sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

5030) "O Barão nas Árvores" (9.2.2024)




Ítalo Calvino é um dos grandes fabuladores do nosso tempo, um desmentido vivo àquela falsa dicotomia que opõe os “contadores de histórias” aos “estilistas”, ou a “literatura de enredo” à “literatura de estilo”. Calvino é mestre nas duas. 
 
O Barão nas Árvores (1957) é o segundo livro de uma trilogia que inclui O Visconde Partido ao Meio (1952) e O Cavaleiro Não-Existente (1959). 
 
Este último já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/05/4938-o-cavaleiro-nao-existente-352023.html
 
O Barão é, nos primeiros parágrafos da história, apenas um garoto, filho da aristocracia rural da Ligúria (noroeste da Itália), que na hora da refeição recusa-se a comer um prato que lhe desagrada, bate-boca com os pais, foge pela janela, pendura-se nos galhos de árvore mais próxima e jura de pés juntos que nunca mais pisará no chão, em sinal de protesto. E o faz. 
 
Cosimo passa a viver de galho em galho, como Tarzan, saltando pelos cipós, dormindo em forquilhas confortáveis. Nos primeiros capítulos, enquanto a família se desespera e tenta negociar, Calvino explica como o rapaz, que é inteligente cheio de recursos, resolve durante os meses seguintes os seus novos problemas de sobrevivência – comida, dormida, higiene, roupas, etc. 




Daí em diante são muitas as aventuras. Um escritor contemporâneo (leitor dos manuais que nos pressionam a “fazer suspense”, “obrigar o leitor a virar páginas com rapidez”, etc.) passaria a inventar situações cada vez mais melodramáticas em que o rapaz estivesse a ponto de ser forçado a botar o pé no chão, mas escapasse por um fio. 
 
As situações até se apresentam – perseguições armadas, lutas contra piratas, amizade com salteadores, invasão do exército francês... Até mesmo um encontro pessoal com Napoleão Bonaparte, o imperador em seu cavalo e Cosimo no seu galho. Mas a essa altura o leitor nem se interessa se ele vai descer ou não. O autor impôs, com seu estilo de narrar, um novo conceito de normalidade. Não queremos saber se Cosimo “vai voltar” ou não. Ele criou uma nova regra para o mundo em que vive. 
 
A história é narrada na primeira pessoa pelo irmão mais novo de Cosimo, o que permite um certo distanciamento muito útil. Quando algum detalhe da história não se encaixa direito, ou quando falta uma explicação, o narrador simplesmente diz: “não sei como aconteceu, há várias versões” – e estamos conversados. 



(ilustração: Yan Nascimbene) 
 

É uma história ambientada na virada do século 18 para o 19 (acompanhando os mais de 60 anos da vida de Cosimo), e tem um formato aparentado aos “contos filosóficos” daquele tempo, semelhança ainda maior quando pensamos que o Barão Cosimo, acima de tudo um estudioso, se corresponde com Voltaire, Rousseau e outros intelectuais da época.
 
Ele se torna, inclusive, autor de um Projeto Constitucional para uma Cidade Republicana, com uma Declaração dos Direitos do Homem, Mulheres, Crianças, Animais Selvagens e Domésticos, incluindo Aves, Peixes e Insetos, e toda a Vegetação, sejam Árvores, Legumes ou Grama. 
 
Calvino, como já falei, é um grande contador de histórias, e indivíduos com esse talento geralmente sabem extrair uma história de cada personagem que lhes passa pelo teatro da mente. Os membros da família de Cosimo Rondò vão sendo apresentados ao longo da narrativa, e cada qual tem sua cena, seu episódio marcante, antes que o narrador retorne à vida do tarzã-da-Ligúria.


 
O argumento do livro lembra um pouco aqueles indivíduos imprevisíveis que um belo dia tomam uma decisão meio gratuita, meio absurda, mas mantêm-se fiéis a ela pelo resto da vida. É o velho pai de “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa, que embarca numa canoa e passa seu resto de vida remando à toa, na água, sem falar com ninguém e sem voltar à terra firme. É o “Wakefield” de Nathanael Hawthorne, que um dia não volta para casa, apenas desaparece, e durante vinte anos fica espreitando de longe a esposa e vendo como ela reage ao seu desaparecimento. É o “Bartleby” de Herman Melville que, do dia para a noite, prefere não fazer nenhuma das tarefas que o patrão lhe atribui, no escritório. 
 
