domingo, 15 de janeiro de 2012

2767) “20 Mil Léguas” (15.1.2012)



A reedição de 20 Mil Léguas Submarinas pela Ed. Zahar parece ser a mais completa até agora, principalmente pelas mais de 200 notas explicativas do tradutor André Telles, e pelo fato de que reproduz o texto completo do original. Esta é uma proposta importante porque poucos autores terão tido sua obra tão mutilada quanto Julio Verne, e quem já o leu entende por quê. Verne foi praticamente o criador da ficção científica “hard”, que se baseia meticulosamente nos conceitos científicos, e procura conseguir o máximo de plausibilidade. Em toda a obra de Verne são muito poucos os elementos fantásticos, coisas que não podem ocorrer no mundo como o conhecemos. Verne falou sobre façanhas científicas que ainda não tinham sido postas em prática em obras como 20 Mil Léguas..., Da Terra à Lua, etc.; mas apesar de cometer erros eventuais ele raramente distorce os fatos científicos. Verne se via no papel de um educador, e às vezes parecia um mestre-escola bretão, como na sua famosa reação indignada diante de certos livros de H. G. Wells: “Ele inventa!”.

Na introdução a esta edição do livro, Rodrigo Lacerda comenta (poucos estudiosos de Verne o fazem) os recursos usados pelo autor para dourar a pílula das numerosas descrições científicas que era seu propósito incluir. Verne e seu editor, Hertzel (o grande inspirador das “Viagens Extraordinárias”), ambicionavam “resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, astronômicos e da física coletados pela ciência moderna, e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria [a Verne] a história do universo”. Esta ambição lembra o projeto da enciclopédia fantástica de “Tlön” de Jorge Luís Borges: “Conjetura-se que este ‘brave new world’ é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio”.

A narrativa típica de Verne, portanto, é salpicada de pequenas explicações científicas que vão de poucas linhas a várias páginas de extensão. Se somarmos a isto as notas de pé de página necessárias para situar, hoje, informações que eram de conhecimento público na França de 1871, resulta que poderíamos ter uma edição eletrônica desta obra em forma de hipertexto. As explicações e digressões científicas ficariam ocultas mas poderiam ser reveladas a um clique do mouse, bem como notas posteriores feitas pelos editores e tradutores de Verne. A mutilação que os seus livros sofreram tantas vezes se tornaria meramente parcial, superficial; o texto completo estaria contido na versão, para ser lido por quem se interessasse.