar de sentimentos.

É um letra com um tom meio velado, porque (fica claro no texto) trata-se de um homem casado dirigindo-se a uma mulher também casada, uma mulher que tem um “vigia”, “um desalmado”, uma mulher por quem ele jura largar “mulher e filhos” para fazê-la “rainha” na “nossa casa”. Que homem nunca jurou isso cem vezes? Que mulher não acreditou pelo menos uma vez?

Chico Buarque já falou em entrevistas que gosta de compor a música antes e encaixar a letra depois, sílaba por sílaba, um processo que ele já descreveu poeticamente como “tijolo com tijolo num desenho mágico / tijolo com tijolo num desenho lógico”. Este método exige a música bem memorizada e repetida mentalmente até não poder mais, enquanto mil palavras e combinações de palavras são tentadas para encaixar na métrica, na cadência, na prosódia, na acentuação, no timbre, no ritmo. Ah, sim: e a letra precisa também fazer algum sentido.

Ao longo de “Tua Cantiga” o poeta explora a alternância de rimas finais em “ir” e “ar”, modulando pra rimas em “”eis”, “iz”, “ei”, “ou” na parte do meio. E com um detalhe tipicamente buarquiano de parelhas de rimas toantes encaixadas exatamente nas mesmas posições da estrofe, com uma exatidão e uma sutileza admiráveis: suspiro/ligeiro, nome/perfume, lenço/alcanço e assim por diante.

Do ponto de vista da cadência, as estrofes da primeira parte da canção, a mais interessante neste aspecto, têm um formato curioso. (Isto é uma marcação que eu faço mentalmente, mas é subjetiva, não sei todo mundo sente essa cadência da mesma forma.) A cadência é: 4-1-4 / 4-1-4 / 4-1-4-1-4-1-1. Isso dividiria visualmente a estrofe assim:

quando te der
sau
dade de mim;
quando tua
gar
ganta apertar;
basta dar um
sus
piro que eu vou
li
geiro te con

so-lar


Isto é um dos recursos que permitem à letra de música, caso o letrista queira, ser um produto mais sofisticado do que o poema escrito, embora somente uma porção bem pequena das letras se preocupe conscientemente com ele. A melodia preexistente à letra impõe a ela cadência, acentuação, pausas, etc.: e a letra, que de si já traz esses elementos, entra numa relação de tensão com a estrutura proposta pela melodia, uma tensão que ora se resolve com uma coincidência exata de efeitos, ora com um leve dissonância que, em vez de um ruído desagradável, pode produzir, quando bem feita, um leve surpresa de novidade.

O poeta faz referência a Shakespeare, ao famoso Soneto 116, o que fala em “marriage of true minds”: “ou estas rimas não escrevi / nem ninguém nunca amou”. Elba Ramalho gravou esse soneto em 1984, na versão em português de Ana Amélia e música de Tadeu Mathias: “Se isto é falso, e que é falso alguém provou, não sou poeta, e ninguém jamais amou” (“If this be error and upon me prov'd, / I never writ, nor no man ever lov'd.”)

“Amor Eterno”, álbum “Do Jeito Que a Gente Gosta”:

Citar Shakespeare está totalmente de acordo com um tom poético onde o camarada sugere à musa “deixar cair um lenço” para que ele o recolha. É com essas imagens e contextos tipo Segundo Reinado que um certo pessoal moderno se invoca às vezes – o pessoal para quem o Passado é um país inimigo que precisa morrer à míngua. E é isso que torna Chico simpático aos olhos de outros grupos, para quem é preciso transformar o mundo, desde que se transforme somente a parte que eles não gostam e se deixe o resto confortavelmente intacto.

O poeta oscila com fluidez, e quase sem ser percebido, entre essa dicção clássica e uma dicção mais popular e contemporânea, que o faz prever-se “aperriado”, tratar a musa por “minha nega”, chamar o maridão de “teu vigia”... O seu dicionário poético é rico assim, de termos rebuscados (mas que o ouvinte geralmente intui pelo contexto) e termos da linguagem das ruas, sem muita preocupação em carimbar as gírias do momento.

“Tua Cantiga” é uma música muito boa, consegue ter complexidades e sutilezas e ser assobiável, dá prazer ao ouvido e dá combustível ao pensamento. Resta esperar o disco.