Essas venetas repentinas, que podem parecer sintoma de loucura, correspondem, no seu rigor e na sua gratuidade, a certas “contraintes” (“constrições, limitações auto-impostas”) que um escritor pode impor a si mesmo, e que são um elemento fundamental do pensamento do grupo de que Calvino fez parte, a OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, “Oficina de Literatura Potencial”). 



(ilustração: Yan Nascimbene) 


Os membros da OuLiPo (Calvino, Georges Perec, Raymond Queneau, Jacques Roubaud, Harry Matthews e outros) consideravam que uma liberdade plena acarreta uma frouxidão plena, e que a criatividade do autor é estimulada e potencializada quando ele impõe para si mesmo uma regra arbitrária, inventada, sem nenhuma razão-de-ser aparente, mas apega-se a ela e procura criar a obra escrupulosamente dentro desses limites. 
 
É o que faz o Barão Cosimo. “Nunca mais pisarei no chão!” – e por mais de cinquenta anos ele vive de galho em galho, ali ele mora, namora, dorme, passeia, trabalha, ajuda a apagar incêndios, ajuda a organizar uma resistência armada durante a guerra. Ali ele estuda e escreve obras filosóficas; e essa limitação auto-imposta torna-se parte de sua personalidade, de sua biografia. A tal ponto que depois de certa altura seria impensável um Cosimo caminhando no chão, pelas alamedas do castelo da família. 
 
Seu universo se reorganiza de forma a ter como centro a folhagem das árvores, as quais felizmente são abundantes naquela região. Mas o narrador, a certa altura, conta como ele, chegando aos limites de suas propriedades, se depara com um espaço vazio, não-arborizado: 
 
Esse descampado, para Cosimo, era uma visão que o enchia de desconforto. Tendo vivido sempre em meio à vegetação espessa de Ombrosa, com a segurança de poder chegar a qualquer lugar seguindo seus próprios caminhos, bastava ao Barão ver diante de si um espaço vazio e intransponível para ser tomado por uma sensação de vertigem.
(The Baron in the Trees, Picador, trad. ing. Archibald Colquhoun, trad. port. BT)
 
Em Viagem ao Centro da Terra, Jules Verne fazia seus personagens, antes de descerem ao mundo subterrâneo, subirem à torre da igreja para tomar “lições de abismo”. A lição de abismo de Cosimo é horizontal. Não haver árvores, para ele, equivale a não haver chão. É um espaço inacessível que lhe causa terror; um não-espaço. 



(ilustração: Yan Nascimbene)
 

O irmão-narrador confessa:
 
Eu acompanho o noticiário, leio livros, mas eles me desnorteiam, o que ele tinha para dizer não se encontra ali, porque ele compreendeu alguma coisa a mais, alguma coisa que abrangia tudo, e ele não conseguia explicar isso com palavras: somente vivendo como vivia. Somente sendo tão autenticamente ele mesmo, como meu irmão o foi até sua morte, ele poderia deixar alguma coisa para todos os homens. 
 
Em seu clássico Cidades Invisíveis, Calvino enumera dezenas de cidades fantásticas e a certa altura sugere que a humanidade sonha com uma espécie de “cidade contínua” onde todas se misturam; algo disso já existe nas grandes metrópoles de hoje, onde espaços de serviços se repetem (aeroportos, supermercados, shopping centers, hotéis, etc.) de tal modo que podemos mudar de cidade sem mudar de ambiente. Cosimo criou para si uma cidade contínua feita de diferentes bosques, diferentes jardins, diferentes matas selvagens, mas seu universo era definido pela existência ou não de árvores. 
 
Para os que entendem inglês, aqui há uma simpática sessão de leitura e debate, em que o ator Richard Gere lê trechos de The Baron in the Trees, e depois debate a obra com Giovanna Calvino, filha do escritor. 
 
https://www.youtube.com/watch?v=BYx5VkYf7eY